A Ínclita Geração retratada nos Painéis em 1445

Quem são as figuras representadas nos Painéis de Nuno Gonçalves? Tudo aponta para que se trate de um retrato coletivo onde surgem, em posição proeminente, os filhos do Rei D. João I.

Comprovadamente, Lisboa na década de 1440, quando decorria a regência de D. Pedro, não teve expressões artísticas tão diferentes das suas congéneres do norte da Europa. Em concordância, a figuração da infanta D. Isabel, duquesa de Borgonha, no Painel do Infante apontava para laços culturais – e afetivos também – mais fortes do que poderíamos superficialmente esperar. A visita de Jan van Eyck ao nosso reino em 1428 ganhava a essa luz uma nova reverberação. Claramente, Lisboa e a Flandres não tinham estado assim tão apartadas na centúria de Quatrocentos.

Cumulativamente, a representação conjunta da família de Avis via a sua plausibilidade reforçada pelo tema fúnebre, dado que proporcionar um funeral condigno a qualquer um dos seus permanece uma das mais prementes obrigações familiares desde tempos imemoriais.

 Algumas peças que apareciam até então desconexas podiam ser concatenadas pela hipótese confraternal e, de forma quase surpreendente, possibilitavam identificar com plausibilidade a Confraria do Bem-aventurado Santo Antoninho. Esta confraria municipal, que agregava os homens-bons do concelho, os cidadãos honrados de Lisboa, na Casa do Santo, fora criada em 1431, três escassos anos após a oferta da relíquia de Santo António trazida de Pádua pelo infante D. Pedro ao município (as relíquias eram verdadeiramente fulcrais à organização e vida das confrarias). Note-se que a hipótese de ser aquela a relíquia figurada no políptico fora já aventada havia décadas. E, tendo em mente uma personagem cujo destaque no Painel da Relíquia tanta perplexidade tem causado à crítica, onde poderia tornar-se mais aceitável a presença de um Judeu numa assembleia cristã?

No Painel dos Pescadores, um frade franciscano prostra-se em oração, dianteiro a uma tríade de personagens que envergam mantos sobre túnicas brancas (as redes pintadas sobre os mantos, evocativas de pescadores, são comprovadamente espúrias, mas deram origem à designação errónea do painel). O espaço confraternal tornaria aceitável figurar em tal honrosa posição, próxima da família real, o frade corretor, a quem incumbiria fazer o sermão fúnebre, acompanhado dos três dirigentes da confraria.

No Painel dos Frades, os monges cistercienses de Alcobaça destacam-se na alvura das suas vestes. A sua presença reforça a invocação do espírito de Cruzada (com direta ligação à Ordem Religiosa Militar de Avis, da qual o infante D. Fernando fora Administrador e que estava sob direção espiritual de Cister), mas apela também à intercessão pelas almas do Purgatório (culto fulcral às confrarias e para o qual S. Bernardo, grande impulsionador da Ordem de Cister, muito tinha contribuído no século XII). Sem sombra de dúvida, a hipótese da confraria municipal revelava-se uma verdadeira chave de abóbada para a tese fernandina!

No final da primavera do ano de 1999 o texto resultante da investigação iniciada no ano anterior estava completo no essencial. Tiveram então os autores a boa sorte de serem encaminhados por mãos amigas para a Editorial Verbo, onde a cultura sólida e o acúmen de editor experiente do seu administrador, o dr. Fernando Guedes, lhes abriram generosamente as portas. A edição cuidadosa do dr. João Miguel Guedes ajudou a levar a bom termo o projeto e o livro Os Painéis de Nuno Gonçalves foi lançado no final de junho de 2000. No ato do lançamento, a coautora Maria Manuela Barroso de Albuquerque dirigiu as seguintes palavras ao Dr. Fernando Guedes: «Estamos-lhe gratos por ter aceitado a publicação de um livro sobre um tema extremamente melindroso, um tema caído no descrédito público, como resultado de eventos de certa gravidade, desagradáveis polémicas e interpretações fantasiosas».

Pouco mais à frente na sua intervenção, referia: «Além disso, o Professor António Hespanha [a quem coube fazer a apresentação do livro] teve a coragem intelectual de aceitar a presidência desta mesa, assumindo assim uma posição clara e positiva que, pelo melindre do assunto do livro agora lançado, nem todos com responsabilidade na discussão da matéria abertamente assumiriam».

