Rei. Discurso de Filipe desagrada esquerda. Ferro compensou

Monarca defendeu a União Europeia e a NATO, levando a esquerda a não aplaudir. Presidente da Assembleia compensou com discurso muito político

A chuva atrasou o trânsito. O trânsito atrasou o Rei. A sessão solene de receção ao casal real, agendada ontem para às dez e meia da manhã na Assembleia da República, fugiu assim à hora programada. 

No parlamento, conversava-se. Mariana Mortágua ladeava Pedro Nuno Santos, debatendo casualmente com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Socialistas interagiam de frente para as bancadas mais à sua esquerda. Passos Coelho, que chegou antes de Luís Montenegro, falava com a sua vice-presidente, Teresa Morais. Hugo Soares, vice da bancada social-democrata, sorria com Maria Luís Albuquerque. Mais à direita, no CDS-PP, Assunção Cristas morava sentada entre os seus dois homens-fortes no parlamento: Nuno Magalhães e Telmo Correia. Pelo meio, entraram ministros e secretários de Estado, encabeçados por Augusto Santos Silva; o governante dos Negócios Estrangeiros dispunha geometricamente as cadeiras dos seus colegas até alcançar o seu lugar ao meio, mais junto do primeiro-ministro.

O tempo ia passando e o tema mudava da política para o futebol. Quando a falta de eficácia dos avançados do Futebol Clube do Porto começou a esgotar como assunto, a banda da guarda de honra tocou, anunciando a entrada da comitiva.

Em cima, nas galerias, os convidados de honra incluíam Eduardo Lourenço, Fernando Medina – presidente da Câmara Municipal de Lisboa -, e o General Ramalho Eanes, acompanhado pela respetiva esposa. Mais tarde, o antigo casal presidencial português partilharia a varanda com a Rainha Letícia. 

Primeiro, ouviu-se a Marcha Real, apenas instrumental, e depois a Portuguesa, cantada baixinho pelos deputados nacionais. Todos estiveram de pé durante os hinos nacionais.

Eduardo Ferro Rodrigues, o presidente da Assembleia da República, inaugurou a sessão com um discurso em que destacou o “grande afecto” que o povo português manifestou aos reis espanhóis durante a sua estada e que é “a união que faz a força” com o “optimismo das vontades”, em vez  dos que preferem estar “no pessimismo e no fatalismo” – uma referência que não fez Pedro Passos Coelho mover-se um milímetro na cadeira.

A intervenção de Ferro Rodrigues ganhou um evidente contorno político. O antigo líder da bancada parlamentar socialista assumiu como prioridade “combater a desigualdade social”, tendo em conta que, para si, a “economia global não resulta de nenhum fenómeno natural” e a sua configuração atual “não é determinada por nenhuma mão invisível” – uma menção ao conceito que simboliza uma economia mais livre, rejeitada pelo PS na moção de estratégia que o líder, António Costa, levou ao último congresso do partido. Nessa moção, o primeiro-ministro acusava o centro-direita de “forte desvio neoliberal”, de “fé excessiva na autorregulação dos mercados” e de não “impor uma regulação suficiente do processo de globalização”, assim como Ferro apelava ontem ao parlamento para “regularizar a mundialização”. 

O presidente da Assembleia abordou também a questão europeia, considerando que a União Europeia “respondeu de forma tardia e insuficiente, deixando que a crise financeira se transformasse numa crise das dívidas soberanas”. Essa insuficiência “deixou-nos impacientes (…) e muito preocupados no caso dos refugiados”, afirmou Ferro. A moção de estratégia de Costa também apontava a respostas à “crise das dívidas soberanas” e ao “drama dos refugiados” como maiores anseios. 

A direita, apesar do discurso mais político da segunda figura do Estado, aplaudiu. Com a mesma discrição com que a câmara entoou o hino. Ferro deu a palavra a sua “Majestade” e Filipe subiu à tribuna. 

O monarca espanhol introduziu e concluiu em português, língua que o seu pai, Juan Carlos, fala na perfeição por ter crescido em terras lusas. Filipe disse vir “de coração aberto” para se “dirigir a quem encarna a nação portuguesa” que frequenta desde a infância. Todavia, o soberano não abdicou de também marcar o seu compasso político. De uma Europa “vigorosamente” construída como “destino comum” dos países da Península Ibérica, que celebram em 2016 o “trigésimo aniversário de ingresso simultâneo na comunidade europeia”, à ”dimensão atlântica” que une Portugal e Espanha na NATO para “salvaguardar a liberdade e a sua segurança”, D. Filipe VI deixou até uma palavra amiga à aclamação de António Guterres como secretário-geral da Organização das Nações Unidas, que teve “o apoio entusiástico de Espanha desde o Conselho de Segurança”. 

A direita e o PS aplaudiram de pé. O PCP levantou-se e manteve-se estático. O Bloco permaneceu sentado e também não aplaudiu. 

O discurso amigo de Ferro não serviu para compensar a aversão da esquerda ao europeísmo, ao atlantismo e ao não republicanismo que Filipe representa, mas até o governo presente, que não tem por hábito aplaudir em parlamento, bateu umas discretas palmas. 

Filipe e Letícia partiram. Um dia antes de fazer 376 anos que outro Filipe, de visita menos feliz, fora obrigado a partir.