Mia Couto. “Quando deixa de haver a ideia de futuro, as pessoas começam a escavar o passado”

Os personagens do seu último livro, “A Espada e a Azagaia”, atravessam fronteiras, são gente que no meio da guerra procura uma nova identidade. A convicção de Mia Couto é que nem no meio da selva amazónica existe gente que tenha uma vida que não seja feita de múltiplas influências. Todos somos produto dessa diversidade.…

Mia Couto. “Quando deixa de haver a ideia de futuro, as pessoas começam a escavar o passado”

Uma vez vi um objeto do tempo do Estado Novo que era uma garrafa de vinho do Porto com a forma do Gungunhana, de robe verde e agarrado a uma garrafa. Qual era a diferença entre a imagem real, a caricatura e a imagem mitológica que terá hoje em Moçambique? 

Não conheço a imagem que ele teve e tem em Portugal a não ser por leituras que fiz da documentação escrita na época. Esse registo é obviamente datado pelas necessidades de criar ali um inimigo pérfido e desumanizar aquela pessoa, não se pode esperar senão as piores descrições. Falando sobre a imagem a que aludiu, ele bebia de facto, era verdade. Tinha uma enorme preferência pelo vinho do Porto. A grande prenda que ele queria receber dos visitantes portugueses eram caixas de vinho do Porto, que ele pedia que fossem poucas para não ter de as dividir com o seu séquito: “Tragam-me só umas quatro garrafas, que assim não sinto a obrigação de as redistribuir.” A imagem que ele tem em Moçambique é muito variada dependendo da região, e já começa a haver um certo esquecimento. Samora Machel tentou recuperar a sua figura, numa altura que era preciso criar um herói nacional. Não foi bem escolhido porque ele não era nacional, uma resistência nacionalista estava fora do seu contexto; mas mais grave que isso é que ele, na sua prática de imperador, fez o que faziam muitos: subjugou e massacrou muitos dos povos de Moçambique, portanto não se podia esperar uma memória que fosse distribuída igualmente pelas diferentes etnias.

Quando se dá aquela operação simbólica de mandarem vir as cinzas de Gungunhana de Portugal, trazendo, segundo afirma no seu romance, apenas terra, a ideia de etnia continua muito forte e persiste até hoje?

Não creio que as divisões étnicas em Moçambique sejam importantes ao ponto de termos de pensar em tomar alguma medidas. O que acontecia até ao final da governação de Samora é que não se podia falar nisso. A solução que ele encontrou para o problema foi dizer que não havia etnias. Mesmo as línguas regionais e locais , que são mais de 25, eram desencorajadas. Nas escolas, o português era a única língua. A partir de 86/87 começou a falar-se mais nas questões étnicas, porque a solução não é ignorá-las, é que elas convivam bem. É muito complicado criar um Estado único e central no meio de nações que são diversas. Na verdade, todo o norte de Moçambique não tem nenhuma relação com o sul. De qualquer forma, não existe um problema entre etnias, a única coisa que pode haver é uma reivindicação a dizer: “No norte temos os nossos próprios heróis, porque é que eles não são tão celebrados, porque se esqueceram deles?” Esta é uma questão complicada num país que tem tanta diversidade.

Essa operação de criar um herói nacional unificador que possa ser reconhecido e incorporado por uma diversidade de povos não é caso único de Moçambique. Em Angola há um conjunto de filmes, séries e novelas que falam da rainha Nzinga. Quando começou a fazer esta trilogia sobre o Gungunhana, qual era a sua ideia?

A ideia partiu da situação que vivemos hoje, que é de confronto e que tem várias origens. Uma dessas origens é o facto de não percebermos que vivemos uma história que é feita de diversidades: há vários passados. A minha ideia é que talvez fosse possível colocar esses passados em conversa de uma maneira que eles, primeiro, se tornassem visíveis e plurais, fazendo um contraponto à ideia do governo de criar uma história única. É preciso não apagar as diferenças da história e maquilhar a diversidade histórica que sempre foi a nossa. Nós só podemos ter um presente em que esta diversidade é posta numa boa convivência se percebermos que temos um passado que é feito de histórias diversas. 

