Martino e o sonho da medicina familiar no Martim Moniz

Martino Gliozzi é italiano, tem 33 anos e coordena a nova Unidade de Saúde Familiar da Baixa. Quer criar uma “ilha da tolerância”

O gabinete de Martino é o número 10. Estamos no rés-do-chão de um dos modernos edifícios do largo Martim Moniz. O badalado projeto da EPUL passou a 17 de novembro a ser a morada da nova Unidade de Saúde Familiar da Baixa. Nas paredes há duas fotografias. Nos tempos livres, que agora são menos, o médico italiano de 33 anos é fotógrafo amador, gosta de captar o contraste.

Numa delas, um bairro pobre de São Luís do Maranhão, registo de uma temporada que passou no Brasil. Quando terminou o internato em Lisboa em medicina geral e familiar, Martino Gliozzi pensou em voltar a cruzar o Atlântico para se dedicar à medicina familiar numa favela, fazer a diferença. “Não me conseguia ver a trabalhar num centro de saúde do antigamente, onde há coisas de que ninguém gosta mas pouca vontade de mudar”, diz.

A vida trocou-lhe as voltas e foi desafiado há um ano a coordenar a unidade agora recém-inaugurada. Não hesitou, mas não anteviu o trabalho que tinha e tem pela frente. Não esconde o cansaço, mas no discurso do dia da inauguração fez o compromisso que é para cumprir: mostrar que “outro mundo é possível” nos cuidados primários. E criar uma ilha de tolerância no Martim Moniz.

Três semanas depois, o caminho vai ganhando forma. No gabinete minimalista mas funcional como todo o espaço da USF, onde o único contraste são linhas coloridas no chão que ajudam os utentes a orientarem-se pelos corredores, há as fotografias e a bata de médico pendurada a um canto num cabide. A diferença começa aqui, explica. Na USF da Baixa, os médicos não usam bata. “Queremos aumentar a proximidade com os utentes, que sintam que os médicos são pessoas como eles.”

A equipa chama a atenção por outros motivos. Os oito médicos são todos recém–especialistas. O mais velho tem 35 anos. Nos enfermeiros, quase a mesma estatística. A mais sénior, Estefania – espanhola que trocou os corredores da obstetrícia em Santa Maria pelo desafio da medicina familiar no Martim Moniz – tem 38 anos.

“Claro que, ao início, as pessoas comentam. Ouvimos de tudo na sala de espera, até que somos os médicos de fraldas”, sorri Martino, que desde que aterrou em Portugal para fazer o internato em 2009 se habituou à arte de construir a empatia à medida que foi também ganhando a experiência necessária. “No início do internato foi pior: sofri do que costumo chamar a síndrome do médico interno com sotaque estrangeiro. Depois, as pessoas habituam-se.”

Mudar rotinas Além dos médicos e enfermeiros, há cinco administrativos. Completa-se assim a equipa de 21 pessoas com uma carteira de 14 500 utentes, 27% dos quais imigrantes de mais de 20 países, principalmente Bangladesh, Nepal e Brasil.

Depois de um ano a afinar processos no centro de saúde de São Nicolau, a mudança para o n.o 43 da Rua da Palma e a criação da USF autónoma trouxe novas rotinas que Martino acredita poderão ajudar a tornar os cuidados primários serviços que geram confiança na população e, com isso, permitem melhores resultados de saúde.

Para acabar com as filas de 20 ou mais pessoas que se formavam todas as manhãs à porta das anteriores instalações, mudaram o esquema de funcionamento da consulta aberta, as consultas que se podem marcar no próprio dia. 

“Em vez de manter a velha lógica de que os primeiros a chegar tinham vez, temos consultas disponíveis ao longo de todo o dia e sem limite, o que aos poucos foi mostrando às pessoas que podiam chegar às 17h e ter consulta. Se houver motivo para serem vistas no próprio dia, são.” 

Isto só foi possível porque criaram um sistema de triagem que permite destrinçar as situações mais urgentes das que podem esperar por uma consulta agendada para os dias seguintes. Uma folha que se preenche à chegada bastou. Nela se explica o que justifica uma consulta no dia e o que se pode esperar, como o pedido de documentos ou o esclarecer dúvidas, que até pode ser feito mais tarde com um telefonema do médico. 

