Esquerda acusa Governo e Costa de se encostarem à direita

BE, PCP e PEV contestam cedências aos patrões no acordo para o aumento do salário mínimo e prometem manter a pressão sobre o Governo

Esquerda acusa Governo e Costa de se encostarem à direita

Não há ainda um terramoto, mas há um movimento de placas tectónicas que se deslocam e afastam Costa da base de apoio ao seu Governo. A esquerda não está contente com as cedências aos patrões no acordo de concertação social e vai manter alta a pressão política sobre o Governo. Pressões públicas, mobilização nas ruas e tomadas de posição no Parlamento são as armas de BE, PCP e PEV contra o que consideram ser uma opção errada que comprova que este não é um Governo de esquerda.

«Ao escolher a companhia da direita e de Marcelo, António Costa afasta-se da base política que sustenta o seu governo», constata o dirigente bloquista Jorge Costa, num artigo no Esquerda.net, no qual defende que «as pressões europeias, patronais e presidenciais vergaram o Governo».

Rita Rato, deputada do PCP, também não tem dúvidas de que a posição do Executivo traduz uma opção política. «Este não é um Governo de esquerda», comenta ao SOL a deputada comunista, que vê o PS «cada vez mais num jogo de saia justa entre os compromissos políticos à esquerda e as chantagens dos patrões e da União Europeia».

Governo ‘rasgou’ acordo feito com o PEV no Orçamento

Heloísa Apolónia diz mesmo que o acordo assinado pelo Governo com os patrões «viola a posição política conjunta assinada com o PEV» e vai contra uma norma do Orçamento do Estado para 2017 introduzida por negociação com Os Verdes. 

«Introduzimos uma norma no Orçamento que diz que se deve iniciar a reavaliação das isenções e reduções da Taxa Social Única», lembra a deputada do PEV, denunciando o recuo de António Costa num ponto negociado há menos de dois meses. «Se se diz que há o início de uma reavaliação, isso é no pressuposto de que não haverá novas reduções ou isenções em 2017», frisa Heloísa Apolónia. 

Mas que consequências retira o PEV da violação do acordo que Heloísa denunciou no debate parlamentar com o primeiro-ministro? Para já, a deputada de Os Verdes diz «esperar para ver», numa atitude mais cautelosa do que a de bloquistas e comunistas que já pensam em formas de pressionar politicamente António Costa.

Os pontos da discórdia

Em causa estão dois pontos do acordo assinado na quinta-feira à noite: uma redução de 1,25% nos descontos para a Segurança Social feitos pelos patrões e a possibilidade de um faseamento dos aumentos que faz com que a subida do salário mínimo nacional possa ser semestral, desde que no final da legislatura se chegue aos 600 euros que estão no programa do Governo.

Jorge Costa diz que, ao abrir caminho a aumentos semestrais, o Governo está a manter nos cofres dos patrões valores que deviam ser pagos aos trabalhadores desde o início de cada ano. É que não há memória de aumentos do salário mínimo que não tenham efeitos a partir de 1 de janeiro.

«Admitamos como hipótese que, em vez de 580 euros em janeiro de 2018 e de 600 euros em janeiro de 2019, como indica o programa do Governo, os tais parceiros ‘concertarão’ que, em cada início de ano, só pagam metade do aumento previsto e que os valores do programa do Governo passam a ser cumpridos integralmente só na segunda metade dos anos 2018 e 2019», escreve o bloquista, para concluir que isso se traduz em mais dinheiro para os patrões e menos para os trabalhadores. «Se continuarmos com 650 mil trabalhadores a receber salário mínimo, são 97 milhões de salário a menos nos dois anos», nota o dirigente do BE.

Dossiê laboral gera tensão

Há ainda outro problema: o acordo assinado com os patrões promete «estabilidade fiscal, laboral e legislativa», num sinal claro de que o Governo não pretende ceder às reinvindicações de BE e PCP que querem retirar do Código de Trabalho as alterações impostas pela troika.

