A ‘trapaça’ de Camilo Castelo Branco

No fundo do tanque de um mosteiro no Minho repousam duas lápides ligadas ao romance O Senhor do Paço de Ninães. As pedras foram arrancadas dos túmulos a pedido do escritor, dando origem a um julgamento no tribunal. Mas elas encerravam um segredo que só agora foi descoberto. Aqui se reconstitui toda a história.

Estamos no Minho, «o leitor e eu», como diria Camilo Castelo Branco, numa caça ao tesouro escondido por este homem cuja vida se sobrepõe à ficção.

Para o sucesso da empreitada, convém ter um mapa. Pede-se ajuda ao próprio Camilo, o primeiro escritor profissional português, mas ele – para que se não conheçam os métodos insólitos a que recorreu para romancear – não abre inteiramente o jogo. Apenas dá umas ‘dicas’ sobre o local que originariamente abrigou o tesouro, que é referido num antigo manuscrito dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, conhecidos também por crúzios.

Nele pode ler-se terem sido sepultados na igreja do Mosteiro de Landim, do lado da «galilé acostada à casa capitular», o fidalgo do paço de Ninães e o seu criado, um negro de lei.

A quase duas léguas de Vila Nova de Famalicão, chega-se ao local. Passa-se o portão do antigo mosteiro de Santa Maria de Landim, coladinho ao templo que já foi sua pertença. O sino toca como se tentasse desviar-nos do percurso, atraindo-nos à igreja. Fugimos da armadilha. No jardim que envolve a entrada principal, somos recebidos por um aroma forte a flores: são camélias, que dão o nome ao recanto.

Ao cimo da porta, o brasão de armas concedido por D. João VI ao pai de António Vicente de Carvalho Leal e Souza, amigo e benemérito de Camilo e Ana Plácido – um caso de perdição que levou ambos ao presídio.

Camilo era muito pequeno

Seguimos em frente, sem cair nas rasteiras que as várias partes interessadas colocam ao ‘leitor e eu’, fazendo ouvidos moucos ao toque monótono que de hora a hora vem da torre da igreja.

Sofia Sampaio da Nóvoa, uma das herdeiras do mosteiro, faz a ligação entre os dois mundos – e é, de longe, a testemunha mais fiável à passagem incontornável dos anos.

 Ainda hoje dorme numa das antigas celas dos crúzios, que os seus antepassados tinham sempre preparada para Camilo.

Avessa à exposição pública, a mulher – formada em Direito – é tão esquiva como delicada: «Ele devia ser tão pequeno como eu porque a sua cama, onde ainda dormi, era muito pequena e estreita. Confesso que não era nada cómoda. Mas foi ali que muito novinha comecei a ler de enfiada toda a sua obra. Abria a janela e sabia que estava a ver a mesma paisagem que Camilo viu em tempos, o mesmo coqueiro que ele descreve nalguns dos seus livros…».

Atravessa-se o jardim e entra-se num outro onde também imperam centenárias japoneiras de copa larga, refúgio de corujas que guincham noite dentro e de morcegos que com desfaçatez procuram alguém para sangrar na imensidão do mosteiro.

Por cada canto por onde se passa sente-se o peso da História. Entre as cameleiras cerradas, que não deixam passar um só raio de sol, a Casa do Preto, em forma de cubata, recorda a presença de escravos arrematados num qualquer canto do Brasil por D. Manuel Baptista – um filho da terra radicado no outro lado do Atlântico que, com a expulsão dos frades pelo Marquês de Pombal, compra o mosteiro em 1778.

O local do crime

À saída do jardim, onde começam os campos de lavradio, virando à direita por um caminho de terra batida descobre-se o tanque de rega da quinta que, durante quase dois séculos, escondeu o crime praticado por António Vicente e o seu cúmplice e autor moral, Camilo Castelo Branco.

Corria outubro, a chuva miúda da véspera deixara o ar puro. O céu sem nuvens abre-se ao sol que ilumina a água turva, esverdeada pelos limos onde mais de duzentos peixes convivem com o tesouro. Mas uma camada de folhas cobre totalmente a visão.

