O retrato do homem enquanto monstro

A história de um quadro que envelhece no lugar do retratado e que, ao mesmo tempo, separa o agente de toda a sua culpa. Obra maior de  Oscar Wilde,  “O Retrato de Dorian Gray” acaba de ser reeditado em português

Consideremos o seguinte caso: uma pessoa nos seus quarenta, boa forma física e aparência saudável, mas que decide consultar um psiquiatra porque se sente adinâmica, sonolenta e, pior que tudo, com uma impressão de vazio quase a rebentar as costuras do peito. Chegou à consulta por recomendação de um dermatologista ao qual recorrera anteriormente. De acordo com o que conta, nos últimos meses tem passado parte das manhãs em frente ao espelho, obcecada com a perda de cabelo. Diz também que sente que rapidamente vai ficar careca, apesar de nenhum médico lhe ter diagnosticado qualquer causa dermatológica ou ter sequer comprovado que a perda de cabelo estava de facto a acontecer. Este caso faz parte de um artigo publicado em 2001 no “International Journal of Clinical Pharmacology and Therapeutics”, sob o título “The Dorian Gray Syndrome: psychodynamic need for hair growth restorers and other ‘fountains of youth’”. 

Ter o próprio nome ou o de uma personagem imortalizado numa síndrome é, no mundo da literatura, um dos mais raros e preciosos reconhecimentos a que um escritor pode almejar, garantindo-lhe entrada num panteão do qual fazem parte portentos como Shakespeare (síndrome de Otelo), Dickens (síndrome de Pickwick), Stendhal (síndrome de Stendhal), Flaubert (síndrome de Bovary) ou J. M. Barrie (síndrome de Peter Pan). Talvez só mesmo ver o próprio nome transformado em adjetivo (maquiavélico, kafkiano ou dantesco, por exemplo) signifique reconhecimento maior.

Fora a piada, o significado desta ideia deve recordar-nos algo importante: que a ficção, a espaços, consegue chegar ao terminus a que a técnica ainda só chegou sentada nos ombros da literatura, à criação de vida humana a partir do nada (Galatea, o Monstro de Frankenstein). Num texto acerca de “Catcher in the Rye”, o crítico literário Clifton Fadiman reparou nisto mesmo ao dizer que com Holden Caufield, o protagonista do livro, Salinger logrou um dos mais raros milagres da ficção, a criação de um ser humano a partir de tinta, papel e imaginação. Com Dorian Gray, cujo retrato, talvez por magia, talvez graças a um pacto com o diabo nunca explícito no livro (mas implícito na forma como Lord Henry o seduz) envelhece no lugar do retratado, Oscar Wilde conseguiu anos antes o mesmo feito. E talvez seja possível estabelecer uma ligação entre estas duas personagens, não num sentido de paralelismo, mas numa certa sequência, já que ao contrário do que acontece com Salinger, Wilde insistiu em ver para lá inconformismo juvenil, da desilusão com o mundo adulto, perscrutando aquele momento em que muitos de nós acabam por acordar o monstro. Dorian Gray é, neste sentido, aquilo em que nos podemos tornar quando o mundo nos rasga os pedaços de Holden Caufield do corpo.

Na história, ambientada na época vitoriana, a beleza juvenil de Dorian Gray captura o interesse do pintor Basil Hallward, que decide retratá-lo. Inebriado pelas palavras de Lord Henry, amigo de Basil e um deleitoso hedonista, Dorian imagina a sua beleza, tal como no retrato, suspensa para toda a eternidade. E porque o diabo estava à espreita – como quase sempre está – ou talvez porque às vezes o mundo é mesmo assim e as regras de repente mudam, é exatamente isso que acontece: o protagonista permanece belo e inalterado à medida que cada ruga, cada peso, cada sinal de turbulência com o mundo se fixa no quadro. Como se disse, o quadro envelhece por Dorian. Isto transforma-o numa espécie de Hamlet sem necessidade de solilóquios (mas com direito a uma espécie de Ofélia, em Sybil, e um Laertes, em James), já que o quadro se torna o depósito da consciência ou, melhor, o quadro é a consciência do ato completamente separada do seu agente, a culpa fora dos tecidos e, por isso, incapaz de os corromper. Com a culpa fora do corpo, toda a possibilidade de consciência é anulada – ou quase totalmente anulada. 

“O Retrato de Dorian Gray” é, por vezes, comparado ao romance de Balzac “A Pele de Chagrém”, que conta história de Raphaël de Valentin, que graças a um pedaço de pele mágica consegue ver todos os seus desejos satisfeitos, muito embora a cada desejo cumprido a pele encolha um pouco, ao mesmo tempo que a saúde de Raphaël piora. E se é verdade que em ambas as histórias o sobrenatural, isto é, o detalhe mágico surge muito mais como metáfora para reforçar o caso que cada um dos autores pretende apresentar, importa reparar que o efeito mais poderoso de “O Retrato de Dorian Gray” é a autonomia entre o corpo e a consciência garantida pela magia do quadro, algo que não acontece com Raphaël que sofre no corpo cada um dos seus desejos, o que, no caso de Dorian, lhe permite uma cegueira feliz perante as consequências das suas ações, não demonstrando qualquer forma de empatia a partir do momento em que a primeira ruga se forma, com exceção de umas aparências de remorso que, a bem dizer, são muito mais expressões de medo perante a ameaça de James Vane. 

Dorian Gray pode ser lido como o oposto de Jacob Marley, o fantasma do antigo sócio de Ebenezer Scrooge no conto natalício de Dickens, que carrega consigo uma corrente cujas cadeias simbolizam cada um dos maus atos cometidos em vida. Dorian, pelo contrário, permanece livre, nunca confrontado com a consequência das suas acções e sempre com o coração no melhor de todos os lugares, que é fora do peito, fora do pensamento, a apodrecer divorciado da noção de que isso está a acontecer.

No final, que traduz uma solução narrativa que a literatura de horror tornará paradigmática entre Poe e Lovecraft, o retrato tornará a pôr corpo e culpa de acordo e Dorian, confrontado com o seu verdadeiro reflexo, apenas terá remédio na morte.

“O Retrato de Dorian Gray”, como muita da melhor literatura da época, foi publicado pela primeira vez em 1890, na edição de Julho da “Lippincott’s Monthly Magazine”, onde, meses antes, Conan Doyle publicara também “O Signo dos Quatro”, o segundo romance de Sherlock Holmes. Já várias vezes traduzido para o português, este romance de Oscar Wilde surge agora na extraordinária coleção de bolso da Relógio d’Água, que recupera a excelente tradução de Margarida Vale de Gato já anteriormente publicada pela editora no seu formato mais comum.