Heróides. As mulheres de Atenas na voz de Ovídio

A Cotovia acaba de publicar “Heróides”, de Ovídio, autor que soube como pôr em verso o que a vida põe nos corpos em que sopra com mais fôlego

Frequentemente se revela que os clássicos gregos e latinos são mais temidos do que lidos, o que não será muito justo se pensarmos que foi destes que nasceu praticamente toda a literatura que nos habita os escaparates. Desse filão, as Heróides de Ovídio poderão ser dos textos de leitura mais pungente e tangível, bem como uma das mais assinaláveis marcas de estilo daquele que terá sido o grande poeta de amor da cultura Latina.

Nos últimos anos, a Cotovia tem assegurado a publicação cuidadosa das mais importantes obras deste autor, primeiro em edição de capa dura e posteriormente no mais económico mas integralmente idêntico volume de bolso, como aliás fez com outros autores clássicos e modernos. À excepção do conjunto de poemas de estreia Amores e destas Heróides, Ovídio fica assim ao alcance do público português em edição de preço acessível. Pode ser que num futuro breve venha a ser dado à estampa o seu conjunto de poemas Tristia, um sublime canto de exílio e mágoa que reflecte os últimos anos de vida do autor.

Devidamente apresentada e explicada por Carlos Ascenso André, também tradutor de Amores, Arte de Amar e Remédios Contra o Amor, esta edição assume tremenda importância, resolvendo simultaneamente uma lacuna bibliográfica e dando-nos a conhecer um conjunto de vinte e um poemas epistolares de desamor, traição, angústia, luxúria e desespero que poderão ter sido os precursores de um género literário que só ocasionalmente conheceu génio à sua altura. Os textos desta obra encontram-se divididos da seguinte forma: os primeiros catorze poemas são emitidos por mulheres como Penélope, Fedra, Dido, Medeia, Ariadne, entre outras, e destinados aos respectivos amantes, todos distantes, desavindos, traidores ou desaparecidos. O décimo quinto poema é remetido por Safo, escolha aventureira por parte do autor por se tratar de um dos nomes maiores da poesia grega e única figura real presente nestas páginas. O estilo desta epístola é claramente diferente do das demais na colectânea, homenageando uma mulher que despudoradamente ousou amar iguais e escrever com a febre de inspiração que a tantos seus contemporâneos faltou. Temos depois uma curiosíssima secção com seis poemas correspondidos, comummente designada de Heróides Duplas, única ocasião em que é dada voz a figuras masculinas.

É incerto o enquadramento temporal relativo à composição destes últimos textos, e as diferenças subtis de estilo são por vezes perceptíveis. No seu conjunto, estes versos reinventam personagens mitológicas, dando-lhes nova vida através de vozes que reflectem raivas, presságios e desejos ancestrais, desempoeirando ao mesmo tempo episódios e figuras fundamentais da ficção universal. São, na sua maioria, poemas escritos no feminino e destinados a homens, concebidos todos por um homem que criou de raiz uma postura literária de sensibilidade irrepetível, muitas vezes esquecida porque tratada como história quando é, sempre foi, puramente literatura. Importa também realçar que esta abordagem corajosa da mitologia grega nos permite entender uma latente proximidade entre o homem real e a figura literária, defeituosos ambos e ambos propensos a inexoráveis fracassos, humilhações, injustiças e tormentas. Qualquer deus ou herói que se escolha dentro da literatura clássica será vero reflector de virtudes e fraquezas humanas, sendo inesgotáveis as possibilidades de interpretação de leituras neste domínio.

A reacção de primeiros leitores a esta obra é algo que só se poderá especular, permanecendo porém inalteradas a surpresa e a sedução imanentes a um texto que resistiu ao silêncio e ao tempo, surgindo-nos hoje como discurso de indiscutível originalidade poética. Não deixa de ser curioso que o mesmo homem que reescreveu uma tradição ancestral na pele feminina tenha sido o criador das imortais Metamorfoses, extenso conjunto de versos que pretende explicar, recriar e remodelar alguns mitos gregos, dando-lhes nuances surpreendentes e deixando em música literária uma nova mitologia, já latina por direito. Terão as Heróides sido o prenúncio de uma transformação cultural cujas consequências são ainda hoje obscuras e de difícil mensuração?

Autor de conselhos amorosos, elegias inspiradas e lamentos atordoantes, Ovídio conseguiu como poucos pôr em verso o que a vida põe nos corpos em que sopra com mais fôlego, um dos quais o seu. Terá sido um amante dos prazeres mundanos, desviado mulheres casadas, provocado gente poderosa do seu tempo. Ainda em vida foi amado enquanto mestre e venerado por letrados, mas não conseguiu fugir a um devastador castigo que o expropriou da sua língua, dos seus bens e da sua casa, proibindo-o de pronunciar o próprio nome e banindo não se sabe por quantos anos os seus já consagrados trabalhos. Forçado a viver longe da sua família e da sua terra, o poeta terá sentido na primeira pessoa o que anos antes escrevera na personificação de Ariadne, naquela que será uma das mais acutilantes elegias do conjunto aqui tratado.

São ainda desconhecidas as razões que terão levado o Imperador Augusto a exilar Ovídio em Constança, cidade costeira da actual Roménia e mais remoto ponto do então Império Romano, sabemos apenas que lá terá passado os seus últimos anos e que a sua escrita, tal como a sua vida, sofreu um profundíssimo abalo. Se nas Heróides encontramos insuspeitos lamentos, não poderia o autor prever na altura da sua composição que os seus derradeiros textos seriam elegias de vivência, não de invenção. Terá este poeta sido vítima da mesma má fortuna de que nos fala Camões? Certo é que ambos sofreram a ira das suas pátrias, de ambos se narra uma tendência devassa, de ambos se conhece o final trágico, o segundo refere o primeiro como importante influência.

Bem vistas as coisas, o cânone ocidental usufrui de uma riqueza literária grandemente devida aos autores clássicos e à coragem que muitos destes assumiram ao desafiar preceitos morais e artísticos vigentes nas suas épocas. A alteridade pode bem ser o mais importante condão ético a preservar nas várias artes, e se nos dias que correm uma mansa tendência assume as rédeas de uma maré egoísta e inócua que se espraia um pouco por todo o lado, sirva o ressurgir destas mulheres anciãs para mostrar que ainda há muito para fazer no que toca à criação artística. Não esqueçamos que o Imperador Adriano de Yourcenar, a Bola de Sebo de Maupassant, Anna Karenina de Tolstoi, Isabel Archer de Henry James ou as mulheres das canções de Chico Buarque são exemplos de descendentes felizes mais ou menos directos desta ousadia de Ovídio. Seja então esta a porta de entrada para a obra de um autor fascinante e intemporal.

 

Heróides (Cartas de amor), de Ovídio (tradução de Carlos Ascenso André)

Páginas: 200 / Preço: 25€