De alguma forma, o regime da Frelimo tinha a ideia de inscrever essas populações todas na construção de um projeto comum que as unificasse. O regresso a essas diversidades anteriores não significa o abandono dessa ideia de projeto comum?

Não vejo isso em contraponto. A grande preocupação é a construção da unidade nacional. Falou de Angola, cujo hino diz: “Um só povo, uma só nação.” Também em Moçambique essa preocupação está expressa: “Milhões de vozes numa só força”, reza o hino nacional. Esta coisa de simplificar aquilo que é diverso e múltiplo como uma ameaça é que é o problema. Não se deve ver essa diversidade como uma ameaça. A única maneira de lidar com isso é deixar que se expresse. Nos primeiros tempos da construção não se questionava isso, havia uma ideia de futuro e de utopia: o que unia as pessoas era a construção desse tempo novo. Quando deixa de haver uma ideia de futuro é que, de repente, as pessoas começam a escavar o passado. E aí é perigoso, não pela expressão da diversidade étnica – o que torna a coisa perigosa é que realmente não existe uma crença de presente e de futuro. A gente pensa que é preciso o passado para olhar o futuro quando, realmente, é preciso o futuro para ter vontade de ler o passado.

De alguma forma é um contrassenso que na sua obra, que tenta expressar várias vozes, resgatando um passado com várias línguas, você o faça na língua do colonizador. É possível que a língua do colonizador seja a língua do colonizado?

Eu acho que já está a acontecer. Repare, eu sou suspeito, sou de língua portuguesa, sou urbano, mas hoje, se você me disser qual é o escritor angolano ou moçambicano que escreve numa outra língua que não seja o português, em Moçambique, eu conheço apenas um caso. Todos os nomes mais visíveis da literatura moçambicana escrevem em português, já não têm esse drama linguístico de o português não ser a sua língua materna. Isso é cada vez mais patente nas gerações que estão a nascer: há uns anos, a língua portuguesa era a língua materna de 1% ou 2% das pessoas; hoje, nas cidades, esse número já chega a 50% ou 60%. 

Nos seus livros, essa memória expressa-se a partir do contar a história dos mais velhos e da oralidade. O domínio da escrita não é algo estrangeiro a essa memória, ou pode resgatá-la?

É uma maneira de tomar posse de uma coisa e conseguir ter um pé num mundo e no outro. O que se passa é que isto é feito de uma forma um pouco traumática, de uma geração para outra, e há qualquer coisa que se perde. O que é triste é que a hegemonia que a língua portuguesa tem em Angola e Moçambique se faça à custa de outras línguas. Há línguas em Moçambique que se estão a perder. Há línguas que as pessoas pensam nelas, é a sua língua materna, mas não têm maneira de a colocar na escrita, porque ainda não está padronizada a ortografia. Há ali coisas que faltam como instrumento. O ideal é as pessoas terem a liberdade de escolher e de haver bilinguismo absoluto, as pessoas dizerem “eu quero contar esta história na minha língua materna e vou contá-la”. Acho muito bem que haja pessoas a fazê-lo; o problema é que os poucos que o fazem atingem muito menos gente. Um livro escrito numa das 25 línguas de Moçambique vende muito poucos exemplares: cerca de 30 ou 40 livros. Depois, quem é que lê naquela língua? Que editor vai apostar num livro que vende umas dezenas de exemplares? É preciso fazer um outro trabalho prévio a isso. Fazer ensino bilingue num país que tem duas línguas é fácil, mas fazer num país que tem 25, e não tem meios financeiros para fazer um bom ensino numa só língua, é muito difícil. 

No outro dia estava a ler os resultados das eleições locais brasileiras e eles dividiam no “Estadão” os eleitos em brancos, negros e pardos. Em português de Portugal, esta última categoria era conhecida como “mulatos”, o que tem uma etimologia que vem de mula. Não continuam a existir na língua portuguesa categorias e palavras que remetem para uma dominação?

