Brasil. O vício da prisão e o hábito da rebelião

Assassinato de perto de 60 pessoas na maior prisão de Manaus, após um motim, comprova que a violência extrema nos estabelecimentos prisionais brasileiros é regra e não exceção. Condições precárias, sobrelotação e controlo das prisões por organizações criminosas perfazem uma mistura explosiva que origina os mais macabros homicídios

O novo ano mal tinha começado e já as prisões brasileiras se encontravam envolvidas em crimes de outros tempos. Não apenas do ano que ainda agora passou, mas (pelo menos) dos últimos 30. No passado domingo, um grupo de prisioneiros do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), a maior prisão de Manaus e de todo o estado do Amazonas, amotinou-se e, durante quase 17 horas, liderou uma violenta onda de assassinatos, dentro das quatro paredes da prisão, que culminou na morte de perto de 60 pessoas, algumas delas carbonizadas, decapitadas e esquartejadas – situação que está a dificultar a contabilização exata dos mortos. O número de cadáveres foi de tal forma elevado que no Brasil já se fala na segunda maior tragédia da história prisional do país, apenas suplantada pelo terrível “Massacre de Carandiru”, de 1992, quando a polícia abateu 111 prisioneiros de uma prisão de São Paulo, após uma rebelião, e obrigou os sobreviventes a tirar a roupa e a empilhar os cadáveres.

O massacre do Compaj terminou na segunda-feira e foi acompanhado pela fuga de um total de 184 prisioneiros – 112 daquele estabelecimento prisional e outros 72 do Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT), uma prisão vizinha. Setenta detidos e 13 funcionários do complexo foram feitos reféns e os líderes da revolta exigiram negociar com as autoridades brasileiras – uma negociação que, assim que a polícia reassumiu o controlo da prisão e se deparou com o degradante espetáculo de carnificina, percebeu ter-se tratado de uma simples manobra de diversão, já que os amotinados apenas queriam ganhar tempo para conseguirem eliminar um número determinado de presos. “Na negociação, os presos não exigiram praticamente nada”, contou Sérgio Fontes, secretário de Segurança Pública do Amazonas, citado pelo “Estadão”. “Acreditamos que eles queriam matar essa quantidade de membros da organização rival e a garantia de que não seriam agredidos pela polícia”, explicou.

As disputas entre gangues criminosos encontram-se precisamente entre as principais causas que têm alimentado as rebeliões em prisões brasileiras nas últimas décadas e que, tendo em conta o historial dos meses recentes, prometem continuar a fazê-lo por 2017 dentro. A estes confrontos somam-se a sobrelotação e a falta de condições básicas de salubridade, segurança e controlo, verificadas na grande maioria dos complexos prisionais do país, para que fiquem montados os palcos ideais para motins e homicídios em cadeia.

A lei interna dos gangues

As guerras entre organizações criminosas dentro das prisões já têm vários anos, mas ganharam um novo ímpeto de rivalidade e violência nos últimos meses, fruto do rompimento da aliança entre dois dos principais gangues – maioritariamente ligados ao narcotráfico -, cujo braço se estende por todo o país. Falamos do “Comando Vermelho” (CV), que opera a partir do Rio de Janeiro, e do “Primeiro Comando da Capital” (PCC), originário de São Paulo. Segundo a “Folha”, as duas fações declararam guerra em julho de 2016, depois de, no mês anterior, um dos principais traficantes do CV ter sido abatido junto à fronteira do Brasil com o Paraguai, no estado do Mato Grosso do Sul – a principal porta de entrada de droga no país -, após um longo tiroteio que envolveu elementos do PCC. Esse momento marcou o virar de costas entre os gangues e o início de uma política de acerto de contas, levada a cabo dentro das prisões, e suportada por alianças estratégicas com organizações criminosas regionais.

Em outubro do ano passado tiveram lugar dois outros motins sangrentos, em duas prisões de estados distintos, que resultaram na morte de 18 pessoas. Também nesses casos houve relatos de decapitações e corpos carbonizados. Quanto ao motim no Compaj, foi liderado pela “Família do Norte” (FDN), um gangue que está de olho nas fronteiras brasileiras com a Colômbia e o Peru, e que espalha o terror pelos estados do Amazonas e do Pará. De acordo com a polícia, a contagem de um número significativo de membros do PCC entre os assassinados sustenta a tese de que a rebelião foi motivada por guerras internas, já que a FDN se aliou recentemente ao CV.

A influência dos grupos criminosos dentro das prisões brasileiras é tão vasta que os guardas prisionais acabam por perder irreversivelmente o controlo do que se passa atrás das grades – uma realidade que suga qualquer elemento instrutivo, e até punitivo, à detenção em si, uma vez que os crimes são transferidos da rua para as celas, diminuindo, em grande medida, a probabilidade de uma reinserção real na sociedade. Mesmo aqueles que entram na prisão sem ligações aos gangues rapidamente têm de escolher entre uns ou outros, tal é o poder das leis internas que deles emanam. “Essas organizações vendem proteção, pelo que quem ingressa na prisão necessita de se solidarizar com alguma fação para sobreviver”, explica o sociólogo Arthur Trindade, ex–secretário da Segurança Pública, à “Folha de São Paulo”.

Sobrelotação e descontrolo

A quantidade excessiva de encarcerados gera condições favoráveis à imposição da lei dos gangues nas prisões e, por isso, deve ser combatida. “Prender devia ser exceção, não regra”, defende o juiz Geraldo Santana Lanfredi em declarações à “Carta Capital”, apontando a “prisão provisória” – aplicada, antes do julgamento, àqueles que são apanhados pela polícia no ato do delito, muito comum nas detenções por pequenos roubos e atividades ligadas ao narcotráfico no Brasil – como a medida responsável pela sobrelotação das prisões do país. “Todos os dias, 30 pessoas são presas aqui em flagrante. Num mês, são 600 presos. Seria necessário construir uma nova unidade prisional, por mês, para dar conta desse fluxo”, esclarece Trindade, em concordância.

A situação, como refere a “Carta”, tornou o Brasil “viciado em prender” e materializa-se numa humilhante quarta posição do país na lista dos que têm a maior população prisional do mundo, atrás dos EUA, da China e da Rússia, e numa triste segunda posição nos países do globo que mais prenderam desde 1995, apenas suplantado pela Indonésia.

A acomodação de 30 prisioneiros em celas construídas para apenas cinco pessoas retrata uma realidade bastante comum nas prisões do Brasil. A sobrelotação é um obstáculo particularmente complicado para as autoridades, nomeadamente no caso de rebelião, pelo que os detidos conseguem muitas vezes escapar. 

Um dos prisioneiros que se escapuliu dos complexos prisionais de Manaus resolveu imortalizar na internet o momento da sua fuga e publicou no Facebook uma fotografia sua, juntamente com outros fugitivos que festejavam a liberdade. O gesto pode até facilitar o trabalho da polícia, mas dificilmente as autoridades brasileiras sairão bem desta e de outras fotografias semelhantes.