Ao primeiro olhar, as pedras que ladrilham o fundo do tanque são de uma semelhança desmotivadora. Que réstia de verdade terá esta história com mais de dois séculos? – interrogar-se-á o leitor, por hora desanimado.

O sino da igreja marca, ciumento, presença: onze da manhã. A água amena está convidativa. Metemo-nos lá dentro – e é pelo tato que começamos a levantar o véu. Os dedos, ávidos, saltam de pedra em pedra, até pararem nuns aparentes sulcos no granito. Limpa-se a cobertura de folhas e o lençol de limos que tornam o fundo do tanque invisível – e lá estão as lápides com os dísticos e letreiros inscritos na pedra, as mesmas em que Camilo se inspirou para escrever O Senhor do Paço de Ninães!

Foi precisamente a esta hora, faz 152 anos sem tirar nem pôr, que – por incumbência de Camilo – Manuel Vicente, à cabeça de três ou quatro criados, mandou retirar da igreja duas lajes. Estas, segundo o auto judicial do delito então levantado, «cobriam as sepulturas de duas pessoas classificadas… Lápides que se avaliaram em mais de vinte mil réis».

Um D. Sebastião…

Nesse mesmo ano de 1867, Camilo, senhor de vida tumultuosa, começara a publicar no jornal O Comércio do Porto, sob a forma de folhetim, O Senhor do Paço de Ninães, que mais tarde editaria em livro. O enredo histórico – cuja ação se situa entre 1576 e 1621– cruza a paixão impossível entre o fidalgo Ruy Gomes de Azevedo e D. Leonor. Uma paixão legítima que as partilhas de propriedades separaram, com a saga de D. Sebastião por terras de África, de onde o Rei não voltaria. O fidalgo, para se curar da bordoada amorosa, acompanhará o Rei nas lides bélicas pela expansão do reino.

Para a arquitetura do romance, Camilo recorre a alguns documentos históricos como o Rol dos Fidalgos Cativos em Alcácer Quibir, onde consta um tal Ruy Gomes, o herói do romance.

E é a mãe do fidalgo que, desfazendo-se da quinta da família, consegue os dobrados de ouro necessários para resgatar o filho, trazendo-o de novo a Portugal – onde Ruy Gomes acabará por morrer, com o seu escravo Vasco, um aliado fiel, no Mosteiro de Landim. O local onde em moço, entre os noviciados, fizera os seus estudos, tendo como mestre o seu tio, prior do presbitério.

O enredo do romance

Voltando ao ponto: foi Manuel Vicente quem forneceu ao romancista o restante manancial histórico. Numa casa que esteve nas mãos dos crúzios durante seis séculos, o novo proprietário entrega a Camilo um manuscrito que os frades deixaram para trás.

Resuma-se, pois, o «fiel translado» com que o escritor finaliza o romance.

Foi na véspera de Natal do ano de 1622 que, com vestes de peregrino, pela uma hora da tarde, regressou a Landim Ruy Gomes de Azevedo e o seu escravo já liberto Vasco. Para além do prior, ninguém pareceu conhecer o viajante.

Um mês depois, correu no mosteiro estar o homem «em arranques de morte». E a 11 de janeiro findava-se efetivamente a nobre figura, que muitos julgavam já morta em terras de África, seguindo-se-lhe o escravo pouco depois. E assim, só após terem sido ambos sepultados, «com escândalo e murmúrios da comunidade», se soube de quem se tratava.

Camilo, de sua lavra, concerta o último parágrafo, não a contento do leitor mas dos tribunais: «Sabemos que o senhor do paço de Ninães foi sepultado na galilé contígua à casa capitular, mas esta casa, na reforma que alguns priores deram ao material arranjo do mosteiro, foi arrasada, e sobre os ossos sepultos na galilé, chamada dos fundadores, construíram e lajearam a capela-mor da atual igreja parochial de Landim. Aqui ficaram neste recinto de um quarto de légua as cinzas dos principais personagens deste romance».

A ‘trapaça’ do escritor

Conheça-se agora, por inteiro, a ‘trapaça’ do escritor. Camilo estava com 42 anos, e o avanço da sífilis, maleita que se lhe encostara mercê de uma vida boémia e de um coração irrequieto, começara a perturbar o seu trabalho.

