Uma ilha fora da corrente. A pátria daqueles que buscam viver da arte

Depois de uma série de governos repressivos, a cena artística cubana nunca foi menos do que vibrante, e houve sempre espaço para o inconformismo. A arte desempenhou um papel fundamental na revolução, e o regime castrista nunca se esqueceu disso. Hoje Cuba é um dos poucos sítios no mundo onde a classe artística é verdadeiramente…

Com a nostalgia como droga de eleição nestes vertiginosos tempos modernos em que vivemos, Cuba encontra um lugar especial entre o exotismo das suas paisagens, o caloroso clima caribenho, e a peculiaridade da sua história e cultura, inclinadas sobre o plano da revolução de 1957. A ilha onde vive uma população com pouco mais de um milhão que a portuguesa, e no efeito de âmbar de um país numa espécie de vácuo temporal, encontram-se nas suas cidades alguns dos melhores preservados exemplos de arquitetura, estando rodeada de idílicas ilhotas selvagens onde se pode observar uma rica vida marinha. Mas se a beleza natural de Cuba pode ser o principal atrativo para o turismo, que é também a principal fonte de receitas e que, ao longo décadas, lhe permitiu algum alívio face ao sufocante embargo norte-americano, os cubanos souberam criar uma vibrante vida cultural, criando as suas próprias mitologias na relação com um passado que, em vez de ficar cristalizado em fábulas típicas, continua a multiplicar-se numa rica tradição oral e literária. E o mundo habituou-se a ouvir falar das novas estrelas em ascensão no prodigioso panorama artístico cubano, sendo que, apesar de todas as dificuldades e miséria que se vive na ilha, apesar dos limites e da vigilância do aparelho de Estado, que procura cercear os naturais impulsos para a dissidência, a cultura tem sabido atualizar-se, estar atenta e seguir a par dos ecos que chegam do resto mundo, e por isso a sua é uma arte que nunca perdeu de vista o futuro.

Não é preciso ser um aventureiro para se passar além das avenidas que servem de montra para os turistas, um pouco por toda a parte se encontram os sinais de um povo que aprendeu a confiar na arte para se desdobrar dentro de certos limites. Se parte do encanto da ilha se faz do ambiente de ruína, com o tempo a trabalhar para despir as casas e os edifícios do seu antigo prestígio, conferindo-lhes um charme do além, e depois há os clássicos americanos, belíssimos carros que ficaram quando os seus donos fugiram, e que são estimados pelos seus novos donos, relíquias sempre impecáveis, remodelados, com um revestimento novo da pintura, mudando de pele como as cobras para aguentar as investidas do tempo, e onde ainda se ouve o ronco de um motor que terá sobrevivido graças ao transplante engenhoso de partes de um trator soviético. 

Além da rumba cubana, que a UNESCO declarou há dias património imaterial da humanidade, “uma expressão de autoestima e resistência” que contribui para a formação da identidade nacional, um reconhecimento que a delegação de Cuba dedicou a Fidel Castro, não se pode também passar ao lado de uma outra fenomenal tradição a que se assiste nas fábricas das tabaqueiras de Havana. Acarinhada como património nacional, a profissão daqueles que ganham a vida a ler em voz alta nas fábricas de charutos de Cuba, é uma tradição que já conta com 150 anos de existência, sendo única no mundo, e refletindo o apego que os cubanos têm à cultura, como modo de se lançarem para lá das suas circunstâncias e constrangimentos. Enquanto os operários enrolam a folha de tabaco, vão lendo com os ouvidos, de manhã os jornais, e à tarde os grandes romances, poesia, tudo. Segundo especialistas, esta prática terá sido responsável pela politização dos trabalhadores do tabaco, que tiveram um importante contributo para o movimento independentista, no século XIX, e depois no período revolucionário. Como relatava numa reportagem para o “Público” Lucinda Canelas, quando em 2012 esta tradição se tornou candidata a herança cultural da humanidade, entre os operários das fábricas algumas das leituras mais populares eram obras de autores como Fiódor Dostoievski, Stendhal, Balzac, Victor Hugo, Emile Zola, William Shakespeare, Edgar Allan Poe, Herman Melville e Alexandre Dumas. 

Mas se a alma de Cuba tira proveito de alguns anacronismos, também se debate com uma série de contradições, e a sua produção cultural está longe de se ver limitada à nostalgia e a um revivalismo dos ideais revolucionários. O país colhe há muito os frutos de uma robusta tradição no campo das artes visuais, e há longa linha que pode ser traçada em continuidade desde as obras modernistas pré-revolucionárias até aos seus pintores e escultores contemporâneos, com um número crescente de artistas tornarem-se figuras de culto não apenas na ilha mas muito para lá dos seus limites. Disso mesmo nos dá conta Patrick Symmes num artigo para uma publicação de viagens da Condé Nast, em que dão o exemplo da Bienal de Havana – que ao estilo tipicamente descontraído dos cubanos, ocorre a cada três ou quatro anos -, e que se tornou paragem obrigatória para os galeristas e colecionadores norte-americanos. E algumas das superestrelas da cena cubana, como o coletivo de arte conceptual Los Carpinteros ou o escultor Alexandre Arrechea, a contarem com obras suas no acervo de algumas das principais casas de arte de Nova Iorque.  