Como se poderá depreender das linhas anteriores, os autores, conscientes de que as teses do livro então publicado representavam um avanço decisivo para a Questão dos Painéis, não podiam ignorar que cem anos de controvérsia teriam necessariamente de fazer sentir a sua marca. Afinal, não seria melindroso ver as brumas que envolviam esse verdadeiro Adamastor cultural desvanecerem-se e deixarem a nu a resolubilidade do problema?

Por um lado, a assinatura imprevista, mas, sobretudo, o ano de 1445 quase ferem a vista pela clareza ática com que iluminam a questão. Por outro lado, como explicar sem rebuço que uma inscrição autoral tivesse escapado a um século de análise profissional? Acentuando a incomodidade pesava o facto de os dois autores, se bem que universitários, serem recém-chegados ao terreno da historiografia e da crítica da Arte Portuguesa.

Entre a polémica e o encobrimento

Revisitemos a Questão dos Painéis, à luz de um facto que lhe dá nova reverberação: como explicar que resultados decisivos – coloca-se o adjetivo sem titubeação – tenham sido alvo da atenção pública, sobretudo na primavera de 2003, mas continuem no momento presente remetidos pela Cultura institucional para um limbo discreto?

Voltemos ao prístino ano de 1909, quando as tábuas de Gonçalves se encontravam para restauro na Academia das Belas-Artes frente ao pintor Luciano Freire e José de Figueiredo preparava a publicação de O Pintor Nuno Gonçalves, que ocorreria no ano seguinte. Em cerca de uma página de texto publicado no The Burlington Magazine, que vinha acompanhado da reprodução fotográfica dos Painéis antes do restauro, Sir Herbert Cook dava a conhecer ao público internacional aquelas tábuas, ainda então sem autor atribuído. O pragmatismo anglo-saxónico delineava uma abordagem racional para a investigação a empreender: «Muito pouco pode ser assegurado quanto à data em que estas esplêndidas pinturas foram executadas. A indumentária poderia indicar 1440-50 e se, como tem sido suposto, o retrato do Príncipe Henrique o Navegador aparece num dos grupos, esta data seria confirmada. [Em nota de rodapé: «Foi o quarto filho de João I, e viveu entre 1394 e 1460. Ele parece ter cerca de cinquenta anos de idade na pintura»] A maior parte das personagens são claramente retratos, e não seria impossível a um historiador identificá-los».

Ponderando os novos dados avançados em Os Painéis de Nuno Gonçalves, pode reconhecer-se que o vaticínio de Cook se cumpriu: o problema era afinal resolúvel.

Retrospetivamente, suspeita-se que a não consideração de uma data tão recuada para a execução do políptico terá constituído ao longo das últimas décadas o maior entrave para a sua compreensão. Adriano de Gusmão, bom conhecedor da nossa Escola de Pintura e, certamente, um dos mais lúcidos críticos da temática, não terá beneficiado desse grau de liberdade intelectual. Assim, confira-se o seguinte juízo feito por este autor: «Prejudicou fundamentalmente toda a sua boa tentativa, ter o Dr. José Saraiva partido do ano de 1445 – que supôs decifrar sob a rubrica do pintor [Gusmão refere um vestígio ilegível abaixo do monograma, sendo este último uma segunda marca autoral aposta na bota de D. Duarte e já reconhecida por José de Figueiredo] – para a identificação das figuras pintadas no Políptico».

Ao não aceitarem a priori uma constrição cronológica, imposta por supostos critérios estilísticos – o que poderia denotar falta de sofisticação, se não mesmo ingenuidade – os autores de Os Painéis de Nuno Gonçalves beneficiaram da visão fresca que frequentemente é o singelo apanágio dos novatos.