A viver agora em S. Miguel de Seide com Ana Plácido – após o escândalo de adultério que levou ambos ao presídio da Relação do Porto, sendo absolvidos pelo pai de Eça de Queirós –, Camilo acaba por ir residir para casa do ex-marido de Ana, depois de esta enviuvar, tornando-se vizinho de António Vicente.

No proprietário do extinto mosteiro encontrará o escritor um amigo para todas as horas, benemérito, credor sem limites, e cúmplice para as suas aventuras.

Com quatro bocas a seu cargo, Camilo vive – e mal – apenas do que escreve. Reponha-se, pois, a verdade histórica e condene-se de novo Camilo, pois se alguma fraqueza teve foi a de omitir ao leitor o lado mais verosímil do romance em que ele próprio se torna protagonista.

A consumação do crime

Pedira Camilo a António Vicente que lhe facultasse documentação histórica para o romance do Senhor do Paço de Ninães, que nesse ano de 1867 tinha em mãos. Com base no já citado manuscrito dos crúzios, ofereceu-se o proprietário para lhe mostrar umas pedras sepulcrais muito antigas que se encontravam na sacristia da igreja paroquial. Através de uma porta do claustro que estabelecia a ligação entre o mosteiro e a igreja paroquial, à socapa, por ali entraram os dois. Mas Camilo, à luz fraca da sacristia, e com a cegueira quase a rondá-lo, não consegue ler os letreiros e dísticos que referenciam os nomes daqueles que julga poderem ser os personagens.

Então, a seu pedido, António Vicente manda a criadagem levantar as pesadas lajes e fazer o seu transporte para o claustro, para melhor serem estudadas.

Sucede que um burguês da freguesia, António Barros, fabricante, casado, morador no lugar de Bouças, vem a saber do feito e decide levar a pleita até à condenação do proprietário – ao qual não faltavam inimigos, até por ter sido administrador do concelho de Vila Nova de Famalicão no tempo de Costa Cabral.

O auto de querela corre no Tribunal de Famalicão, que acelera as diligências. O mosteiro é alvo de buscas e o benemérito de Camilo apanhado em flagrante delito: lá estavam as lajes da história. E sendo ele o proprietário do mosteiro, é sobre ele que cai a denúncia do crime de violação de túmulos e sepulturas.

Amigo de Camilo condenado

No julgamento, Camilo é uma das suas testemunhas de defesa. E na tribuna está o advogado de renome que o defendera do crime de adultério (e que, por sua incumbência, já patrocinara Zé do Telhado, com quem Camilo travara amizade na cadeia).

O réu é condenado, mas recorre para um tribunal superior. E o denunciante lança mão de aliados na imprensa – que acompanha com paixão a trapalhada envolvendo o polémico escritor.

Nas páginas de O Comércio do Porto, jornal da burguesia mercantil, António de Barros usa a velha fórmula de condicionar a Justiça publicando uma carta recordando a decisão da primeira instância: «Na sacristia da aludida igreja de Landim havia duas grandes e antiquíssimas lápides sepulcrais, que continham dísticos e emblemas tendentes a perpetuar a memória de restos mortais ali depositados. Estas lápides, que se avaliaram em mais de vinte mil réis, foram levantadas e roubadas, arrombando-se para esse fim uma porta que daquela sacristia comunica para o extinto mosteiro de Landim, propriedade hoje de António Vicente de Carvalho Leal e Sousa. Denunciado o facto, o qual provocou a geral indignação, procedeu-se logo a auto de corpo de delito, e em seguida a busca naquele mosteiro onde os vestígios haviam sido encontrados».

O denunciante continua a boa prosa conduzindo-a para o seu objetivo: «O juiz de direito, sempre reto e incansável na punição do crime, o pronunciou como quebrantador do respeito devido à memória dos mortos».

E, para encostar os magistrados da Relação à parede, continua a especular que o réu se gaba do seu poder de influência e bons contactos, e deixa o aviso: «Rogo-lhe sr. Redactor o obséquio de inserir no seu acreditado jornal estas poucas linhas, para evitar que por surpresa se obtenha o que pela Justiça não se poderá conseguir».