Se a arte continua a constituir um perigo sempre que desafia as coordenadas do regime castrista, desde que Fidel deixou ao irmão a direção do país, as coisas têm evoluído, e especialmente desde o restabelecimento das relações diplomáticas com os EUA, notícia que foi acolhida com enorme entusiasmo pela comunidade artística cubana. Para muitos negociadores de arte, Cuba representa um verdadeiro oásis, e Ella Fontanals-Cisneros, que nasceu na ilha mas cresceu no exílio, tornou-se uma das figuras mais preeminentes construindo a partir de Miami uma das maiores coleções de quadros de pintores cubanos do século XX, e embora possa escolher entre as suas propriedades em Miami, Nova Iorque, Madrid, Londres e Suíça, prefere passar a maior parte do ano em Cuba, numa elegante casa no bairro Siboney, nos arredores de Havana. A Symmes explicou que lhe causa espanto a forma como os artistas na ilha são tidos em alta conta, como se acultura em Cuba existisse num tempo à margem do degradante contexto pop que domina o tempo global.

A classe artística profissional em Cuba não tem par se compararmos a sua dimensão e influência na sociedade dos restantes países do mundo. E se há toda uma panóplia de talentos que alimentam a indústria turística, com pequenas galerias a céu aberto e em cada canto a tentar seduzir os estrangeiros para as pinturas ou o artesanato – os lânguidos pores-do-sol, os corpos a dar para um manso erotismo, ou os velhos carros que servem de emblema às ruas cubanas – paisagens e objetos como souvenirs, diplomas para levar para casa certificando aqueles dias passados na ilha, paralelamente, existe um núcleo artístico que desbrava caminhos para aguçar o sentido estético, com grandes desenhadores e pintores, bem como outros que fazem vigorosas incursões pela arte contemporânea, tendo à sua volta um anel de profissionais que sabem vendê-los pelo mundo fora.

De resto, os artistas estão entre os poucos cubanos que são frequentemente autorizados a viajar para o estrangeiro, com o regime confiante de que ao tomarem contacto com a situação dos artistas que procuram sobreviver da sua arte no resto do mundo, não terão vontade de passar ao exílio. E o facto é que entre a sociedade cubana, os artistas representam uma elite, mais viajada e melhor informada, gozando dos privilégios de manter relações com pessoas influentes noutros países, contactos que os ajudam a conseguir não apenas os materiais de que precisam para trabalhar mas uma série de outros bens que estão vedados aos seus concidadãos. São como embaixadores, capazes de ir ao futuro, e trazer com eles alguns souvenirs, podendo regressar ao passado, aos anos 1950, e saber notícias do mundo como quem assiste a um filme de ficção científica na televisão.

A condição muito particular de isolamento em que Cuba vive há décadas, tornou-a um dos raros sítios no mundo onde um artista pode viver da sua arte e deter simultaneamente um papel de influência que hoje nem mesmo os escritores e os intelectuais conseguem ter na maioria dos países ocidentais. A arte desempenhou um papel crucial na revolução, e em reconhecimento disto, os sucessivos governos promoveram a cultura popular, desde filmes e teatro até à música e a dança, investindo igualmente nos campos mais restritos das artes plásticas. Há atualmente 14 escolas de arte, uma Universidade de Belas Artes, bem como 13 mil “artistas registados” na ilha. E se o embargo não se aplica às artes visuais – uma tela enrolada, uma gravura ou uma escultura, por qualquer razão, entram na categoria de “material informativo”, com o Departamento do Tesouro norte-americano a permitir aos americanos que trabalham nas artes que regressem da ilha legalmente sem um limite dos objetos de arte que podem trazer nas malas -, ainda assim há uma série de outros constrangimentos, incluindo a grande dificuldade no acesso à internet e o simples facto de não haver no país uma única loja de materiais de arte, entre outras barreiras ao desenvolvimento da indústria, e estes fatores têm levado muitos artistas a emigrar. 

Nos contactos que manteve com alguns artistas nas suas viagens à ilha, Patrick Symmes recorda o que lhe disse um pintor de 47 anos conhecido como Angél, que tinha estado em 15 países, e que, uma vez que o custo de vida em Cuba é muito baixo, com a venda de um quadro na Europa consegue sustentar a sua família durante anos. Também Osy Milian, uma pintora de 21 anos que tem visto a sua reputação crescer depois de se distinguir na escola de arte e sem acumular quaisquer dívidas, e que depois de vender alguns quadros nos EUA tem a liberdade para trilhar o seu caminho sem preocupações económicas. Não há, assim, nenhuma penalização por se ser artista nesta nação socialista. É-se pago o mesmo, tem-se acesso aos mesmos alimentos, abrigo e condições que um qualquer administrativo, operário fabril ou trabalhador rural, e os frutos do trabalho são igualmente considerados. Segundo Fontanals-Cisneros, “se estás condenado a viver como um teso, Havana não é um mau sítio para fazê-lo”.

Se as artes visuais são há muito um dos pontos fortes da cena cultural cubana, desde os anos 80 houve um movimento muito forte na senda da arte contemporânea, com uma geração de jovens artistas a alcançarem aclamação internacional e a serem vistos como figuras de proa em toda a linha. Hoje, o trabalho desta constelação de artistas está espalhado por alguns dos melhores museus e galerias de artes, e a perspetiva de um novo capítulo nas relações com o maior antagonista da ilha, os EUA, tem levado muitos a apostarem que a arte cubana pode vir a abrir muitos caminhos e tornar-se imensamente influente no mundo.