David contra Golias

O triunfo da revolução, a reforma agrária e a nacionalização de empresas levam ao choque com os EUA. Um conflito que passa a definir a dinâmica de um regime que para se defender do império reprime qualquer dissidência

David contra Golias

No seu diário Che Guevara conta a liquidação de um camponês que tinha avisado o exército da presença dos homens de Fidel, dando informações que permitiram ao exército quase liquidar os guerrilheiros em Alegria de Pio. Eutímio Guerra suplicou aos guerrilheiros que a revolução cuidasse dos seus filhos. Che anuiu. Um trovão cruzou o céu e um guerrilheiro deu-lhe um tiro na cabeça.

No mesmo diário Che Guevara lamenta que a guerrilha fosse demasiado fraca para prender os traidores. Nessa circunstância só os podia matar. O problema das revoluções, e também da cubana, é que raramente conseguem ter força suficiente para sobreviver sem ter de disparar.  E quanto mais disparam menos sentido libertador têm. Os revolucionários, quando tomam o poder, criam tribunais especiais e fuzilam cerca de 500 dos chefes militares e torcionários de Batista.

As imagens correm o mundo e levam a comunicação social e o governo dos EUA a protestar contra essa “barbárie”. O facto irrita Fidel, que contesta que era pena que não tivessem feito o mesmo barulho pelos muitos milhares de mortos e torturados pela ditadura de Fulgencio Batista.

A 17 maio de 1959, Fidel Castro aprovou a lei da Reforma Agrária, que resultou na expropriação de numerosos grandes proprietários, muitos deles norte-americanos. A nacionalização de empresas dos EUA e a expulsão dos mafiosos da indústria turística e do jogo da ilha levou a retaliações económicas do governo dos EUA. A crescente hostilidade da Casa Branca foi vista pelos revolucionários de Havana como uma ameaça. Depois de ter sido lançada uma campanha nacional de alfabetização, Fidel recuou na promessa de fazer eleições livres em 18 meses: “Primeiro a revolução, depois as eleições”, defendeu.

Anos depois, já no tempo do chamado “período especial” (depois da queda da União Soviética), falei com um membro do bureau político dos comunistas cubanos, Abel Prieto, que me respondeu de forma dura à pergunta sobre o porquê de não existirem eleições multipartidárias em Cuba: “Se fosse com a nossa oposição interna, as eleições eram já amanhã. Agora, nós não concorremos contra os dissidentes, mas contra o império. E não há eleições justas e equilibradas contra o poder de um império.”

Em 1959 dão-se as primeiras dissidências importantes no seio dos revolucionários: o comandante Huber Matos, que tinha estado na Sierra Maestra com Fidel e que era governador militar de Camaguei, demite-se em protesto contra a crescente radicalização da revolução. Esteve 20 anos preso. Quando saiu, justificou-se a uma revista norte-americana: “Eu divergi de Fidel Castro porque o objetivo inicial da revolução era ‘liberdade ou morte’. Uma vez Castro no poder, começou a matar a liberdade.” 

A 17 de abril de 1961, depois de uma série de ataques e atentados de forças contrarrevolucionárias armadas pelos EUA nos meses anteriores, 1500 cubanos treinados pela CIA invadiram a ilha, na operação que ficou conhecida pelo nome de “Baía dos Porcos”.

O desembarque foi precedido de bombardeamentos de aviões norte-americanos pintados com as cores da força aérea cubana. Junto às praias, centenas de milicianos cubanos, comandados por Fidel Castro, esperavam os invasores. A maioria dos expedicionários da CIA foram capturados ou mortos. O executivo de Kennedy, depois de exposto o seu envolvimento em termos internacionais, recuou em atacar diretamente a ilha com o exército norte-americano. 

Em 2 de dezembro de 1961, Fidel faz um longo discurso na Praça da Revolução em Havana e explicita a sua posição perante o conflito político e ideológico que tem com a Casa Branca: “Sou um marxista-leninista.” A 22 de janeiro de 1962, Cuba é excluída da Organização dos Estados Americanos (OEA), e poucos dias depois, a 3 de fevereiro de 1962, o presidente norte-americano Kennedy ordena o bloqueio económico à ilha que se mantém até aos dias de hoje. A 14 de março de 1962, Kennedy aprova um plano secreto de operações “a fim de ajudar Cuba a derrubar o regime comunista”. Este plano de guerra suja é batizado de Plan Mangosta.

A 22 de outubro de 1962, depois de aviões de reconhecimento dos EUA terem identificado bases de mísseis nucleares soviéticos na ilha, Kennedy dá ordem para os navios de guerra bloquearem a ilha e diz ao ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, Andrei Gromiko, em Washington, estar pronto a invadir Cuba.

Depois de alguns dias de braço-de-ferro, os soviéticos recuam sem consultar os cubanos. O que irrita Fidel Castro, que se manifestava disposto a ir para a guerra com os norte-americanos, tendo mobilizado 70 mil cubanos para se opor à invasão. Em entrevista ao jornalista francês Ignacio Ramonet, Fidel recordou esses momentos: “Nós inteirámo-nos pela comunicação social de que os soviéticos estavam a fazer a proposta de retirar os mísseis. Não tinham sequer discutido connosco.

Não estávamos contra uma solução, porque o importante era evitar uma guerra nuclear. No entanto, os soviéticos tinham de ter dito aos norte-americanos: ‘Têm de conferenciar com os cubanos.’ E não tiveram firmeza.” Os soviéticos conseguem como moeda de troca a promessa dos EUA de que não invadirão a ilha e a retirada de mísseis nucleares dos EUA da Turquia. 

Che Guevara era, dos combatentes do grupo expedicionário inicial, daqueles que possuíam maior formação ideológica. Percebia a necessidade de a Revolução Cubana se aliar à União Soviética para sobreviver, mas não lhe agradavam algumas das características burocráticas do socialismo real e, sobretudo, não se estava a ver a fazer esse tipo de trabalho em Cuba. Fidel Castro defendia que, se os EUA “internacionalizavam o bloqueio, Cuba iria ajudar a internacionalizar a revolução”. 

Na conferência tricontinental com os movimentos de libertação em Argel, Che Guevara lança a sua primeira palavra de ordem: “Há que criar dois, três, muitos Vietnames” para combater “o imperialismo norte-americano”. Guevara participa em guerrilhas em África, experiências sem sucesso. E posteriormente faz o plano de, a partir da experiência cubana, estabelecer uma guerra de guerrilha na Bolívia.

A sua presença é conhecida pela CIA, não consegue nem apoios locais suficientes na zona onde começou a implantar-se, e conta no país com a oposição do partido comunista local, que não foi tido nem achado para o projeto e o tipo de ação revolucionária que estava planificada.

No dia 9 de outubro de 1967, Che Guevara é fuzilado na Bolívia por tropas locais assessoradas por agentes da CIA. Estava suprimida a tentativa de a Revolução Cubana se expandir na América Latina. Só em 1979 é que outra guerrilha, os sandinistas, tomam o poder num outro país da região, a Nicarágua.