Eu tenho confiança que os outros são capazes de resolver esse assunto. O caso que me está a dar não é o mais feliz, porque o Brasil pensa a situação racial de um modo muito pouco brasileiro, há uma grande importação do modelo de pensamento norte--americano sobre a raça e as “soluções” que os americanos encontraram para a discriminação racial. Ora, no Brasil, a questão coloca-se de uma forma historicamente muito diferente e diversa. E tenho receio que não seja o melhor exemplo para falar em relação às palavras: há muitos equívocos em relação a nomear as coisas. Para um certo grupo já não se pode dizer “negro” nem “preto”, é “afro-brasileiro”. 

E isso é incorreto? Nós aqui temos o provérbio “um olho no burro e outro no cigano”, e há determinadas ideias negativas que estão associadas às cores, em que o negro vem sempre como negativo.

Não conheço o contexto desse provérbio, mas obviamente que ele desqualifica o cigano. Mas fugir ao termo “negro” ou “preto” e pensar que o “afro-brasileiro” resolve – eu teria de ser brasileiro para discutir melhor esse assunto -, acho que é uma solução epidérmica e superficial. Eu teria de encontrar a designação de “eurobrasileiro” para os brancos no Brasil, e eu nem sei quem é que é branco no Brasil.

Tem uma frase em que diz: não foram as raças que produziram o racismo, foi o racismo que produziu as raças.

Foi, de facto, o racismo que produziu as raças, não tenho dúvida sobre isso.

Os portugueses têm sempre a ideia de que os outros povos são racistas e eles não. Moçambique é racista?

Não é verdade que os portugueses não sejam racistas. Está a perguntar se em Moçambique há racismo? Há racismo em todo o lado. A ideia do racismo começa por um erro muito simples que toda a gente comete: a ideia de que se define a identidade de alguém pela cor da pele. Eu vejo amigos meus, que não tenho dúvidas nenhumas de que não são racistas, mas que de repente dizem “estes indianos” ou “estes chineses”. Esta necessidade de generalizar, nós todos temos. Nós todos caracterizamos de uma maneira estereotipada quando dizemos, por exemplo, os “europeus”, os “turistas” , os outros. E a coisa mais grave no racismo não é a desqualificação de uma raça, mas impedir que o outro seja um ser singular. Você não é o Nuno, você é um “jornalista”, um “europeu”. Eu nunca saberei quem é o Nuno, se o qualificar dessa maneira. Numa resposta mais terra a terra: há racismo em Moçambique, mas aquilo que eu vejo, em relação à situação no Zimbabué, na África do Sul e no Brasil, é uma situação muito mais resolvida e relaxada Não é por os moçambicanos serem muito melhores, mas por condições históricas. Moçambique teve uma revolução que foi radical e que, por exemplo, nacionalizou a terra. Se a questão da terra tivesse sido resolvida de início na África do Sul e no Zimbabué, e se as melhores terras não estivessem, de uma forma desproporcionada, nas mãos dos brancos, todo o assunto da raça era outro. 

Numa intervenção que faz na universidade moçambicana fala da dificuldade de os africanos se pensarem como sujeito da história porque, primeiro, eles tinham sido negados, o seu território estava ausente e a sua identidade apagada; depois foram estudados como um caso clínico; agora são obrigados a sobreviver no “quintal da história”. A literatura pode ajudar a resgatar esses sujeitos?

Estou convicto que sim. Se for boa literatura, pode ajudar. Os escritores africanos que emergem com o seu valor literário próprio criam uma ideia diferente de África.

Nos seus livros há uma tensão de uma memória ligada ao passado e da realidade dos dias de hoje. Essa tensão é resolúvel? Há um caminho para incluir essas duas vivências?

