Web Summit. A internet está a tornar-nos mais estúpidos?

As discussões éticas também têm lugar na Web Summit. O comediante britânico David Schneider trouxe uma visão otimista. Já Silicon Valley não está tão tranquilo: há incentivos perversos a viciar-nos na tecnologia.  

Web Summit. A internet está a tornar-nos mais estúpidos?

Quem é que leva o telemóvel para a casa de banho? David Schneider estava a tocar na ferida. Não há ninguém na plateia que não levante o braço. “Não o lavam depois, não é?” O comediante britânico foi ontem uma das atrações mais populares na sobrecarregada agenda da Web Summit e fez o seu mea culpa: “Eu durmo com o telemóvel, faço conchinha com o telemóvel.” O objetivo da sessão era responder a uma pergunta provocadora: a internet está a tornar-nos mais estúpidos? E trazia água no bico: uma imagem mostra um vagão de comboio com todos os cavalheiros agarrados aos seus jornais no velho formato broadsheet. “Eram os bons velhos tempos”, ironizou. “Eu achava que a internet nos estava a tornar mais estúpidos, até começar a pensar melhor”, disse Schneider, comparando o alheamento causado por telemóveis e redes sociais ao poder de atração dos livros e jornais. “Quem já leu ‘Madame Bovary’? É um livro sobre maus livros e, se trocássemos as palavras, podia ser um blogue a dizer mal da internet. Quando se diz que se leu até de manhã livros cheios de imagens de orgias, é como se tivesse passado a noite no Pornhub.”

Então porque é que os livros eram “ok” e a internet não? Foi a segunda pergunta dirigida à audiência. Schneider preferiu focar-se nas diferenças e falar do lado positivo, lembrando que sempre fez parte da humanidade ser cética em relação à novidade, sobretudo quando vem roubar o espaço da tradição. “É como quando os romances substituíram os poemas épicos e os críticos diziam que não havia rimas.” Hoje, defendeu o comediante, passámos de uma abordagem vertical ao conhecimento, que dantes era mais profundo com a leitura, para um abordagem mais horizontal no digital, menos profunda mas mais abrangente. No fundo, acrescentou, trata-se de uma forma diferente de ter acesso ao conhecimento.

O poder unificador das hashtags

Se pode haver contraindicações e perigos no mundo virtual, no que toca a discutir o impacto ético da tecnologia parece estar a emergir um lado bom: um maior “sentido de comunidade”, disse Schneider, que nos últimos anos passou a conciliar os palcos com uma empresa de gestão de conteúdos. “As hashtags são o símbolo disso, permitem unir pessoas afastadas em torno de ideais comuns”, disse. Seja #xfactor, #welovethenhs ou #jesuischarlie.

Ao mesmo tempo criam-se experiências, muitas vezes virais, que podem parecer disparatadas mas reforçam a empatia (mesmo que também haja casos de trolls e mensagens odiosas). Não faltaram exemplos, todos a fazer soltar as gargalhadas da plateia: da mulher que partilha nas redes sociais que o tio faleceu e começa a ser gozada pelo perfil do familiar alegadamente saído do mundo dos mortos ao caso do adolescente britânico que ficou sem papel higiénico num comboio da Virgin no final de 2014. “Fiz um cocó razoavelmente grande e o rolo acabou no comboio das 19h30 da @virgintrains de Euston para Glasgow. Por favor enviem ajuda”, twitou da casa de banho. A empresa, “tagada” no tweet, respondeu em dois minutos e o papel higiénico foi entregue a tempo. “Estava a torcer por ele. Senti-me melhor como ser humano por o rapaz ter conseguido ter o rabo limpo”, brincou Schneider. 

Se as anedotas são fáceis de encontrar, o comediante defendeu que as modas na internet – com as selfies a coroarem tudo – acabam por ser rituais, que historicamente sempre foram uma forma de aproximar pessoas. E quanto ao olhar reprovador que todos lançamos sobre grupos de amigos sentados à mesma mesa sem trocar palavra, de olhos postos nos ecrãs, Schneider, empenhado em celebrar a internet (aliás, pediu a todos que o fizessem, em vez de só se alertar as crianças para os malefícios), mostrou outro prisma: estão a falar com outros seres humanos, se todos o fizerem ao mesmo tempo, qual é o problema? É ser malcriado? “As regras de educação mudam com o tempo. No passado, os piropos também não tinham problema.” 

