Jerónimo de Sousa: “É muito difícil repetir este acordo com o PS”

Se o governo não enfrentar os “constrangimentos” de Bruxelas, pode haver “aqui um problema”, admite Jerónimo.

Jerónimo de Sousa: “É muito difícil repetir este acordo com o PS”

A duas semanas do xx congresso do PCP, que se realiza nos dias 2, 3 e 4 de dezembro, em Almada, Jerónimo de Sousa recebeu o i na sede nacional do PCP e falou da noite eleitoral que abriu a porta a uma solução inédita na democracia portuguesa e do futuro do acordo com os socialistas. O secretário-geral dos comunistas defende que existe uma “contradição” entre a política de reposição de rendimentos e as imposições de Bruxelas, e deixa um aviso: “Se chegar a ser uma contradição insanável, naturalmente que temos aqui um problema.” Vai fazer 70 anos e garante que continua com “força anímica” para liderar o PCP.

O que mudou no PCP para que este entendimento à esquerda, que não foi possível durante 40 anos, tenha acontecido agora?

O que mudou foi a realidade. O elemento fundamental foi uma nova relação de forças que foi determinante para afastar o governo PSD/CDS e encontrar uma nova solução política. O primeiro objetivo que tínhamos era derrotar o PSD e o CDS, tendo em conta as suas graves responsabilidades na situação que se vivia no país, com uma política desastrosa que infernizou a vida dos portugueses. Os portugueses lutaram muito durante esses quatro anos e aliaram a sua luta ao seu voto, que se traduziu nessa nova realidade.

Teve a noção, na noite eleitoral, de que era possível esta solução?

Não tínhamos feito cálculos nem contactos…

Não tinham existido contactos com o PS?

Não, nunca houve contactos anteriores além dos contactos normais no relacionamento normal que existe com o PS, mas sempre no plano formal e institucional, e nunca no plano de qualquer solução política nova.

Existe a ideia de que esta solução só foi possível porque o líder do PS é António Costa. É verdade?

Não, nunca esteve no nosso pensamento essa questão. Nós tivemos também relações com António José Seguro, que era secretário-geral do PS, depois passámos a ter com António Costa, mas objetivamente foi esta nova realidade, esta nova composição que determinou o nosso posicionamento.

Não se arrepende todos os dias?

Não, porque nós tivemos aqui um papel importantíssimo, mas com uma grande consciência de que o PS manteria o seu programa, com a consciência de que manteríamos as diferenças em relação a questões estruturantes. Claramente, a questão do afastamento do PSD do governo permitia dar respostas urgentes no plano social, tendo em conta a situação em que se encontravam muitos portugueses. E, por isso mesmo, a posição conjunta do PS/PCP, além da questão política do governo, colocou a questão da necessidade objetiva de avançar com medidas positivas que contrariassem esse rumo de uma política de terra queimada. Eu falo nesses quatro anos, mas temos a consciência da responsabilidade de governos anteriores, incluindo do Partido Socialista.

A austeridade começou com o governo de José Sócrates.

Nós tínhamos e temos essa consciência, mas uma ideia fundamental foi não perder nenhuma oportunidade para repor rendimentos e direitos e abrir um caminho de esperança. Estamos a falar de salários, estamos a falar de horários, estamos a falar de feriados, estamos a falar do Serviço Nacional de Saúde, estamos a falar da política de privatizações… Não foram medidas estruturantes, mas são medidas importantes para o povo português.

Disse na campanha eleitoral que o PS não era carne nem peixe e que mais parecia um caranguejo moído. Essa afirmação continua atual ou a atuação deste governo mudou alguma coisa?

A análise que fazemos em relação ao PS… primeiro, essa responsabilização histórica que não pode ser esquecida. A verdade é que, na noite das eleições, notou–se uma grande hesitação por parte do PS que, na sua análise, não concluiu que o PSD e o CDS foram derrotados.

Foi ambíguo…

Basta consultar os arquivos sobre o posicionamento do PS nessa noite para verificar que não havia ali muito alento para procurar caminhos novos. E creio que esta posição do PCP, fundamentada na nova realidade que tinha sido criada, abriu a possibilidade de inverter esse caminho que estava a ser seguido.

O secretário-geral do PCP anda regularmente em ações com a presença dos militantes…

É um facto.

Foi difícil ou é difícil explicar essa solução aos militantes comunistas?

