Teatro da Cornucópia. “Adeus, tudo tem de morrer” [vídeo]

Na tarde em que Luís Miguel Cintra apresentava o último espetáculo da companhia que fundou há mais de 40 anos, Marcelo fez-se protagonista de um outro que ele próprio encenou, em frente às televisões, com um apelo ao ministro da Cultura para que salve a Cornucópia, que de pouco deverá servir. Sobra Apollinaire para citar.

Finais perfeitos dispensam grandes discursos e a última frase ouvida no último espetáculo apresentado pelo Teatro da Cornucópia na tarde de sábado, em Lisboa, dizia tudo o que podia ser dito. “Adeus, tudo tem de morrer.” Fim do recital a partir de textos de Guillaume Apollinaire com que Luís Miguel Cintra decidiu fechar os 43 anos de existência da companhia que fundou em 1973 com Jorge de Silva Melo. 

“Não se aflijam, não vou fazer um discurso”, disse antes de um breve resumo do que foram estes anos, com os que sempre estiveram, os que se zangaram, os que vieram e os que não vieram, e um desejo de “poder continuar a trabalhar noutro tipo de estrutura”. Não era bem um discurso, mas terminou como se fosse, grande ovação em pé numa sala a abarrotar. Afinal por que fecha a Cornucópia já todos sabiam, todos os que estão aqui mais  todos os que não conseguiram entrar e prestaram a sua homenagem com as suas horas de espera.

Há anos que Luís Miguel Cintra alertava para as dificuldades de manter a Cornucópia a funcionar com dos cortes nos apoios da Direção-Geral das Artes para metade, e a notícia veio este mês, no comunicado que anunciava este último espetáculo, com dezenas de atores das várias gerações atravessadas pela história da companhia. Luísa Cruz, Cleia Almeida, Rita Loureiro, no palco, Rita Blanco, Miguel Guilherme, António Fonseca, Nuno Lopes, Dinarte Branco, na assistência, entre muitos outros. “Esta atitude corajosa que estes dois seres estão a ter apela, a meu ver, não a um fim mas uma chamada de atenção para aquilo que se faz com a cultura neste país, que já vem de há muito tempo”, dizia-nos a atriz Rita Loureiro no final do espetáculo. 

“É um statement, isto não se pode fazer assim. É evidente que o mundo hoje vive a outra velocidade, não podemos é perder a noção de que se calhar não temos que estar a tropeçar em novas soluções que não têm nada a ver com o processo criativo. Ninguém que trabalha nesta companhia está alienado da realidade, nem quer estar. Agora, a realidade não pode subjugar, não pode corromper, não pode manipular o tempo que é preciso para se criar algo de facto com cabeça e com inteligência como parece que se está a querer fazer.”

A hora de Marcelo

Mas o maior espetáculo tinha vindo já antes do espetáculo e foi, nada de novo, protagnizado por Marcelo Rebelo de Sousa, que chegou a conduzir o próprio carro às três da tarde para tentar “salvar a Cornucópia”, noticiava o Telejornal à hora do jantar sobre a visita do Presidente da República ao Teatro do Bairro Alto. “Venho aqui para os ouvir”, disse Marcelo, que diante dos jornalistas resolveu improvisar a mediação de uma conversa entre a direção da Cornucópia e o Ministro da Cultura, a quem propôs, diante de todos, a criação de um estatuto especial para a companhia. “Vim mais cedo para fazer as conversas que tinha que fazer”, justificou-se sobre ter aparecido antes da hora marcada com Luís Miguel Cintra, que lhe respondia não ser possível continuar “agora se anuncia o prolongamento por mais um ano do mesmo sistema”. “Isso de facto põe fim às hipóteses de a gente trabalhar. A partir do mês que vem, não temos dinheiro para pagar a absolutamente ninguém”, explicou. “E cada mês que passa é um mês que aumenta a dívida às pessoas que cá estão, que neste momento é nenhuma.”

O Presidente insistia: “Até agora estávamos a falar na onda de fechar, vamos agora falar na onda de não fechar.” Mas nada disso parece possível. Antes do anúncio de que esta apresentação seria a última da Cornucópia, já o Ministério da Cultura tinha reunido com companhia e apesar da vontade expressa à imprensa de uma tentativa de inverter a tendência dos cortes nos apoios da Direção-Geral das Artes, ainda nada mudou. 

Este ano, a Cornucópia, que emprega 13 pessoas, recebeu um apoio de 309.600 euros, valor atribuído pelo período de quatro anos e que corresponde a metade do valor com que a companhia era apoiada há dez — no mesmo patamar que o Teatro da Cornucópia no que diz respeito a apoios do Estado estão o Teatro do Bando, de Palmela, e o Acert, de Tondela, nos 350 mil euros o Teatro Oficina, de Guimarães, e a Companhia de Teatro de Braga, e nos 400 mil o Teatro de Almada e o Teatro Viriato. Entretanto foi lançada uma petição para tentar impedir o fim da companhia, que contava já com mais de 800 assinaturas.

Ao i, o Ministério da Cultura sublinhou que "não existiu qualquer corte” com o atual governo. Que os cortes nos apoios às artes e às estruturas artísticas, que afetaram também o Teatro da Cornucópia, remontam aos anos de 2011 e 2012, e que essa é uma situação que o atual governo "tem tentado inverter”. Pois não terá invertido a tempo de impedir o fecho da companhia de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis, que diz ter acompanhado de perto e que apresentava na sexta-feira como consumado nas respostas enviadas por email com a manifestação da sua disponibilidade para colaborar com a companhia para que “este processo se concretize da melhor forma, por profundo reconhecimento e respeito pelo Património Histórico – tangível e intangível – que a companhia deixa para o teatro português”, ao garantir o arrendamento do edifício do Teatro do Bairro Alto, no valor de 6 mil euros mensais e que já assegurava, por mais um ano, "de modo a que o processo de encerramento, e todos os trabalhos decorrentes, sejam realizados nas devidas condições”.

À noite, depois de tudo e longe de todas as câmaras, diante de uma plateia em que já havia espaço de sobra para os que ficaram até ao fim, sentavam-se Luís Miguel Cintra e Cristina Reis. “Não temos que andar novamente a explicar quem somos”, dizia Cintra. “Não temos que percorrer o que já percorremos durante dezenas de anos. Eles é que têm que se informar.” Cristina Reis sublinhou que se está perante “uma impossibilidade total”, e explicou, no que terá sido uma alusão à visita do Presidente da República, horas antes: “Se isto for debatido e se for claro, constatamos que é impossível. Penso que é isto que falta em todo o lado, porque as pessoas não são burras. Jogos nisto, para que isto seja possível, não vale a pena. Isto para dizer que não há aqui nada na manga, nem há estratégias, não há nada.”