A defesa do escritor

Nas alegações para a Relação, o advogado de António Vicente, por seu turno, recorre ao testemunho de Camilo, que assumira nada mais ter feito o amigo do que satisfazer-lhe um pedido de ordem científica.

O causídico, numa dissertação minuciosa e colorida em que não poupa o tribunal de Famalicão, admite a retirada das pedras da sacristia para o claustro, para que ali fossem «examinadas pelo literato» – argumentos que são aceites pela Relação, acabando o feitiço por saltar do seu eixo, sendo o denunciante quem acaba condenado a 10 dias de prisão, agravada de multa de mil réis por dia.

Sucede que, resolvida a questiúncula na barra, nunca mais as lápides regressaram ao sítio original. E delas até hoje não havia novas. É Emília Faria, prima de Sofia Nóvoa, uma engenheira convertida à História, quem recentemente acabou por decifrar o mistério.

Em pequena, costumava juntar-se ali com os primos nas férias ou épocas festivas. Depois das partilhas, o seu lado da família ficara com a Quinta de Boamense, em tempos nas mãos do historiador Alberto Sampaio, onde encontrará um arquivo histórico que se tornará o poço memorial da família. Aí descobre alguma correspondência trocada entre Camilo e o seu trisavô António Vicente, editada em 1990 pelo Centro de Estudos Camilianos.

Uma das missivas de Camilo espicaça a curiosidade da investigadora: «Diga-me o resultado da questão, que estou ansiadíssimo pela saber. A Sociedade Arqueológica de Lisboa vai satisfazer o nosso empenho de tomar conta das pedras para as colocarmos onde nos aprouver. O secretário ficou de me dar ordem referendada pelo ministro do reino para o governador Civil de Braga. É o melhor meio».

Emília pensou, e bem: que pedras seriam aquelas, a suscitar o interesse de Camilo Castelo Branco, ao ponto de apelar para as mais altas instâncias políticas?

Caseiro tem a chave do enigma

Muito mais tarde, a investigadora aproxima-se do enigma ao encontrar no arquivo privado da família a ‘Minuta do Agravo Crime’ – assim se chamava à época o recurso interposto pelo advogado do seu trisavô para a Relação.

Da Casa de Boamense ao mosteiro é um pulinho. E é Júlio Azevedo, o caseiro que conhece de olhos cerrados cada canto da quinta, quem lhe decifra o mistério: «Menina, serão umas pedras com dizeres gravados que estão a revestir a base do tanque?».

Emília procura nos afluentes da memória o que sentiu quando vazaram e limparam o tanque e se deparou com as pedras: «Confesso que foi com particular emoção que vi as duas pedras tumulares. Conhecendo António Vicente como julgo conhecer pela leitura do diário legado aos seus descendentes, percebe-se que tinha uma fortíssima personalidade do tipo ‘antes quebrar que torcer’. E, considerando injusta a acusação, decidisse dar outro destino às pedras em vez de as devolver ao lugar de proveniência».

E, se bem o pensou, melhor o fez: usando as pedras tumulares para revestir o fundo de um tanque de água.

Mas a história não acaba aqui. De posse do segredo, logo as herdeiras do mosteiro trataram de arranjar especialista de calibre que interpretasse as lápides que, um dia, haviam supostamente coberto ilustres mortos. Consultam Mário Barroca, professor catedrático, o melhor desta área. E este chegará a uma conclusão que talvez suscitasse de Camilo, se cá ainda estivesse, uma valente gargalhada. O historiador e arqueólogo deteta o erro: «Os nomes lá inscritos não coincidem com os personagens: numa está inscrito Mateus Alvarez, e noutra, datada de 1617, Bastião. Devem pertencer a agricultores abastados. Muito provavelmente, Camilo não as conseguiu decifrar».

Mas, mesmo assim, não se atrapalhou. Embora dissesse «eu não tenho imaginação; tenho apenas o que vivi e o que cimentei» (curiosa alusão ao cimento…), escreveu mesmo O Senhor do Paço de Ninães. E, como os mortos não falam, a ‘trapaça, só agora se descobriu. Mas o mérito da obra não fica por isso beliscado.