Em termos de ambiente geral, e nesse contacto muito direto, posso dizer que o sentimento geral – não digo esmagadoramente maioritário, mas podia dizer – é no sentido de perceber perfeitamente e estar identificado com as decisões da direção do Partido Comunista Português. Estou a falar de militantes, mas podia falar num plano mais vasto. As pessoas dirigem-se a mim a saudar o nosso posicionamento.

O que lhe pedem essas pessoas?

São coisas muito cruzadas, mas interessantes. A ideia é que estivemos bem: não desistir e continuar a lutar por direitos. Muita gente, não só militantes, apela ao PCP para lutar por esses direitos. É um sentimento geral. Sinto que existe um grande respeito pelo PCP, independentemente das dúvidas e das preocupações em relação a essa contradição, que existe, numa política de reposição de rendimentos e direitos muito condicionada por aquilo que definimos como grandes constrangimentos, que vão desde o défice à dívida, à política do euro….

Teme que esta política de devolução de rendimentos possa vir a ser ameaçada pelas exigências de Bruxelas?

O PS decidirá. Terá de tomar opções.
O que nós achamos é que aqui pode funcionar um pouco a ideia da manta curta. Se insistirmos em aceitar passivamente o pagamento só de juros da dívida de 8,5 mil milhões de euros, naturalmente que depois não há dinheiro para colmatar os problemas económicos e sociais. Não há dinheiro para o investimento e nós necessitamos dele como de pão para a boca. Isto não vai lá sem aumentarmos a nossa capacidade produtiva, sem aumentarmos a produção nacional e sem potenciarmos os nossos recursos.

Mas a política praticada por este governo permite ultrapassar essas dificuldades?

Essa é a contradição. Nós entendemos que é preciso enfrentar esses constrangimentos. Toda a gente concorda que é preciso mais crescimento económico e que é preciso criar mais emprego e mais riqueza, para a distribuir melhor. Mas com que meios? Com que condicionamentos? Essa contradição acentua-se. Vai agravar-se, do nosso ponto de vista. Se chegar a ser uma contradição insanável, naturalmente que temos aqui um problema.

Quando diz que pode haver um problema, quer dizer que o PCP deixará de participar nesta solução?

A nossa posição conjunta com o PS é clara. Essa posição conjunta define o grau de compromisso do PCP e nessa posição conjunta está claro que os dois partidos têm total independência e autonomia, e a questão que se coloca é o que vai fazer o governo do PS. Os problemas estruturais precisam de respostas estruturais e não vemos audácia nem determinação. Não quer dizer radicalismo, mas é preciso demonstrar que precisamos de afastar esses constrangimentos. Nós assistimos às posições de Bruxelas – sistematicamente, a pressão, a chantagem…

A questão é se esses constrangimentos poderão colocar em causa a durabilidade do governo.

É uma opção que o governo do PS tem de fazer. Do nosso ponto de vista, esta solução será mais ou menos duradoura conforme se dê mais ou menos resposta aos problemas dos trabalhadores e do povo. Não é uma questão em que o PCP tenha um papel determinante. O governo do PS tem de fazer opções porque, se não fizer, obviamente que depois essa contradição resolverá o problema.

Dificilmente o PS mudará a sua política a nível da União Europeia. Mesmo há pouco tempo, o ministro das Finanças disse que não está em cima da mesa a questão da renegociação da dívida.

Nós não somos juízes do posicionamento político do governo e por isso eu digo que compete ao PS e ao seu governo decidir. Não está em cima da mesa qualquer renegociação da dívida, mas nós dizemos que o problema da dívida e do serviço da dívida está colocado na ordem do dia. Podemos fazer como a avestruz ou confiar em forças sobrenaturais que resolvam o problema, mas esse é um problema fundamental. A sustentabilidade da dívida não existe. É preciso entrar num processo de renegociação com os credores. Mesmo como devedores temos direitos.

Sem a renegociação da dívida não se resolvem os problemas de fundo?

Nós ouvimos o discurso do crescimento económico, mas simultaneamente percebemos que os instrumentos que temos para isso estão cada vez mais sediados em Bruxelas. É uma situação muito complexa que o governo vai ter de decidir. Da nossa parte, existe uma alternativa. Recusamos andar para atrás, a solução é uma política alternativa, uma política que caracterizamos como patriótica e de esquerda.

Seria desejável que o governo durasse os quatro anos?

Durar por durar, não estamos de acordo. Tem condições para durar desde que resolva problemas e dê respostas. Só numa visão da estabilidade governativa como fim em si mesma, é evidente que não é aceitável. Os portugueses querem soluções.