Falou ainda do poder democratizador da internet, do acesso à informação à liberdade individual. “Hoje em dia, qualquer pessoa consegue ter uma ideia e partilhar uma piada. Quando comecei como comediante, só conseguíamos ter visibilidade quanto tínhamos o apoio da BBC.”

Em suma, a internet está a tornar-nos mais estúpidos? Mais superficiais, talvez, admitiu o comediante, mas não necessariamente parvos. “A internet permite-nos ser divertidos e criativos e mudar algumas coisas. Não há só coisas más.”

Incentivos perversos ameaçam as boas ideias

Há, porém, ameaças mais sérias do que os feeds inundados de situações ridículas, citações mal atribuídas ou tentativas de piadas. O tema da ética e valores na tecnologia esteve também em discussão com quatro empreendedores de Silicon Valley. Também eles, num registo mais sério, pediram para a plateia levantar o braço: quantos se sentem viciados no telemóvel?, queriam saber. Mais uma vez, a maioria admitiu que sim. Tristan Harris, descrito pela revista “The Atlantic” como “a coisa mais parecida com uma consciência em Silicon Valley” e defensor do design responsável na startup Time Well Spent, alertou para a “economia da atenção” que domina a inovação tecnológica e leva as empresas a desenvolver aplicações destinadas a prender cada vez mais os utilizadores, porque isso é a forma de conseguirem receitas com publicidade. “Incentivos perversos” que acabam por contribuir para o vício de muitos e para os quais os utilizadores não estão minimamente sensibilizados. “A maior parte dos utilizadores não tem noção de que do outro lado do computador estão pessoas que vão trabalhar todos os dias a pensar como prendê-los.”

Joe Green, cofundador da Causes – organização que encoraja a filantropia através das redes sociais e desenvolveu a ferramenta do Facebook que permite fazer donativos -, não hesitou nas comparações. “Enquanto sociedade, optámos por regular as coisas aditivas, os cigarros, a droga. Começamos a regular o açúcar. Não sei qual é a solução, mas temos de criar uma solução”, disse, dando o seu exemplo pessoal: todas as semanas tem o seu sabbath, 24 horas sem olhar para o telemóvel. “Custa, mas no final tenho muito mais energia.”

O painel testemunhou nunca ter visto ninguém em Silicon Valley que não quisesse tornar o mundo melhor de alguma forma, mas as fronteiras não são sempre claras. “A maior parte das empresas tem uma história por detrás, algo que acreditam valer a pena. Dito isto, não é claro o que é bom para o mundo e o que dá dinheiro, e como equilibrar isso”, disse Joe Lonsdale, da 8VC, uma empresa de capitais de risco.

Partilharam que muitas empresas procuram ter um comportamento ético e até desenvolver alguma responsabilidade social e filantropia, mas ficou um alerta: um dos temas por explorar é a destruição de empregos que, com o avançar da era tecnológica, só vai piorar. “Quando houver carros sem condutor, milhões de pessoas vão perder o trabalho e as empresas podem estar a pensar ‘isso não é um problema meu’”, denunciou Joe Green, apelando a mais debate, até porque a globalização acabará por gerar cada vez maior frustração numa parte da população que verá os seus negócios diminuídos. “Programámos o trabalho como centro da existência da pessoa. O que acontece se passarmos a ser um mundo onde não é preciso trabalhar, onde vamos encontrar satisfação?” E subsistência?

Com muito do debate por fazer, há perigos que já estão aí. Questionados sobre a empresa com mais problemas de ética, foram perentórios: o Twitter e os seus bots a hierarquizar os posts, e perfis falsos, que permitem manipular informação. Mas até com as eleições norte-americanas na ordem do dia, alertaram para a facilidade com que alguém que queira simplesmente 'chamar a atenção' pode tornar-se viral e subir de popularidade à conta das redes sociais, porque é isso que as alimenta. Trump é o exemplo derradeiro, apontaram, comparando-o a um psicólogo social que percebe exatamente o que fazer para ser falado e tem o novo mundo da tecnologia à sua disposição. Soluções? Não têm. Se há bug que tanta mente empreendedora, por estes dias em Lisboa, tem para resolver é também este.