De resto, ainda ontem ao i, o primeiro-ministro admitia que «não há mais nada a negociar» com as esquerdas além do que está no programa do Governo em matéria laboral. Uma posição que deixa pouca margem para a negociação que os bloquistas insistem em fazer depois de terem posto no topo da agenda política de 2017 o objetivo de «destroikar» as leis do trabalho. Em causa estão medidas como a reposição dos pagamentos por trabalho suplementar ou das indemnizações de 30 dias por cada ano de serviço em caso de despedimento.

Para Rita Rato, estas opções de António Costa «deixam uma marca política clara» que o afasta das esquerdas, mas não será por aí que cairá a ‘geringonça’. «Não está em causa o Governo. Como não se pôs em causa o Governo quando em relação ao Banif, o PS escolheu ficar ao lado de PSD e CDS», nota a deputada do PCP, que não ficou surpreendida com as opções do Governo neste dossier.

Do lado do BE e do PEV a leitura é idêntica à que se faz no PCP. Não será por aqui que parte o compromisso que une as esquerdas, mas há efeitos políticos. «Ao escolher pactuar com os patrões e desprezar a central sindical maioritária, o governo pode chegar mais tranquilo a Bruxelas, mas faz a escolha profundamente errada e dá um sinal preocupante a quem deposita esperanças no caminho aberto pela atual solução política», defende Jorge Costa.

Costa dá sinal aos investidores

À esquerda ninguém duvida de que é uma vitória conseguir em janeiro de 2017 uma das maiores subidas de sempre o salário mínimo nacional, que passa dos 530 para os 557 euros. Mas também ninguém entende a necessidade de ceder aos patrões numa matéria que pode ser decidida pelo Governo sem acordo e que tinha o apoio político de BE, PCP e PEV.

Do lado do Governo há, contudo, uma explicação importante: Costa está preocupado com a imagem externa do país e quer garantir que os investidores não vêem no seu Executivo uma ameaça. É que o primeiro-ministro sabe que precisa de investimento para conseguir o crescimento económico que quer que marque a segunda metade do seu mandato.

Como se vai fazer a pressão

O sinal dado aos patrões tem, contudo, um preço político para António Costa. O primeiro passo será o pedido de apreciação parlamentar do desconto na Taxa Social Única (TSU) previsto no acordo, anunciado ontem por BE e PCP. 

O requerimento terá chumbo certo – basta que PSD e CDS se abstenham para o PS o inviabilizar -, mas bloquistas e comunistas não querem deixar passar em branco uma medida que contraria as opções políticas das esquerdas.

Além disso, BE e PCP não desistem de agendar as suas proposta na área laboral. Ainda esta semana foi agendada para janeiro o debate da proposta comunista de reposição dos 25 dias úteis de férias.

Mas há mais: com a força de ter do seu lado os sindicatos, o PCP ameaça manter alta a pressão nas ruas para garantir que não há retrocessos nas conquistas feitas pela solução de esquerda. 

«A ação política não se esgota no Parlamento. A mobilização nas ruas é uma parte importante da ação política», afirmava ontem ao i o líder parlamentar comunista João Oliveira, que diz que é preciso «criar um ambiente social» que deixe claro ao Governo a importância de alterar as leis do trabalho e reativar a contratação coletiva.

Há, contudo, pontos em relação aos quais a esquerda pode estar tranquila. O descongelamento da contratação coletiva, o combate à precariedade e a subida do salário mínimo para os 600 euros até ao final da legislatura fazem parte do programa do Governo e Costa assegura que são prioridades do Executivo e são para cumprir.

Um dos sinais será dado no início do próximo ano com a apresentação do prometido Plano Nacional de Combate à Precariedade e com a integração nos quadros da Administração Pública dos trabalhadores que estão a recibos verdes, mas desempenham funções permanentes no Estado.