Nesta primeira fase da legislatura, o governo acabou com algumas medidas de austeridade na linha daquilo que o PCP pretendia. Numa segunda fase, quais devem ser as prioridades?

A posição conjunta PS/PCP está longe de estar esgotada. Continuam a existir questões que se refletem já neste Orçamento do Estado para 2017, que vão desde a questão das reformas e das pensões, a situação em que se encontram os trabalhadores da administração pública que durante anos não viram qualquer aumento salarial e viram o congelamento das suas carreiras, até questões que têm a ver com a legislação laboral, designadamente com o direito à contratação coletiva. São alguns dos exemplos que demonstram que não estão preenchidos os objetivos dessa posição conjunta

A ideia do BE de renovar o acordo não faz sentido para o PCP?

Não estamos a ver grande jeito em fazer–se uma posição conjunta em cada ano. Não acompanhamos esse posicionamento do Bloco de Esquerda.

Faria sentido o BE fazer essa renovação com o PS sem o PCP acompanhar?

Em relação a posições alheias, não tenho de meter prego nem estopa. Se isso acontecer, não vamos dramatizar, até porque isso demonstra a importância que teve, em relação à solução política, o facto de existirem reuniões e conversas bilaterais e não, designadamente como o Bloco de Esquerda defendia, tudo ao molho e fé em Deus. É mais claro e evita confusão.

O Jerónimo de Sousa já disse que este governo não é de esquerda. Como o definiria?

Não é de esquerda em relação a uma questão que consideramos essencial: a necessidade de nos libertarmos das imposições dos interesses e privilégios do capital monopolista, além das questões da União Europeia, que não são poucas. Mas esta questão de uma certa submissão, de não nos libertamos desses interesses do capital monopolista, não se pode dizer que é um posicionamento de esquerda.

Nas questões estruturais tem uma política de direita?

Sim, particularmente em relação a esta matéria, porque não basta apoiar uma ou outra medida de esquerda no plano social. Estamos a fazer uma leitura política global. Estamos a discutir, por exemplo, verbas para melhor educação e melhor saúde, e surge sempre o argumento de que a verba é escassa. Consideramos que era importante que aqueles que muito têm e muito podem – estamos a falar de acionistas, estamos a falar de empresas com lucros superiores a 35 ou 50 milhões de euros – deviam dar uma contribuição, sobretudo através de uma política fiscal diferente, para resolver essa carência de verbas. Não fazemos uma avaliação meramente especulativa tendo em conta o passado do PS. Estamos a falar de agora e não é por acaso que essa posição conjunta entre nós e o PS refere esse elemento, com a consciência de que estamos perante um governo do PS e com o programa do PS.

O PCP refere isso muitas vezes.

Sim, sim. É importante para o esclarecimento.

A posição conjunta realça que o acordo foi feito na perspetiva da legislatura. Porque foi escolhida esta palavra?

Nós consideramos que há um caminho a fazer. A questão está em saber se o PS é capaz de fazer frente às grandes dificuldades. Quisemos dar uma contribuição, e quanto à durabilidade do governo, obviamente que isso se veria no processo normal, designadamente dos Orçamentos do Estado. Também em relação aos constrangimentos. Não é por acaso que havia uma diferença entre nós e o Bloco de Esquerda. O Bloco afirmava a viabilização do Orçamento e a nossa disponibilidade foi para examinar os conteúdos do Orçamento, reservando a nossa posição tendo em conta o produto final.

Foi uma exigência do PS que o PCP desse sinais de que o governo era para durar uma legislatura?

Durante as conversas, é compreensível que o Partido Socialista quisesse ter garantias em relação aos Orçamentos do Estado mas, como compreenderá, não se assina uma coisa que não se conhece. Era uma aspiração legitima, mas não encontrou do PCP essa disponibilidade.

Este acordo é repetível em próximas legislaturas?

Nestes moldes, é muito difícil. Houve uma conjuntura concreta. Com o histórico que decorreu dos quatro anos de governação PSD/CDS era preciso encontrar uma resposta porque, se não fosse encontrada, a solução seria a continuidade do governo PSD/CDS. Foi esse o papel do PCP, sem esquecer nenhuma divergência. Mas eu queria sublinhar que tanto o PS como o PCP honraram o compromisso que estabeleceram.

O PCP não tem receio de cair numa contradição que é, por um lado, contestar uma política alinhada com Bruxelas e, por outro lado, viabilizar a existência de um governo que pratica essa política?

