Saúde mental dos portugueses piorou com a crise. Homens e os mais jovens são os mais afetados

Prevalência de perturbações mentais em Portugal passou de 19,8% em 2008 para 31% em 2015, revela estudo apresentado hoje em Lisboa 

A crise deixou uma marca visível na saúde mental dos portugueses, com mais problemas de depressão e ansiedade. Resultados preliminares de um estudo sobre o efeito da crise económica na saúde mental revelam que a prevalência de perturbações psicológicas na população portuguesa passou de 19,8% em 2008 para 31% em 2015. Os homens e os jovens foram os mais afetados, mas o trabalho conclui também que as pessoas que tiveram maiores dificuldades financeiras neste período, sobretudo as que tinham dificuldades em comprar bens essenciais, registam uma maior prevalência de problemas do foro mental.

O estudo, feito com financiamento das EEA Grants, decorreu em 2015 e só será concluído em abril do próximo ano. Os resultados foram apresentados esta manhã num fórum que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian sobre Crises Socioeconómicas e Saúde Mental: da Investigação à Ação e que pode acompanhar online aqui.

Aumento de casos surpreendeu investigadores

José Caldas de Almeida, Manuela Silva e Ana Antunes, do Lisbon Institute of Global Mental Health, fizeram a apresentação do trabalho, um follow-up do primeiro estudo epidemiológico nacional sobre saúde mental, elaborado em 2008.

Os investigadores entrevistaram uma subamostra desse primeiro inquérito, representativa da população nacional, e foi aí que perceberam que atualmente a prevalência de perturbações psicológicas – que já era há sete anos maior em Portugal do que noutros países europeus – continuou a aumentar, ao mesmo tempo que cresceram também as dificuldades financeiras de parte da população.

Caldas de Almeida admitiu que o aumento registado, e que era sugerido pela literatura, foi maior do que antecipavam, resultados que surpreenderam a equipa.

Quatro em cada dez participantes no estudo indicou que os seus rendimentos pioraram e a situação de privação financeira passou de 32% para 39%  da população, o que os investigadores relacionaram com o aumento dos problemas de saúde mental. É neste grupo dos mais vulneráveis financeiramente, mas também daqueles que em 2008 já tinham um problema de saúde mental, que a situação agravou. Outra conclusão da equipa é que aumentaram sobretudo os quadros mais severos de depressão e ansiedade.

Homens mais afetados

O aumento da prevalência de perturbações psicológicas foi de 3,8 vezes nos homens e de 1,8 vezes nas mulheres, o que leva a equipa a concluir que os homens terão sido, proporcionalmente, mais atingidos pelos efeitos da crise na saúde mental. Em relação à idade, embora os idosos tenham uma maior prevalência dos problemas do foro mental, foi no grupo entre os 18 e os 30 anos que houve um maior aumento de pessoas com perturbações psicológicas. O facto de estes dois grupos poderem ter sido mais atingidos pela perda de emprego nos últimos anos é a explicação avançada pela equipa.

Factores protetores e de risco

Se a privação financeira é um fator de risco, sobretudo para a depressão, o estudo conclui que a educação acaba por ser um fator protetor. Mas há mais dados: a equipa pediu aos participantes para responder a um teste sobre a perceção do seu status social, em que cada pessoa tem de imaginar em que degrau da "escada social" se encontra quando se compara com os outros.

Concluíram que as pessoas que se encontram abaixo da perceção mediana tinham uma prevalência de 21% de perturbações psicológicas, quase o dobro daqueles que acham que estão em patamares sociais superiores.

O risco associado à privação financeira é contudo inequívoco: as pessoas com dificuldades económicas têm um risco de perturbação mental 2,5 vezes superior e um pouco maior ainda quando se analisa apenas a depressão. E mais do que as pessoas que dizem ter dificuldade em pagar dividas ou comprar bens secundários, são aqueles que dizem ter falta de dinheiro no dia a dia para alimentação ou pagar água e luz que estão em maior risco.

Grande impacto social

Segundo os dados preliminares agora divulgados, os impactos da perturbação mental são vastos. Os investigadores concluirão que 14% tem incapacidade para o trabalho, mas há impactos significativos na vida familiar e no desempenho laboral.

Quando analisaram as pessoas que referiram ter faltado um dia ao trabalho na semana anterior ao estudo, havia uma incidência de 15% de depressão neste grupo, o que leva a equipa alertar para os elevados custos sociais e económicos da doença mental.

Outro dado destacado foi o aumento do consumo de psicofármacos neste período, área em que Portugal já registava um consumo elevado: a percentagem de portugueses que toma antidepressivos ou ansiolíticos passou de 22,5% para 28,6%, sendo que os homens registaram um aumento ainda maior na toma de ansiolíticos.

Os investigadores analisaram ainda o acesso aos cuidados de saúde e concluíram que a falta de perceção das pessoas sobre a necessidade de procurar ajuda continua a ser maior barreira, seguida das dificuldades estruturais como os custos de consultas, dificuldade de marcação ou o estigma e negação associados à doença.

Embora a falta de perceção seja o principal motivo para não procurar ajuda, os investigadores revelam que a percentagem de inquiridos que apresenta como motivo para não fazer tratamento razões como 'não poder custear a ida ao médico' passou de 22% para 36%.

Há ainda diferenças acentuadas entre grupos sociais. Os investigadores concluíram, por exemplo, que pessoas com curso universitário têm cinco vezes mais facilidade em procurar um psiquiatra.

Chegar ao grupo escondido

“Há dois ´Portugais’. O Portugal que muitos de nós conhecemos, quem está aqui em Lisboa, da classe média, de pessoas que mantiveram a sua vida mesmo com alguns cortes, e há um grupo de pessoas que sofreu muito e se calhar nós, profissionais de saúde e investigadores, estamos demasiado longe deste grupo de pessoas, também porque é um grupo muitas vezes escondido”, disse José Caldas de Almeida, coordenador do estudo. “Este grupo existe e este estudo mostra que foi duramente atingido”, acrescentou o investigador, sublinhando que há pessoas que nunca irão recuperar.

Caldas de Almeida destacou ainda alguns resultados que devem ajudar a discutir a resposta da saúde mental no país, que deverá ser mais próxima da população. 

É preciso reforçar redes de suporte social, uma vez que parecem ser um fator protetor. Sobre o SNS, o especialista defendeu que, apesar das deficiências e barreiras, o sistema aguentou o embate da crise e dos cortes financeiros. “As omeletes foram fantásticas? Não foram, mas aguentou”.

O perito sublinhou que os cuidados primários, a principal resposta para os casos de perturbação mental no país, acabam por garantir uma boa acessibilidade, mas falta reforçar o acompanhamento. “Asseguram duas a três consultas por ano mas isto para os problemas psiquiátricos e saúde mental não resolve. Falhamos no acompanhamento dos casos. Damos resposta a situações agudas, não damos acompanhamento suficiente às situações crónicas”.