Não vejo que nos meus livros essa dualidade seja colocada de uma forma que não é superável. Não posso ser eu a avaliar o que fiz, mas não é essa a minha intenção. Há ali sempre um lado de modernidade. Fui apresentar na Argentina a tradução do meu romance “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”, em que se relata aquela travessia que um jovem faz para ir a um funeral do avô, do outro lado do rio. É a travessia que qualquer moçambicano faz dentro de si para ter um pé na modernidade e um pé na memória. O que vejo em Moçambique é que isso é feito sem grande drama. As pessoas têm uma normal habilidade, acho que há uma coisa que os africanos têm que os habilita para a modernidade muito mais que outras regiões do mundo: a sua religiosidade é muito aberta e permite uma pluralidade de deuses. Muitos moçambicanos são muçulmanos e cristãos mas, ao mesmo tempo, são outra coisa. E essa outra coisa é o chão da sua alma e admite a existência de outros deuses, e isso é muito importante. 

No livro diz que cada pessoa tem três nomes numa etnia de Moçambique: o nome dos ossos, que vem dos antepassados; o nome da circuncisão, que vem da entrada na vida; e o nome dos brancos, que é o nome que lhe dão na escola. Essas identidades não são contraditórias?

Não se separam. É muito comum, e não só nessa etnia, o facto de as pessoas terem nomes diferentes ao longo da vida e até manterem muitos desses diferentes nomes. Você vai ver a página dos anúncios fúnebres e isso é muito claro: a pessoa é anunciada por um nome, que é o nome oficial, e mais abaixo, entre parentes, vê outros nomes: aqueles por que a pessoa é conhecida em casa, na família e na rua. Acho isso ótimo, dá conta, de uma maneira mais feliz, dessa multiplicidade de gente que está dentro de nós. Não somos só um.

Por falar em religiosidade, você é ou deve ser ateu.

(risos) Não praticante.

(risos) Deve ter sido marxista, pela idade e pelos cargos, mas tem essa abertura muito grande à religiosidade. Como é possível ter esse sentimento religioso sem acreditar em Deus?

Digo a brincar que sou um ateu não praticante. O termo mais certo para mim seria o de estar disponível a outras crenças. 

Pelas suas histórias ou pelo seu conteúdo?

Por aquilo que é fronteira entre religião e religiosidade. São coisas eventualmente diferentes. Aquele fascínio que eu tenho por aquilo que é sagrado e divino, que está em coisas que eu não sei explicar, eventualmente é parte do meu lado científico, essa racionalidade que é minha e europeia de não ficar tranquilo enquanto não entendo. Mas fui aprendendo pelo meu lado africano que não tenho de fazer isto por medo e pelo meu desejo de controlar. Hoje convivo muito bem com o que não sei, amo muito a minha própria ignorância. Não tenho de correr. Passa-se o mesmo com o silêncio e a maneira como se convive com ele. Aqui em Portugal, e na Europa, instala-se o silêncio no elevador ou numa mesa de refeição e é preciso resolver aquilo, esse vazio incomoda. Em África, esse vazio nunca é sinónimo de ausência e as pessoas ficam muito bem estando caladas juntas durante muito tempo. Nunca vi em lado nenhum de África, no momento em que, de repente, na conversa se instala o silêncio, que isso fosse algo que tivesse de ser resolvido o mais depressa possível.

No seu romance coloca a feiticeira a dizer a Germano que os dedos da mão são feitos da parte que não é mão, pela ausência e pelo espaço entre os dedos, e que ele, tendo perdido parte da mão, tem ainda mais espaço. Sendo você cientista e biólogo, o que lhe trazem estas histórias da origem dos vários povos, como aquela no livro em que diz que viemos da água? O que é que lhe acrescentam?