É uma questão que tem grandes complexidades. Mas não vemos contradição. Vamos persistir numa crítica clara aos posicionamentos do PS em relação a esses constrangimentos que existem, e vamos manter a crítica porque estamos na luta política. Aquilo que pensamos que é melhor para os trabalhadores e para o povo pode não ser o melhor para o Partido Socialista. Mas insisto na ideia de que não perdemos nenhuma oportunidade para procurar uma vida melhor para os trabalhadores e para o povo português, como não abdicámos de um posicionamento crítico porque defendemos uma política alternativa. Não há contradição. Aliás, neste Orçamento para 2017, nós não andamos para trás, mas temos a consciência de que o caminho se vai estreitando tendo em conta os tais constrangimentos e bloqueios.

Ficou desagradado com algumas atitudes do Bloco de Esquerda?

Compreendo que o Bloco procure ter protagonismo e levante bandeiras, algumas delas precipitadas, de certa forma procurando desvalorizar o trabalho, a proposta e o posicionamento do PCP em relação a muitas matérias concretas. Achamos isso criticável, embora isso não determine o nosso relacionamento com o Bloco de Esquerda. É evidente que é uma situação de desconforto. É um estilo próprio do Bloco.

O Bloco é mais eficaz na comunicação?

Mais eficaz e muito promovido…

A comunicação social ajuda o Bloco de Esquerda?

Mais do que aquilo que eu digo é aquilo que os portugueses veem. Isso é uma realidade, mas não vou zurzir no Bloco por ter essa promoção. O nosso problema não é com o Bloco. Não dramatizamos nem criamos situações crispadas com o Bloco, havendo, naturalmente, este ou aquele reparo.

Nem o incomoda que o BE tenha melhores resultados? Tanto nas legislativas como nas presidenciais, o Bloco teve resultados melhores que o PCP.

Sim. Tiveram o resultado que tiveram. Nas europeias, o PCP elegeu três deputados, e o Bloco um. Vamos ver qual será o resultado nas autárquicas mas, fundamentalmente, nunca meçam a influência do PCP pelo número de votos. Este Partido Comunista Português tem uma influência social muito superior à sua influência eleitoral – pode dizer-se que isso é insuficiente, mas é importante –, particularmente através das organizações dos trabalhadores, da nossa intervenção lá onde se dá o conflito, lá onde se libertam energias, se assume consciência de classe, que é na empresa, no local de trabalho. Não reconhecer isto é ter vistas curtas.

Nas autárquicas, o PCP não quis fazer alianças com o PS. Porquê?

Nós consideramos que a CDU é um grande projeto no plano da atração de muita gente e muita gente que, não sendo filiada em nenhum partido, integra as listas da CDU. Nas últimas eleições, mais de 10 mil ou 12 mil independentes entraram nas nossa listas. A_CDU tem um projeto autárquico e a nossa decisão é concorrer como CDU em todo o espaço nacional.

Em Lisboa já foi possível uma aliança com o PS. É por o candidato ser Fernando Medina?

Não, não fulanizamos o problema. Foi mediante a avaliação da realidade que considerámos que não poderia haver exceções.

Vai ficar mais quatro anos à frente do PCP?

Vou repetir a cassete. Essa é uma questão que não vai estar presente no congresso. A minha opinião conta, mas o que conta mais é a decisão do nosso coletivo. No plano da saúde, no plano da força física e da força anímica, as coisas não estão a correr mal. Mas nós hoje estamos bem, amanhã podemos estar mal. Existe é essa força anímica e convicção.

Este congresso poderá ser diferente, tendo em conta que é o primeiro desde que o PCP se envolveu nesta solução com o PS?

Em termos daquilo que é a identidade, este congresso vai fazer uma grande reafirmação desses princípios e objetivos do Partido Comunista Português. Eu queria descansar as boas almas, aqueles que estão preocupados. Fico impressionado quando vejo o PSD preocupado com a pureza ideológica do PCP ou o comentador Marques Mendes preocupado com a domesticação do PCP. Quero descansá-los. Dali, o que vai sair é um Partido Comunista que honra o seu nome. E dizer que este Partido Comunista Português agirá em conformidade com as teses, o projeto de resolução política que está em fase de elaboração, tendo em conta que chegaram centenas e centenas de propostas dos militantes, algumas singelas, outras mais profundas, mas de uma riqueza imensa. Há de reparar que nos congressos dos outros partidos há a moção do chefe, que os militantes se limitam a assinar de cruz. Nós temos aqui um projeto de teses de resolução política que esteve em discussão em todo o nosso coletivo partidário.