EUA. Declarações de Trump geram preocupação a oriente

Presidente eleito deu a entender que a aceitação da política “uma só China” pode ser moeda de troca para um novo acordo comercial. Palavras causaram inquietações em Pequim e dúvidas em Taiwan

Quando Donald Trump quebrou um protocolo diplomático de mais de 40 anos – ao admitir que tinha falado ao telefone com a presidente de Taiwan – soaram os alarmes na China e esfregaram-se as mãos em Taipé. Teria o gesto do presidente eleito dos EUA sido um simples descuido ou, como parecia sugerir a subsequente onda de mensagens coléricas contra os críticos, oriundas da sua conta de Twitter, uma verdadeira afronta ao statu quo das relações entre Washington e Pequim? A dúvida causou preocupação no gigante chinês e ofereceu à ilha Formosa uma ténue luz de legitimidade política.

O problema é que a justificação oferecida pelo magnata sobre o tema, em entrevista à Fox News, no domingo, não deixou nenhuma das partes tranquila, bem pelo contrário. Trump sugeriu que pode vir a utilizar o reconhecimento da política “uma só China” – o posicionamento concebido pelo Partido Comunista Chinês e acolhido pela administração Carter, em 1979, que entende Taiwan como parte integrante do território da China – como objeto de negociação num futuro acordo comercial com Pequim. 

“Compreendo perfeitamente a política ‘uma só China’, mas não percebo porque haveremos de nos vincular a ela. A não ser que façamos um acordo com a China sobre outros assuntos, incluindo o comércio”, sugeriu então Trump, entrevistado pelo jornalista Chris Wallace no programa “Fox News Sunday”, antes de elencar as razões que o podem levar a redefinir a abordagem dos EUA em relação a Pequim e que incluem – para além das questões estritamente económicas, defendidas exaustivamente durante a campanha eleitoral – a construção da “fortaleza enorme” no mar da China Meridional e o facto de os chineses não estarem a “ajudar” os norte-americanos relativamente à Coreia do Norte.

Quanto à decisão de aceitar a chamada telefónica de felicitação de Tsai Ing-wen, o magnata fez questão de esclarecer que a mesma foi recebida e não efetuada, e afiançou que não vai admitir interferências na sua gestão: “Não aceito que a China me imponha o que quer que seja.”

Calafrios em Pequim e Taipé

A ideia de que Trump pretende fazer-se valer da aceitação ou rejeição da política “uma só China” como moeda de troca para um acordo comercial deixou a liderança chinesa de cabelos em pé. Citado pela BBC, um porta–voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país admitiu que as palavras do republicano causaram “preocupações sérias” em Pequim, uma vez que “punham em causa a integridade territorial e a soberania” chinesas. O funcionário diplomático relembrou ainda que o reconhecimento norte-americano daquela política era o “princípio-base das relações China- -EUA” e que, em caso de “interferência” ou “deterioração” do mesmo, o “desenvolvimento saudável” dessas relações ficará “fora de questão”.

 O editorial do “Global Times”, um jornal local com ligações estreitas ao Partido Comunista, embarcou na mesma linha e, através de um artigo publicado na segunda-feira em língua inglesa, rotulou Trump como “ingénuo”, “inexperiente” e alguém que necessita urgentemente de “aprender mais sobre as relações entre China e EUA”. Segundo o “The Guardian”, o mesmo texto redigido em mandarim vai mais longe e chega a referir que o magnata é “tão ignorante como uma criança” em termos de política externa. “O empresário transformado em presidente eleito dos EUA (…) pensa que tudo pode ser avaliado como um valor”, pode ler-se na versão inglesa do artigo, numa referência à intenção de Trump de querer utilizar o “alicerce das relações” entre os dois gigantes como objeto de negociação. “A política ‘uma só China’ não está à venda”, acrescenta o editorial.

As palavras de Trump não fizeram tremer apenas Pequim. De acordo com o antigo diplomata norte-americano William Stanton, o presidente eleito revelou alguma desconsideração por Taipé, ao sugerir que a ilha Formosa é um “simples elemento de negociações comerciais”. “Ou ele [Trump] não sabe do que está a falar, ou está a pôr em perigo o estatuto que Taiwan sempre teve na política dos EUA”, disse ao “Washington Post”. Apesar de os norte-americanos terem decidido reconhecer Pequim como representante legítimo da China no final da década de 70, ao invés de Taipé, foram sempre mantidas relações, ainda que discretas, com Taiwan, particularmente através de apoio militar.

Enquanto o magnata não desce da Trump Tower e parte com destino à Casa Branca, a pequena ilha e o gigante continental não têm outra hipótese senão esperar. A escolha do secretário de Estado e restante equipa pode dar algumas pistas, mas certezas só depois do dia 20 de janeiro.