Eu peço a essas histórias é que me tragam beleza. Há ali alguma coisa que me fascina, quando se diz, por exemplo, a um bosquímano, do sul de África, que faça um desenho do Universo, é uma coisa fascinante: ele faz um desenho que parece uma sanduíche com várias camadas. O céu pode não estar em cima, e pode estar no meio. No meio daquilo tem uma estrela que é um tio, uma mancha azul que é o avô. Como é que seres, astros e criaturas de família estão todos misturados e vivem em camadas que parecem astros? Acho que esta relação e representação do mundo vale tanto como observar ao telescópio. Como é que eu explico a um camponês de Moçambique que nunca viu um caderno escolar e um computador, como é que explico que aquela estrela que ele está a ver já não existe. Ele acha isso encantador, acha que estou a contar-lhe uma história, mas não tem crença nenhuma nisso, não pode ter. Mesmo para si e para mim é pouco fácil de integrar na nossa racionalidade que uma estrela que vemos hoje está morta há muito tempo, porque dista não sei quantos milhares de anos luz. 

Escreveu que a ciência lhe simplificava a vida e que necessitava da literatura para lhe dar textura. O que lhe acrescenta essa textura. Você é cientista, não é?

Sou um cientista que é muito mau, tem pouca crença na ciência. Acho que a ciência é usada para aferir se alguma coisa é verdadeira ou não é. Aquilo que era verdade há 20 ou 30 anos, é hoje colocado em causa. Aquilo que a ciência sugere é que a resposta para a felicidade do homem e dos conflitos seriam soluções tecnológicas e de controlo que me parece que são um grande equívoco. A ciência foi muito contraditória: ao mesmo tempo que ajudou a combater crenças como o criacionismo, foi também uma grande aliada da religião cristã, para mostrar como os outros eram pouco civilizados; foi usada para negar as crenças dos outros que acreditavam nas almas e que as coisas podiam ser animadas no sentido de terem alma. Em certo sentido, a ciência foi aliada contra os outros modos de ver o mundo.

Mas também no combate contra o cristianismo?

Também. Sem dúvida. Mas a mim, o que me encanta na ciência não é a capacidade de dar respostas, mas de fazer as perguntas certas. E encanta-me como uma narrativa que está em permanente revisão.

E as respostas estão na literatura ou também estão na ciência, de alguma forma?

Quando a ciência diz que nós, a espécie humana, não somos o centro, ela está a confirmar o que a poesia diz. Quando a ciência diz que você não é só humano, está cheio de bactérias e vírus, mesmo a nível da sua composição genética, acho que isso é encantador e implica uma revisão fundamental de nós mesmos. Isto devia constar do ensino desde o princípio: nós somos uma mistura, cada um de nós é uma espécie de jardim zoológico. Quando falamos da natureza, não estamos a falar do meio natural como exterior a nós próprios. Há coisas que a biologia – estou a falar do meu ramo da ciência – tem para dizer que me parece que ultrapassam normalmente aquilo que me parece que é o discurso científico.

Disse uma vez que, quando há guerra e situações de desespero e catástrofe, a esperança refugia-se nalgum lugar, e acrescentou uma frase que me parece engraçada: “e sonha engravidar o futuro”. Quando vemos guerras e massacres como no Congo e se assiste ao genocídio no Ruanda entre tutsis e hutus, resta alguma esperança?

Nesse momento, a gente perde toda a nossa esperança. Mas por outro lado, há gente que tem vindo a estudar isso e aparentemente tem provas: parece que a humanidade tem vindo a reduzir os níveis de violência, embora relembrando esses conflitos parece que hoje se mata mais. Estes historiadores têm uma linha de pensamento que afirma que não é assim e que houve muitos e mais cruéis conflitos no passado.

A civilização é um fino verniz e isso não parece acontecer só em África – basta ver a ex-Jugoslávia, aquele nível de agressividade. Quem pode ser responsabilizado por isso: o colonialismo, os africanos, a humanidade em geral?

