Quando as prisões são palco de práticas medievais

Do Brasil e da Venezuela chegam-nos relatos tenebrosos de decapitações, corpos queimados e até canibalismo, resultantes das disputas entre os gangues que governam as prisões à distância

Quando o cerco ao Centro de Detenção de Táchira chegou ao fim, a polícia venezuelana procedeu à indispensável contagem dos prisioneiros. Faltavam duas pessoas: Juan Carlos Herrera Jr. e Anthony Correa. Vinte e nove dias antes, os detidos daquele estabelecimento prisional, situado perto da fronteira colombiana, decidiram amotinar-se em protesto contra a sobrelotação da prisão, onde 350 pessoas se amontoam num espaço com capacidade máxima para apenas 120.

O macabro destino dos dois desaparecidos foi conhecido dias depois e revelado na primeira pessoa pelo pai de um deles. Tinham sido comidos.

“Consegui falar com alguém que esteve com (…) [o meu filho] nos calabouços e que me disse que o apunhalaram”, começou por contar, citado pelo site local El Pitazo, um Juan Carlos Herrera Sr. destroçado, em conferência de imprensa. Com lágrimas a escorrerem–lhe pelo rosto, narrou, com angústia, os pormenores da morte do filho. “Chamaram Dorancel Vargas – conhecido como o ‘Come-gente’ – para que o esquartejassem e obrigaram os restantes presos a comerem a carne do meu filho e do outro rapaz.”

Ao canal latino da estação norte-americana Fox News, um representante da polícia de Táchira confirmou que os dois reclusos foram “desmembrados” e “comidos”, numa ação liderada pelo tal Vargas, um homem que está encarcerado desde 1999 sob a acusação de “canibalismo”.

Segundo o pai da vítima, duas pessoas ligadas aos líderes que desencadearam este motim, no início do mês de setembro, contactaram-no e pediram-lhe dinheiro em troca de colocarem o filho numa cela menos perigosa do centro prisional – um pedido a que Herrera acedeu prontamente, o que não bastou aos chantagistas. Poucos dias depois de ter feito o pagamento, apareceram-lhe em casa e ameaçaram roubar-lhe o carro. Pelo rumo da conversa, Juan Carlos Sr. percebeu que o filho já estava morto.

“O que mais me dói é que não posso enterrar o meu filho nem posso dar-lhe um enterro cristão”, lamentou o pai do falecido. “Ao menos peço-lhes que me entreguem um osso para poder enterrá-lo e acalmar um pouco a dor que sinto”, apelou.

Herrera denunciou ainda que foi a falta de acordo entre o governo venezuelano e o governador de Táchira que impediu que se fizesse uma intervenção policial mais célere, o que resultou no prolongamento do cerco ao estabelecimento por quase um mês.

Além de revelar o cruel destino de Juan Carlos Jr. e Anthony, Herrera contou aos jornalistas que foram ainda registados, durante o motim, “abusos sexuais” a funcionários da prisão, “amputações” a quatro reclusos e “golpes de martelo” aos polícias que foram feitos reféns durante a revolta.

Guerra de gangues e decapitações
Um pouco mais a sul, no vizinho Brasil, dois motins em duas prisões distintas, na região amazónica, resultaram na morte de um total de 18 pessoas no espaço de apenas 48 horas. Numa delas há inclusivamente relatos de decapitações e corpos carbonizados.

De acordo com a imprensa brasileira, as revoltas tiveram origem em ordens dadas por organizações criminosas, com sede em cidades situadas a milhares de quilómetros dos estabelecimentos onde os motins tiveram lugar. Falamos no “Primeiro Comando da Capital” (PCC), de São Paulo, e no “Comando Vermelho” (CV), que opera no Rio de Janeiro, dois conhecidos gangues que têm membros espalhados um pouco por todo o Brasil e, dada a natureza do seu ofício, também contribuem para encher as prisões brasileiras de norte a sul.

No passado domingo, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, no estado de Roraima, um grupo de encarcerados ligado ao PCC aproveitou o horário de visitas na prisão para invadir uma outra ala do estabelecimento onde se encontravam os membros do rival CV. Segundo a Globo, os cerca de 100 familiares que estavam de visita foram feitos reféns durante os confrontos entre os dois gangues.

No final, nenhum dos sequestrados ficou ferido. Mas na ala 12 da prisão, onde tiveram lugar os combates mais violentos, foram encontrados sete corpos carbonizados e três prisioneiros decapitados. “Os reclusos estavam armados com pedras e pedaços de madeira (…) e com esses pedaços decapitaram os seus rivais”, explicou Jessica Laurie, uma porta-voz das autoridades de Roraima, citada pelo jornal argentino “La Nación”. “Pelas informações que temos, uma fação do PCC deu a ordem para que se matassem todos os membros do grupo rival CV”, contou ainda.

Se o primeiro round do confronto entre adeptos das duas organizações teve lugar junto à fronteira com a Venezuela e com a Guiana, já a resposta ocorreu numa zona oposta da Amazónia, junto à vizinha Bolívia, no dia seguinte. Na Penitenciária Estadual Énio dos Santos Pinheiro, em Porto Velho, no estado de Rondónia, oito encarcerados morreram, asfixiados pelo fumo provocado pela incineração de vários colchões.

Jobson Bandeira, diretor da prisão, revelou à Globo que o incêndio foi provocado pelas “fações rivais”, depois de uma “briga” que ocorreu na madrugada de segunda-feira. Outros dois prisioneiros foram levados para o hospital e estão em “estado grave”.

Situações “Pontuais”
Os motins ocorridos nas duas prisões brasileiras em apenas dois dias, e aparentemente originados por ordens vindas de São Paulo e do Rio, não pedem uma atuação “extraordinária” por parte das autoridades, defende o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. “Obviamente que a situação é gravíssima, com mortes, mas vamos ver se persiste ou não e, a partir daí, tomar as medidas necessárias”, considerou o ministro, citado pela “Folha de São Paulo”. Questionado sobre a ausência de um pedido de apoio à Força Nacional brasileira, para lidar com as revoltas dos detidos nos estabelecimentos prisionais, Moraes justificou que os episódios ocorridos em Boa Vista e Porto Velho foram “situações pontuais”, pelo que não vê necessidade de um reforço da segurança.