Caos. “Só queria ver neste trânsito diário quem inventou estas obras”

Fomos de Entrecampos ao Cais do Sodré ouvir quem se tornou vizinho das empreitadas. Como já seria de esperar, os comerciantes não estão (nada) satisfeitos

Estamos apenas com uma banca de jornais do dia e uma pilha de maços de tabaco a separar-nos, mas é preciso repetir três vezes a pergunta para que Sagar perceba. “O barulho? Realmente é muito chato.” Depois de terem começado nas extremidades – Entrecampos e Marquês de Pombal –, as obras começam agora a afunilar para a zona entre Campo Pequeno e Saldanha. Neste momento estão a decorrer precisamente atrás deste quiosque montado de costas voltadas para a praça de touros. Há uma máquina a furar alcatrão e várias a empurrar o entulho que se vai acumulando. No meio da estrada são muitos os trabalhadores identificados por coletes amarelo-fluorescentes e a berma da estrada fica reservada para a polícia municipal que, entre gestos largos e apitos, vai controlando os corajosos que atravessam o Eixo Central em hora de ponta.

Sagar já se habituou ao barulho e acredita que se todos, como ele, pensassem no resultado final, não haveria tantas queixas. Mas como as promessas de início de obra já estão perdidas na memória de quem lá passa todos os dias, recordemos o projeto final. No dia 3 de maio foi dado início a nove meses que preveem a criação de uma Praça do Saldanha com calçada portuguesa, esplanadas e jardins, e uma Avenida Fontes Pereira de Melo com passeios mais largos e ciclovias em toda a sua dimensão.

Os prazos mantêm-se e Fernando Medina fala em “início de fevereiro” como a altura em que os trabalhos estarão totalmente terminados. Apesar do otimismo camarário, o cenário atual está bem longe do apresentado pelo presidente da câmara como sendo o futuro da zona central de Lisboa e as queixas multiplicam-se entre moradores, comerciantes ou simplesmente quem tem o Eixo Central como via de passagem diária no trajeto casa-trabalho–casa. “Chegam-me aqui clientes a dizer que demoraram 40 minutos a vir da rotunda de Entrecampos”, conta ao i Pedro Figueiredo, proprietário do Art Café, que faz esquina entre a Avenida da República e a Júlio Dinis. E para quem não tem o mapa de Lisboa na cabeça, Pedro dá uma ajuda. “É coisa para se fazer em cinco minutos a pé.” 

Ao contrário de Sagar, o proprietário deste café não consegue ver o resultado final como um oásis no meio do caos. “Tudo isto para quê? Para termos mais bicicletas? Ninguém aqui anda de bicicleta para ir trabalhar.” Sem saber apontar nomes – “o ministro, ou o presidente da junta ou da câmara” –, Pedro lança o desafio a quem de direito: “Só queria ver neste trânsito diário quem inventou essas obras. Isso é que eu gostava.”

Corpo Santo Deixemos o Eixo Central e passemos para a margem do rio. O Cais do Sodré é outra das zonas que vão nascer de cara lavada e, neste momento, já é possível antever como ficará a obra na Praça Duque da Terceira. Ouvem–se carros a apitar – nada de novo, aliás – mas, na praça, o trânsito, à exceção da hora de ponta, já circula com relativa normalidade.

Do lado do rio, logo à saída da estação de comboios, já há calçada nova (e, já agora, também cheira a castanhas). Também é possível perceber os contornos do novo jardim que, pouco a pouco, toma forma no meio do estaleiro. Se, para os automobilistas, a situação parece cada vez menos complexa, para transeuntes e comerciantes, a história é outra.

Ao lado da praça, na Travessa do Corpo Santo e na Rua Bernardino Costa, as lojas foram especialmente afetadas. “Desde a Praça do Município até aqui não havia um local de passagem”, conta Susana Rodrigues, funcionária do Cais Pimenta Rosa, uma loja de produtos tradicionais portugueses aberta há um ano e meio que faz esquina entre as duas ruas. “Para nós tem sido péssimo desde o início da obra, mas o mês de setembro, nem se fala.” Com aquele lado do passeio da Rua Bernardino Costa fechado e sem nenhuma passagem para o outro lado da rua, Susana conta que houve dias em que recebeu menos de uma mão-cheia de clientes. Para o provar, saca de um caderninho debaixo do balcão onde anota o número de entradas na loja. “Olhe, no dia 5 de outubro entraram cinco pessoas. No dia seguinte, quando abriram uma passagem entre os dois passeios, entraram 75.” 

Desde o início da obra que os comerciantes pediam que houvesse forma de transitar entre os dois lados da rua para tentarem perder o menor número de clientes possível. Enviaram reclamações para a câmara, mas dizem nunca ter obtido resposta. “Não sei como é possível fazer as coisas assim, deixar tudo em estado de sítio sem contemplar os comerciantes.” 

Na esquina oposta, Fátima Mota, dona da loja de roupa S’carpa, queixa-se do mesmo. “Fui uma das pessoas que mais discutiram, nunca me deram ouvidos. Antes de começarem as obras deveria ter vindo alguém da câmara falar com os comerciantes e explicar o que ia acontecer, até para nos precavermos relativamente ao nosso negócio.”

Com os acessos à loja basicamente fechados durante o verão, a hipótese de encerrar o espaço que abriu há 11 anos paira cada vez mais próxima. “Houve dias em que fiz dez euros”, conta. “Claro que pensei em fechar tudo e ir para o fundo de desemprego. Nem as portas podemos ter abertas por causa do pó, é horrível”, diz, enquanto a única funcionária da loja vai anuindo com a cabeça. “Nem dá para parar e fazer cargas e descargas, já tive de trazer caixotes às costas mais de 200 metros, veja lá.” 

Fátima diz que a situação está um bocadinho melhor. Antes “parecia que tinha havido um terramoto”, descreve. “Desde que abriram uma passagem entre os dois passeios, está menos mau”, diz a proprietária, que acredita que toda a situação poderia ter sido evitada. “A obra foi mal estruturada. Tinham dito que iam fazer isto por fases e, na realidade, o que vemos são obras por todo o lado.” 

Com a corda a desapertar um bocadinho do pescoço e as obras mais avançadas, terminamos com a pergunta que se impõe: o sacrifício vai valer a pena? “Tenho dúvidas”, diz a proprietária. “Mas a Praça Duque da Terceira vai ficar espetacular.”