Alguém acreditava que os alemães fossem capazes das barbaridades que cometeram na ii Guerra Mundial? Quem poderia pensar que isso era possível? É, infelizmente, possível em momentos de crise profunda que desestruturam uma nação e lhe tiram a capacidade de resposta. Nestes momentos de profunda crise surge um manipulador e um grande salvador, as pessoas julgam que precisam disso, e estão reunidas as condições para que se invente um culpado. Eu tenho a convicção que a espécie humana tem mecanismos de inibição contra a violência, seja ela onde for, seja na Europa, na Oceânia, em qualquer ponto do planeta. Estive agora em São Paulo e noto uma coisa: quantas dezenas de milhões de contactos humanos há numa gigantesca cidade como São Paulo, e quantos conflitos existem? Muito poucos. Se você comparar o número de cruzamentos das pessoas humanas com o número de conflitos, percebe-se que não somos uma espécie agressiva por natureza. Temos fatores de inibição da violência que são fundamentais. O que acontece é que, por exemplo, para o agredir, eu tenho de dizer : “o Nuno não é uma pessoa.” Eu tenho que desumanizar a outra pessoa para aceitar a violência. É preciso isso para encontrar nele as culpas da minha própria desgraça e conseguir agredi-lo e matá-lo. Mas para isso é preciso fazer essa operação de desumanização do outro.

Vou citar Carl Schmitt, embora ele não tenha uma origem ideológica inatacável, mas a política não é também a expressão de um conflito, não existe um colonizador e um colonizado?

Veja esta história que eu escrevi no meu último livro: há um colonizador que é o europeu, que é a imagem clássica naquele quadro convencional. O colonizador está na Europa e o colonizado em África, mas aqui há também uma outra potência colonizadora que é africana e que exerce esse poder sobre outros povos africanos. Esta potência que construiu o Estado de Gaza, colonizou o sul de Moçambique a partir da África do Sul. E colonizou com tanta violência como o feito pelos europeus. 

Quando houve tráfico de escravos também houve interesses e elementos africanos que participaram nessa operação de escravização de outros povos. Isso não quer dizer que para haver emancipação não se tenha de combater um inimigo. Nada nos obriga a torturar, violar e matar.

Claro que se tem de combater. Quando a Frelimo – e estou à vontade porque até fiz parte deste movimento -, mas quando ela elegeu um inimigo, ficou claro que esse inimigo não eram os portugueses enquanto pessoas, mas o sistema colonial. Pode-se fazer isso, não é necessário ter esse grau de animalização da violência para combater um inimigo.

Porque é que todas utopias em África resultam nestas caricaturas por vezes trágicas? Como é que o sonho de toda uma geração deu, em muitos países, em cleptocracias?

Em primeiro lugar, não quero cair na tentação de arranjar sempre uma razão externa para o que aconteceu em África e assim desresponsabilizar-nos a nós, africanos, do que sucedeu, para salvar os africanos da sua própria responsabilidade. Mas é preciso dizer que a utopia em Angola e Moçambique era uma utopia socialista, e esta espécie de socialismo não deu certo em lado nenhum: veja o que aconteceu na União Soviética, na Bulgária e em tantos sítios, fruto daquela ideologia que parecia igualitária e uma utopia de salvação, mas não resultou. Por outro lado, se você olhar para alguns dos dirigentes africanos – e vou para um exemplo que conheço bem -, Samora Machel cometeu alguns erros políticos graves, é verdade, mas Samora Machel era um homem íntegro. Morreu sem que pudesse ser-lhe apontada alguma riqueza suspeita ou alguma apropriação do erário público, era um homem exemplar do ponto de vista da moralidade que tem de ter um dirigente político. Ele foi vítima de uma estratégia de demonização por parte dos Estados Unidos, que viam o mundo todo que não era deles como sendo da União Soviética. Quem é que criou Bin Laden? Foi quem apoiou Idi Amin no Uganda. As situações de dirigentes mais caricatos e cruéis foram feitas sempre com compadrio e intervenção externa. Não houve um caso que fosse criado endogenamente. O apartheid não era criticado nos EUA porque se pensava que o ANC era comunista e pró-soviético.

E de alguma forma era. E não era mal nenhum. Veja-se o papel do Partido Comunista da África do Sul e do seu secretário-geral Joe Slovo, que comandou a guerrilha do ANC.

O ANC era uma frente, tinha comunistas e muitos que não eram comunistas.

