Em defesa dos velhos vampiros: “Carmilla” e o espectáculo da transgressão

Uma viagem com o pescoço exposto a um vulto que começou por nos seguir e que se tornou íntimo do nosso medo, mas que por estes dias se tornou mais uma fantasia dócil recamada nos suspiros das adolescentes

Nunca é demais apreciar aqueles autores que sabem como começar um texto. Ernst Kantorowicz abre o seu Os Dois Corpos do Rei, um estudo monumental sobre o pensamento político medieval, com uma frase que merece ser citada: “O misticismo, quando transposto do crepúsculo quente do mito e da ficção para o enfoque frio do facto e da razão, geralmente tem pouco que se recomende”. O que Kantorowicz pretende é resumir, em parte, por que razão um dos mais poderosos e relevantes conceitos do pensamento teológico-político medieval – a teoria dos dois corpos do Rei – foi tão vilipendiado e ridicularizado pelos juristas posteriores, em especial por aqueles que trabalhavam para a corte Tudor.

Sobre os vampiros, um dos mais reconhecíveis arquétipos do horror na literatura, podemos dizer a mesmíssima coisa. A medicina e a tanatologia permitem-nos hoje despedaçar toda e qualquer roupagem de crendeirice e explicar esses estádios de histeria em que algumas culturas desenvolveram as suas histórias de vampiros. O vazio de conhecimento que os nossos antepassados enriqueciam com o príncipe das trevas e a sua sede de sangue, deu hoje lugar a uma lista de doenças hereditárias, fenómenos próprios da decomposição dos cadáveres e enterros prematuros.

Pode dizer-se que o vampiro é hoje em dia um arquétipo em crise na literatura de terror. Talvez por isto o mais recente fenómeno de vampiros na literatura tenha vindo não da área do terror, mas antes da literatura fantástica. O que pretendo sugerir é que os séculos e a ciência tornaram o vampiro um fóssil, um horror de outros tempos, de difícil encaixe nos actuais meandros do medo. Não quero com isto dizer que a ciência triunfou definitivamente sobre a superstição, mas apenas que perdemos o contacto mais directo com as superstições que fundavam este tipo de horror e que o vampiro se tornou, hoje em dia, simulacro de um horror que já não nos aquece nem arrefece. Um dos méritos do Drácula de Bram Stoker (publicado em 1897) é, aliás, representar em parte este confronto entre superstição e ciência; mérito pisado sem dó nem piedade por Francis Ford Coppola no seu Bram Stoker's Dracula (1992), que não só mistura a história original com elementos absolutamente desnecessários da história de Barnabas Collins na série de comédia Dark Shadows (1966-1971) – que tem os seus próprios méritos, nenhum deles decentemente transposto para o filme –, como transforma o vampiro em libertador e os seus perseguidores, em especial a personagem Abraham Van Helsing, numa espécie de psicopatas obcecados.

O vampiro da ficção tem a sua origem mais directa no folclore eslavo, muito embora as histórias de criaturas que se alimentam do nosso sangue sejam relativamente universais, com afloramentos desde as culturas ameríndias até ao extremo oriente. Esse vampiro era, contudo, substancialmente diferente do vampiro moderno, desenhado pelo horror gótico do século XIX. Ao invés do predador-sedutor que todos reconhecemos, o vampiro eslavo é uma criatura repugnante frequentemente associada à peste e à doença, ideia poucas vezes explorada nas versões ficcionadas de vampiros. Assim acontece, por exemplo, com o vampiro criado por Guillermo del Toro em The Strain (2009) e com o arquétipo de vampiro que sem dúvida inspirou o realizador mexicano, a segunda adaptação ao cinema do Drácula de Bram Stoker (a primeira foi um filme soviético hoje aparentemente perdido), Nosferatu, de F. W. Murnau, em que Max Schreck apresenta assim o seu arquifamoso Conde Orlok. Não deixa de ser curioso que isso aconteça na adaptação ao cinema de um livro ao qual, apesar de não ter sido o primeiro romance ou conto de vampiros, devemos a cristalização e a popularização de grande parte dos tropos vampíricos mais reconhecíveis e repetidos, principalmente o do vampiro galante.