No entanto, quem hoje tentar, ao fim de um século de controvérsias, preservar a limpidez da abordagem de Cook arrisca-se a incorrer em censura académica. Assim, confiram-se as declarações do Professor Fernando António Baptista Pereira prestadas ao JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, por ocasião do colóquio ‘Nuno Gonçalves, Novas Perspetivas’, organizado em 3 e 4 de dezembro de 2010 pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em estreita colaboração com a Academia Nacional de Belas-Artes e com o MNAA:

 

Entrevistador – Mas ficam de fora especulações sobre quem é quem nos painéis…

F. A. Baptista Pereira – Fundamentalmente não se pretende continuar a discutir essas questões que hoje em dia não têm qualquer sentido. Quem está representado, as identificações das personagens, o que é ou não é São Vicente, tudo isso são, para mim, problemáticas do passado. Aliás, todos os investigadores que fazem parte deste colóquio são unânimes em considerar que estamos diante do que resta do retábulo de São Vicente da Sé de Lisboa. Esse é um assunto que não merece polémica.

No decurso desse colóquio, a discussão da inscrição no botim do jovem adolescente, ou foi omissa, ou foi então referida de forma verdadeiramente fugidia, senão mesmo escarnecedora por um ou outro dos académicos intervenientes. Como poderá assim aceitar-se o carácter genuíno do seguinte propósito, recolhido da mesma entrevista?

 

Entrevistador – Não interessam mais conjeturas, mas olhar a própria pintura?

F. A. Baptista Pereira – É isso mesmo. Não interessa insistir em delírios, mas abordar as questões concretas que estão debaixo dos nossos olhos.

 

Apesar de o desejo de alguma ortodoxia académica ser, tal como as afirmações acima demonstram, o de aprisionar a discussão da temática dos Painéis dentro de um círculo encantado, a verdade tem força inquebrantável e, mais cedo ou mais tarde, irromperá, forçando o debate a extravasar das baias que lhe têm sido impostas, com a conivência, é forçoso reconhecê-lo, da Cultura institucional portuguesa.

Com efeito, é a Cook que a razão assiste, pois, obviamente, a análise iconográfica do políptico – um retrato de grupo – deve ir de par com a tentativa de identificação das principais personagens nele figuradas. Este desígnio, que constitui a outra face do desejo de saber o que representa a pintura, permanece tão legítimo em 2016 como em 1909 e não deve ser considerado risível ou ficar desacreditado pelas tentativas frustradas acumuladas por tantos autores no passado. Além disso, o desígnio viu a sua viabilidade reforçada pelo reconhecimento da data de 1445. A escassez de fontes iconográficas credíveis (que não a sua inexistência: cf. a iluminura henriquina do Códice de Zurara) impõe que se lhes conceda toda a atenção, em inferências onde a intuição histórica e artística seja disciplinada pelo rigor lógico. E a clareza de propósitos providenciou uma recompensa: a plausibilidade de identificar os filhos de D. João I, aqueles mesmos que Camões designou de «Ínclita Geração», entre os principais retratados no políptico.

O assunto dos Painéis não deve ser ‘couto privado’ dos historiadores de arte, tanto mais que o método comparativo, que é a ferramenta essencial da disciplina, teria de revelar-se de difícil aplicação no caso – basta reconhecer que toda a pintura portuguesa do século XV conhecida não consegue preencher as paredes de uma sala de museu. Em compensação, o Políptico de S. Vicente de Fora é um quadro histórico que merece a qualquer estudioso da Idade Média Portuguesa uma análise tão aturada como a das Crónicas de Fernão Lopes, de Zurara ou de Rui de Pina. Algumas das mais certeiras considerações sobre os Painéis foram feitas por ensaístas ou por historiadores, que não de arte: José Saraiva era um professor de História, fascinado pela possibilidade de que o grande Fernão Lopes figurasse no políptico; o seu filho António José Saraiva era um historiador da Cultura (merece leitura o seu curto texto de 1988, ‘Os Painéis Enigmáticos’); Vitorino Magalhães Godinho inseria-se numa corrente historiográfica próxima da Sociologia; Jorge de Sena era um universalista. Nenhum deles se refugiou no seu hortus inclusus. Afoitos, de espírito livre, todos deram contributos interessantes para a Questão do Painéis que, não sendo o ‘umbigo’ da História da Arte Portuguesa, é, contudo, um assunto suficientemente central da nossa Cultura para exigir um tratamento esclarecido.

 

Este é o segundo texto, de uma série de três, sobre os Painéis de Nuno Gonçalves.

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