António Zambujo. “Todas as homenagens são poucas quando se fala do Chico”

O Chico. O Buarque. Um dos maiores da música em português. É a ele que António Zambujo, o fadista que é cada vez menos fadista, quis prestar homenagem no álbum “Até Pensei Que Fosse Minha”, que nasceu em noites longas de tertúlias, entre Lisboa e o Rio de Janeiro.

Encontro marcado em local improvável. É a casa do road manager de António Zambujo, em Lisboa, que serve de cenário para esta conversa. As primeiras palavras são trocadas numa cozinha com caixas de vinho a ocuparem o balcão, e prosseguem, descontraídas, já na sala, copo de uísque na mão, olhos postos lá fora, onde o vento faz as árvores dançarem e o sol dourado brinca às escondidas com os prédios. Fechamos os olhos e, depressa depressinha, estamos no Rio de Janeiro. Pensamos em noites longas, regadas a bossa nova, samba e chorinho. Aquelas noites longas de onde brotam coisas boas.

Foi aí, entre um e muitos copos, que a amizade entre António Zambujo e Chico Buarque ganhou força de oceano e, sem grandes justificações, forma de homenagem. E não interessa se, quando somos pequenos, nos dizem que “porque sim” não é resposta. Porque é mesmo “porque sim” a resposta de António Zambujo à razão para fazer “Até Pensei Que Fosse Minha”, álbum de homenagem a Chico Buarque, que chega agora ao público, cerca de um ano e meio depois do lançamento de “Rua da Emenda”, anterior álbum do músico que este ano esgotou quase 30 Coliseus (ao lado de Miguel Araújo). “Acho que todas as homenagens são poucas quando se fala do Chico, da obra dele, de tudo o que ele já fez em relação à música e à escrita em português. Era inevitável por isso mesmo, porque ele é um dos maiores, se não mesmo o maior autor, de música cantada em português”, diz António Zambujo, aproveitando para brincar que, assim que soube da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan, apenas um pensamento lhe ocorreu: “O próximo vai ser o Chico. Só pode ser o Chico!”

Foi em 2008 que o músico que aos quatro anos começou a cantar sentado no balcão da Taberna do Cintra, em Beja, se começou a aproximar do Brasil. Numa visita a Portugal, a jornalista brasileira Marília Gabriela comprou “Outro Sentido”, terceiro álbum de Zambujo, e ofereceu-o a Caetano Veloso. Surpreendido com que ouviu, escreveu no seu blogue que Zambujo era “um jovem cantor de fado que faz pensar em João Gilberto” e que era “de arrepiar e fazer chorar”. Foi a partir daqui que o mundo despertou para o cantor alentejano. E quando finalmente deu o primeiro concerto no Rio de Janeiro, no Jardim Botânico, António Zambujo deparou-se com uma plateia com a qual nunca poderia ter sequer sonhado. “Estava no palco e na plateia estavam o Caetano, o Moreno, que é filho do Caetano, o Ney Matogrosso, o Milton Nascimento, o Chico Buarque… Só pensei que estava tudo ao contrário. E no final vieram todos falar comigo.”

O que estes músicos não sabiam na altura era que há muito que tinham entrado de rompante na vida do alentejano. Foi João Gilberto que abriu caminho para a música brasileira na vida de Zambujo. Depois, com João Gilberto, “veio um bocadinho de todo o Brasil porque ele, enquanto intérprete, cantava tudo, desde coisas mais antigas ao movimento Bossa Nova, ao Chico, ao Tom [Jobim], ao Vinicius [de Moraes], a todos esses autores de que depois, a partir do João Gilberto, fui começando a encontrar ramificações, para a frente e para trás, como o Pixinguinha, o Noel Rosa, o Cartola.”

A partir deste concerto de estreia, sempre que António_Zambujo ia tocar ao Rio de Janeiro era certo que havia “um almoço, um jantar ou qualquer coisa” com alguns dos músicos que estiveram naquela plateia. Sobretudo com Chico Buarque, de quem se tornou amigo. Por isso, o músico sublinha que foi de forma natural que nasceu esta homenagem. Menos fácil foi a escolha dos 16 temas que constituem este “Até Pensei Que Fosse Minha”. “A pré-seleção tinha quase 100 músicas. Estar a escolher os temas mais importantes na obra do Chico, que se estende num espetro de quase 40 anos de carreira, foi complicado. Depois, a subtração e a escolha de alguns temas – por exemplo, o caso específico de um tema que é o “Cecília” foi sugerido pelo Chico, que era uma música que nem conhecia e só depois fui pesquisar. Outras foram sugeridas pelo Marcelo Gonçalves, que é o diretor musical do projeto; e pelo João Mário Linhares, que é o produtor executivo e o nosso empresário no Brasil, e amigo, e também gosta daqueles ambientes de tertúlia à mesa em que, depois de 50 garrafas de vinho, começamos a ter ideias criativas. Tudo foi surgindo assim.”

Foi assim que nasceu então aquele que Caetano Veloso – que assina o texto de apresentação do álbum – considera “o primeiro disco lusitano dedicado a um só autor brasileiro de canções”, sublinhando a “elegância do estilo” de António Zambujo, que atribui “à sua atenção à música popular do Brasil”. No mesmo texto, Caetano, que de resto tem responsabilidades nesta amizade e, em última instância, neste álbum, elogia as participações da “brasileiríssima” Roberta Sá e da “superfadista” Carminho, que considera trazerem “mais beleza para dentro da cúpula sonora”. Mas é a entrada em ação do próprio Chico Buarque, no tema de 1973 “Joana Francesa”, que “leva o ouvinte a grande exaltação, como se a geografia e a história dos nossos países se encarnassem, unificadas, no canto duplo (que é o único em todo o disco onde se ouve outra língua – o francês)”. As questões linguísticas da distância estão, aliás, no centro da análise de Caetano Veloso: “Zambujo faz questão de manter a verdade do tom coloquial português. Mas a nossa língua só se engrandece com esse trabalho. No timbre e na prosódia lusitana de António as canções de Chico parecem postas numa perspetiva que dá ao brasileiro uma tomada de distância – no espaço e no tempo – que o leva às lágrimas, assustado que fica com a nova evidência da sua grandeza.”

Aos 41 anos, o fadista que é cada vez menos fadista podia ter feito outro disco, completamente diferente. Tinha até já temas inéditos preparados. Mas sentiu que este era o momento certo para encerrar um ciclo. E Chico Buarque o companheiro ideal para o fazer. E ainda que não saiba qual será o rumo a seguir a partir daqui, António Zambujo sabe ao que não virará costas: “É muito importante a música assentar em pilares sólidos. E os meus pilares são as minhas memórias musicais, as minhas primeiras influências: a música tradicional, principalmente da minha região, o Alentejo, e o fado. Essas estarão sempre presentes, de uma forma mais ou menos evidente serão sempre um pilar de toda a minha música. Depois, em cima disso… sabe-se lá”.