Têm prioridade no dia sintomas novos, com até uma semana de duração, baixas por doença aguda no próprio dia, a intenção de interromper a gravidez ou uma referenciação urgente.

“Foi uma mudança simples, mas dá mais trabalho, sobretudo aos administrativos. Digitalizam a folha e enviam-na ao médico no gabinete, que decide o que fazer.” Para contrariar o mal sistémico das consultas interrompidas a toda a hora nos serviços sobrecarregados de doentes, instituíram a regra de que, lá dentro, todos falam por chat, outra pequena mudança para tornar o serviço mais operacional. Uma decisão mais radical foi proibir as visitas dos delegados de informação médica. “A indústria farmacêutica tem o seu papel e investe em investigação, mas queremos garantir a independência, porque é sempre uma forma de influência”, diz Martino. Mais que não seja, com os delegados a toda a hora nos serviços ouvem falar mais de um dos medicamentos do que doutros. “Até para os utentes é um passo importante: não percebem quem é aquele senhor de fato e gravata a entrar no gabinete quando eles estão à espera.”

Reuniões com todos Como em muitas unidades de saúde familiar do país – o modelo de equipas de saúde coordenadas por médicos que nos últimos dez anos foi substituindo o formato tradicional dos centros de saúde do SNS, mas que ainda só abrange metade da população -, há outro elemento importante na nova rotina: reuniões semanais, com toda a equipa, onde todos podem apontar dificuldades e fazer sugestões, uma forma de ir mantendo a motivação. 

Apesar de o edifício ser “uma sorte” no meio de tantas estruturas debilitadas em prédios antigos, também eles, recém- -inaugurados, têm as suas queixas. Sistemas informáticos que falham e necessidade de mais pessoal para dar conta de todos os pedidos numa zona onde as necessidades são muitas são algumas delas. A barreira da língua, outra. 

“Falarmos inglês já é para muitos imigrantes uma bênção, não estavam habituados a isso. Mas muitas pessoas não falam, temos de falar por gestos ou imagens. Há linha telefónica de traduções do Centro Nacional de Apoio ao Imigrantes, mas é preciso reservar, o que com 27% de utentes imigrantes e consultas no dia é impossível.” Um mediador cultural seria uma ajuda, mas a equipa quer encontrar estratégias mais engenhosas do que as imagens do Google para estreitar a relação com os utentes e passar conceitos de saúde. Uma das ideias é criar folhetos para as principais doenças em parceria com as comunidades do Bangladesh ou da China.

A ilha de tolerância não é só uma maneira romântica de imaginar o futuro, é uma necessidade. Melhorar a saúde sexual, arranjando forma de atender as mulheres sem ter os maridos como interlocutores, mas ao mesmo tempo sem criar uma tensão com os homens, também utentes, é um dos desafios da equipa no coração da interculturalidade em Lisboa. Diminuir o impacto da pobreza na saúde, por ali demasiado visível, é outro. 

Martino não esconde preocupação com a tuberculose, que parece estar a aumentar. “Muitas vezes há o discurso de que os imigrantes trazem doenças. Não é verdade. As pessoas chegam saudáveis, mas se vivem num quarto sem janelas, cheio de pessoas e de humidade, as doenças manifestam-se.” O caminho não é, por isso, só o dos simpósios terapêuticos, mas o dos direitos humanos. “Queremos que esta USF seja exemplo para outras, nas coisas que correrem bem mas também nas que corram mal.” 

Martino, natural de Bolonha, não se arrepende da decisão de ficar por Portugal, que escolheu, primeiro, pela qualidade da formação e, depois, pela qualidade de vida. “Em Itália estaria a ganhar três ou quatro vezes mais, na Dinamarca mais de 10 mil euros, mas não é só o dinheiro.”

Assume que a responsabilidade é muita e às vezes nem consegue explicá-la bem à família noutro país. “Enviei um link com a notícia da inauguração com o primeiro-ministro e o presidente da câmara à minha família e o meu tio só disse que devia ser uma coisa importante porque estava de casaco.” 

Em Itália, os médicos de família não são funcionários do Estado, são pagos à peça, e não podem ter um papel que confronte as pessoas com o seu estilo de vida ou com os exames que acham que devem fazer pelo risco de perderem clientes. “Cá, os cuidados primários estão bem pensados, falta desenvolvê-los.”