VIH: à procura dos casos escondidos

O objetivo da ONU é eliminar a epidemia da sida até 2030. Em 2020, 90% dos casos devem estar diagnosticados. Quão longe estamos disso está prestes a tornar-se mais claro.

É a pergunta do milhão de euros: quantas pessoas estarão infetadas com o vírus da sida sem saber? Foi sempre uma preocupação da saúde pública, até por o vírus poder estar dez anos no organismo sem dar sintomas, mas a pergunta tornou-se nos últimos anos um dos tópicos de trabalho em todo o mundo, sobretudo a partir do momento em que as Nações Unidas lançaram o compromisso de eliminar a epidemia até 2030. No ano passado, a pressão aumentou: a ONU propôs acelerar esforços e lançou o apelo para que, até 2020, cada país tenha 90% dos casos diagnosticados, 90% das pessoas em tratamento e, destas, 90% com a infeção controlada – ou seja com uma carga viral indetetável. O impasse é este: sem ter uma ideia mais clara de quantos casos estão por diagnosticar, é impossível perceber que trabalho está por fazer.

 

Portugal investiga

Em busca de respostas, uma equipa de investigadores do Instituto Ricardo Jorge está desde o início do ano a participar num projeto de modelação de dados dirigido pelo Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças (ECDC). Os dados preliminares, que deverão permitir estimar pela primeira vez quantos casos estão por diagnosticar ou o tempo médio entre infeção e diagnóstico, vão ser apresentados no final deste mês em Glasgow, revelou ao SOL o Instituto Ricardo Jorge. Por agora, estão nos segredo dos deuses: o ECDC impõe embargo total.

Kamal Mansinho, diretor do Programa Nacional para a Infeção VIH/Sida e Tuberculose, admite que é desses novos números e do maior ou menor esforço que vão exigir do país, não só no diagnóstico, mas depois no tratamento, que vai depender o sucesso do combate à epidemia. «O desafio é percebermos a que distância estamos do primeiro 90%», diz.

Não havendo casos por diagnosticar, o país estaria bem posicionado. Em 2014, último ano com dados, em 30.956 casos seguidos nos hospitais, 22.995 estavam a fazer tratamento, uma percentagem de 82,4%. Destes, 78,4% tinham uma carga viral indetetável.

Mansinho admite que a situação não será muito diferente em Portugal do que acontece na Europa, em que se estima que menos de 30% das pessoas infetadas desconhecem o seu estado. Fazendo uma conta simples, sabendo-se que desde o início da epidemia foram diagnosticadas com VIH em Portugal 53 mil pessoas, isto significa qualquer coisa como 22 mil diagnósticos por fazer. Um estudo recente do Instituto para a Métrica e Avaliação para a Saúde (IHME), nos Estados Unidos, não é tão otimista e mostra que a questão será sempre, no mínimo, discutível. Foi este o trabalho usado em setembro pelas Nações Unidas para colocar Portugal no 22º lugar dos melhores países do mundo em termos de saúde. Apesar do bom desempenho, o VIH era o indicador em que estávamos pior, isto porque o IHME  estima 115 mil pessoas infetadas no país (mais do dobro dos casos que temos diagnosticados desde os anos 80) e uma cobertura de tratamentos de 60,5%.

David Pereira, investigador na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto e um dos autores do estudo internacional, explicou ao SOL que não é possível extrair dos dados uma previsão exata de quantos diagnósticos estão por fazer, uma vez que os valores conhecidos no país entram nos intervalos de confiança apurados. Além disso, o excesso pode incluir pessoas que, mesmo por diagnosticar, podem já ter morrido. A ideia do trabalho é dar valores médios que possam ser comparáveis, mas o investigador assinala, ainda assim, que o algoritmo que estão a afinar desde os anos 90 tem-se revelado cada vez mais robusto. Para os EUA calculam um número de casos até abaixo das contas do centro de controlo de doenças nacional.

Mansinho acredita que estas estimativas possam ter algum excesso: utilizam o histórico da epidemia no país e a nível global e o caso nacional é singular. «Tivemos muitos casos associados à utilização de drogas e a epidemia nesse grupo reduziu bastante, um processo que não foi igual em todos os países». Portugal foi dos primeiros países a avançar com a troca de seringas, em 1993. No ano 2000, foram diagnosticados 1591 novos casos entre utilizadores de drogas (49,5% do total). Em 2014 houve 48 (3,9%).