No caso dos movimentos de libertação nacionais das ex-colónias portuguesas tem o papel da casa dos Estudantes do Império e de militantes do PCP no desenvolvimento de quadros anticoloniais…

No caso de Angola e de Moçambique até havia uma opção do MPLA e da Frelimo pelo marxismo--leninismo. Nunca se escondeu que eram regimes com essa orientação. Mas isso foi visto como estes tipos são os demónios e há que casar com outros demónios para os exterminar. A guerra que foi feita contra Moçambique não tinha razões internas. Moçambique foi caindo porque foi objeto de uma agressão continuada que começou na Rodésia e na África do Sul, que criaram e apoiaram a Renamo.

Trabalhou num jornal que foi destruído na tentativa de golpe de Estado em Moçambique promovida pelo Jorge Jardim.

Colocaram uma bomba dentro do meu jornal. E foi atacado sucessivas vezes. Uma delas, eu estava lá dentro. Olhava para essa gente que depois fez aquilo que a gente chama o golpe de 7 de setembro de 1974 e não deixava de ter pena das pessoas que me queriam agredir. Elas estavam a ser vítimas de uma cegueira. Como é que se podia pensar que, em 1974, aquilo que tinha acontecido em toda a África não se ia passar ali? Como é que se poderia acreditar que “o Mário Soares tinha vendido a África aos comunistas”, como era dito por essas pessoas? Era uma coisa totalmente ignorante. Essa gente que saiu à rua e se expôs era manipulada por pessoas que tinham grandes interesses, e esses não foram para as ruas e não se expuseram. 

Afirma que as pessoas têm a fome de fronteiras e que mesmo as membranas que envolvem os organismos vivos são tão vivos como aquilo que protegem. Quais são as suas fronteiras?

Sou atravessado por mil fronteiras. Em Moçambique há várias fronteiras que atravessam e me atravessam: sou filho de portugueses, sou branco, sou africano e vivo num país de negros. Estou no meio da religiosidade e sou ateu. Sou cientista numa sociedade oral. Se eu disser aos meus colegas cientistas que aquela árvore que está ali, de noite, pode ficar um homem, as pessoas acham perfeitamente possível, e são bons cientistas, melhores que eu.

Mas têm uma dupla vida.

Acho maravilhoso que alguns mudem de fusível. Não há essa pressa de qualificar e de avaliar tudo à partida. As pessoas estão disponíveis e abertas às coisas. Faço isso com uma grande facilidade. Isso salvou-me da grande tristeza de ter perdido os meus pais, a ideia de um tempo circular em que a gente não morre nunca. Quando morreu o meu pai, e a minha mãe depois, pensei “agora é o momento em que se fica sozinho”. Não podia mentir a mim próprio. E lembro-me que, quando foi o funeral, passou por mim um fulano e eu disse-lhe: “Como é que vou conseguir revisitar esta campa?”. E ele respondeu-me: “Você não precisa de revisitar, você é o seu pai.” E vou dizer-lhe uma coisa: eu vejo gestos do meu pai em mim, ele está aqui, cá dentro. 

No seu livro há uma passagem em que diz que os europeus pensam na morte e os africanos tratam dos mortos.

Em África não há essa rutura definitiva. A morte não existe como fenómeno total. Os mortos estão aqui, não só estão vivos como comandam o nosso quotidiano. Esta nossa conversa não se passa a dois. Por isso é que não há receio do silêncio, há sempre vozes que estão a chegar.

E o tempo é diferente? Uma reunião não é para acontecer mesmo na hora marcada?

Aí sou pouco tolerante: a partir do momento em que um indivíduo tem um relógio e vive na modernidade, se é um jornalista, um empresário ou um quadro, deve chegar a horas.

Ainda dizem nas ruas: “Estou-lhe pedindo as horas?”

Dizem, e dizem horas de tempo. É muito engraçado, precisam de caracterizar as horas. Acho que por detrás desse folclore esconde-se muita falta de respeito pelos outros. Alguns dos meus colegas dizem: “Os europeus têm o relógio, mas nós temos o tempo.” Para mim, esta frase não faz sentido. Não é aceitável que deixemos os outros à espera.