Quando Stoker criou o seu Drácula, contudo, as características essenciais da sua história e do seu vampiro não eram já estranhas aos leitores da sua época. Drácula não deixa de ser um romance de invasão, típico da época que entre a unificação do Império Germânico e a Primeira Grande Guerra fantasiava de uma ou de outra forma – muitas vezes pelo sobrenatural – com a invasão de Inglaterra por um mal oriundo a Europa continental. Mas, mais que isso, os leitores já tinham sido apresentados aos primeiros esboços do vampiro moderno com O Vampiro (1819), de John Polidori, esboçado no mesmo convívio literário em que Mary Shelley criou o Monstro de Frankenstein, com Varney, o Vampiro (1845-1847), o seriado de James Malcolm Rymer, ainda assim mais famoso pela sua hiperbólica extensão e pela incoerência da sua narrativa, e, mais que todos estes, seja pela sua qualidade seja pela retrato perene da sua vampira, que criará um legado próprio na história do cinema de terror, com Carmilla (1871-1872), do irlandês Sheridan Le Fanu.

Carmilla foi publicado entre 1871 e 1872 na revista The Dark Blue e, logo de seguida, reimpresso na colecção de contos In a Glass Darkly, cujas histórias têm como fio condutor o terem sido encontradas entre os papéis de um tal Dr. Hesselius, o detective do oculto imaginado por Le Fanu e que vem referido no prólogo a Carmilla incluído nesta edição portuguesa. Esta novela de Le Fanu criou o arquétipo da vampira na literatura e influenciou determinantemente o seu correspondente cinematográfico, que atingiu o pico de erotismo com actrizes como Ingrid Pitt e Soledad Miranda, ambas em filmes ligeiramente inspirados em Carmilla.

No início da novela, Laura, a narradora, protagonista e objecto da implacável sedução de Carmilla, diz-nos isto: “Vou contar-vos agora uma coisa tão estranha que será necessário toda a vossa fé na minha veracidade para acreditarem na história. Não obstante, não só é verdadeira como fui testemunha ocular da sua autenticidade” (p. 15). Este dispositivo narrativo, repetido ad nausea pela literatura de horror posterior, mostra-nos desde o início que Laura é uma narradora pouco fiável. A sua falta de fiabilidade, cada vez mais evidente à medida que a narrativa avança, não corresponde, contudo, ao estereótipo do relato supostamente autêntico e narrado primeira pessoa, típico do conto de horror e levado ao extremo do absurdo nos protagonistas de Lovecraft, que continuam a escrever os seus testemunhos em tempo real e ao mesmo tempo que vão desmaiando ou entrando em estados incalculáveis de loucura. Ao longo da narrativa, Laura vai experimentando um profundo e indizível horror, mas quase sempre acompanhado por um desejo transgressivo que não é indizível, mas é insuportável e, principalmente, inconfessável, tanto para a protagonista como para o autor, que a escreve em plena época vitoriana.

Carmilla é menos uma história de terror e muito mais uma história de transgressão, e num tempo em que já não há paciência para mais uma típica história de sanguessugas, é este o detalhe que lhe permite sobreviver à migração massiva dos vampiros clássicos para o território da fantasia, quando no do terror já pouco se recomendam. Com uma história bem mais contida e sem grande acção, é nestes detalhes que a pequena história de Le Fanu supera a aventura de Stoker. Aquilo que é patente na tradição folclórica acerca dos vampiros expressa uma das formas mais primitivas e poderosas do medo, o medo do desconhecido. A possibilidade de reproduzir esta forma de medo numa história de vampiros enfrenta sérias dificuldades quando o universo de leitores já não partilha as superstições próprias do contexto em que as histórias surgiram. Em Carmilla, Sheridan Le Fanu supera habilmente este desafio mudando de forma radical o enfoque do medo, para o domínio onde se estabelece a melhor literatura de monstros, o do medo daquilo que conhecemos demasiado bem, a nossa própria natureza. O extraordinário horror experimentado por Laura é, na verdade, um terror experimentado por todos, o daquele lugar em que o desejo colide com as convenções sociais, com as expectativas e com o discurso regulativo acerca do que é suposto sermos e não sermos, aqui representado num desejo lésbico, ainda assim muito mais sugerido que exibido. Em cada monstro encontramos afinal um espelho, e talvez o monstro nem seja mesmo Carmilla, talvez o sejam as convenções que nos impedem de ser aquilo que queremos ser.

Numa época de terror como a que nos preparamos para enfrentar, é importante recordarmos que existe literatura de terror como Carmilla, que mais não seja para sabermos sempre que quando são os outros a impor-nos aquilo que devemos ser, isso é também uma forma de terror.