Eduardo Cintra Torres: ‘Como a Igreja pagava aos artistas, alguém vai pagar aos jornalistas’

Eduardo Cintra Torres é doutorado em Sociologia. Professor visitante na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, é autor de 17 livros, entre os quais, “Multidão e Televisão: Representações Contemporâneas da Efervescência Coletiva”.

A quase totalidade da comunicação social, sobretudo os jornais, pronunciaram-se contra Donald Trump e favoráveis a Hillary Clinton. Achavam, mesmo os jornais republicanos, que Trump era um candidato inapresentável e sem qualquer hipótese. Essa posição demonstra um crescente desconhecimento do país onde vivem por parte dos jornalistas?

Para além de mostrar que, de alguma forma, os jornalistas vivem numa bolha e percebem mal a sociedade em que vivem, explica-se um pouco a crise dos media quando mais de 90% dos diários e semanários dos EUA apoiaram editorialmente um dos candidatos. Revela um certo desequilíbrio na comunicação e configura uma crise de representação: é esperado que os media, na sua pluralidade, representem a opinião pública.

Os EUA não são caso único: em Portugal, cerca de 15 a 20% da opinião política (PCP e BE) estão sub-representados em termos de opinião publicada, e não me parece que não haja algum grupo de comunicação que lhes seja afeto.

Sem comparar a qualidade do jornalismo, não acho que haja tanto desequilíbrio em relação à pluralidade de opiniões expressa pela comunicação social em Portugal.

Não é absolutamente visível que o PCP está sub-representado?

O PCP está menos representado, mas também está, com deputados na SIC Notícias, na RTP3 e só não sei se na TVI24. Estou a falar em termos de comentadores. Em relação ao número de notícias, creio que há também um certo equilíbrio.

Mas quando falamos do número de notícias, isso não quer dizer que o tratamento seja equilibrado: provavelmente, Clinton e Trump tinham o mesmo número de notícias e o tratamento não era muito equilibrado.

Aí estamos de acordo: o que se passou nos EUA é que a informação era altamente enviesada a favor de Hillary Clinton. Mesmo que fosse toda factual, isso não quer dizer que não houvesse outras formas de fazer enviesamento. Repare, enquanto Trump foi bastante escrutinado, e ainda bem, em relação aos seus negócios imobiliários e declarações, não se viu equivalente escrutínio dos negócios da família Clinton e da fundação de Bill Clinton.

Em Portugal, quando os dados estatísticos revelaram que tinha sido o país do euro onde a economia mais tinha crescido no último trimestre, a esmagadora maioria dos jornais deste país omitiu isso na capa. Não há aqui também um enviesamento?

Dar propaganda desse género na primeira página pode ser fantástico do ponto de vista jornalístico…

Não é um dado objetivo?

É um dado, mas o destaque que se lhe dá pode ser propaganda. Não consigo ver especial enviesamento. Há enviesamento em tudo: o jornalismo é uma atividade subjetiva. Há um enviesamento saudável que resulta do jornalismo ser feito por pessoas com opiniões subjetivas.

Mas para além dessa crise de representatividade de que falava, há uma crise do jornalismo?

Essencialmente, do modelo económico. O jornalismo está vivo e recomenda-se. O problema foi há 15 anos terem decidido disponibilizar conteúdos à borla.

(riso) Está no seu momento Montenegro – quando o líder parlamentar do PSD disse que o país estava melhor embora as pessoas estivessem pior (risos).

Não, não é isso. Acho que continua a haver jornalismo. E jornalismo de investigação. No i, no “Correio da Manhã” e no “Expresso”, só que isso é limitado devido à escassez dos meios, esses meios são cada vez mais limitados e os órgãos de comunicação estão em dificuldades devido a terem andado a oferecer notícias ao Google e ao Facebook e a contribuírem para o negócio deles.

Desde o séc. xix que o modelo do jornalismo é produzir notícias abaixo do preço de custo. O público sempre pagou muito menos do que elas custavam a ser feitas.

Não era, em virtude de esses custos serem suportados pela publicidade nos próprios meios. Serem colocados de borla no Google e no Facebook é substancialmente diferente.

A crise é meramente económica?

Eu sou moderadamente otimista. Não pode haver democracia sem jornalismo.

Mas pode não haver democracia.

Mas há uma democracia formal com eleições, um regime em que não batem no Eduardo nem no Nuno por questões de opinião. Não creio que na Europa ocidental estejamos na situação de despotismos como na Turquia de Erdogan ou na Rússia de Putin. É uma democracia controlada pela elite do costume, mas temos de lhe chamar uma democracia.

E isso implica ter jornalismo mesmo que não haja ninguém que o pague?

Acho que sim. Vê-se já por aí gente, quer das elites mais cultas e educadas quer do próprio Estado, a procurar meios para haver jornalismo: não para o influenciar, mas para permitir que ele exista.

Como se subsidia o cinema e outras coisas?

Exatamente, arranjar maneiras de manter o jornalismo, dada a espiral em que se entrou com a oferta gratuita de conteúdos e a concorrência de alternativas não jornalísticas que fazem sombra aos órgãos de comunicação social. As democracias, por muito imperfeitas que sejam, necessitam de jornalismo.

Mas não há uma crise da mediação? Os conteúdos nas redes sociais feitos por cidadãos comuns concorrem em pé de igualdade com o jornalismo e muitas vezes não se consegue perceber a diferença de qualidade, dado os cortes sucessivos de meios no jornalismo.

Há uma crise. Não sei dizer como vai ser ultrapassada. Mas acho que não é possível substituir o jornalismo em democracia. Ele vai ter de evoluir para se manter como atividade e provavelmente será através do mecenato ou de outras soluções: como a Igreja pagava aos artistas, agora alguém vai ter de pagar aos jornalistas.