O que é o estado de coma, o silêncio da consciência

Até ontem, a situação clínica de Mário Soares não tinha sofrido alterações. Está em coma profundo há dez dias. Que estado é este?

“Com base nos resultados da TAC, tinha acabado (…). Nunca seria capaz de me perdoar se não lutássemos até ao fim.” Foi desta forma que Gilad Sharon, filho de Ariel Sharon, explicou em 2011 a decisão de manter o ex-primeiro ministro israelita, então ainda vivo, em coma induzido e ligado às máquinas durante oito anos. Na biografia “Sharon: The Life of a Leader”, citada pelo “The Guardian”, Gilad descreve o pai deitado na cama, a dormir tranquilamente. Ocasionalmente terá respondido à presença dos filhos, relata. 

Ariel Sharon morreu em 2014 sem nunca recuperar verdadeiramente a consciência. A situação clínica de Mário Soares, que até ontem não tinha sofrido alterações, fez recordar a lenta partida do líder israelita. Eduardo Barroso, sobrinho do presidente, já disse publicamente que não se “cairá na loucura de tentar prolongar a vida”. Mário Soares está há dez dias em coma profundo, mas não está ligado às máquinas. Que estado é este?

As revisões científicas são claras: o coma é um estado de inconsciência em que a pessoa permanece de olhos fechados, é incapaz de comunicar verbalmente e de realizar movimentos intencionados.

Isto não significa, porém, que não possa ter reações a estímulos. 

O neurologista Alexandre Castro Caldas explica que existem diferentes níveis de coma, medidos através da Escala de Glasgow, um instrumento desenvolvido nos anos 1970 por Graham Teasdale e Bryan J. Jennett, neurocirurgiões na Universidade de Glasgow. “A escala permite avaliar os diferentes níveis de consciência, se a pessoa tem respiração espontânea ou se precisa de um ventilador e está dependente de respiração assistida, se desperta com estímulos dolorosos ou auditivos”, exemplifica o especialista.

Com base nos parâmetros avaliados, que incidem sobre a resposta ocular, verbal e motora, os doentes recebem uma classificação entre 1 e 15 pontos: a menor pontuação global indicará uma lesão cerebral grave, e a maior uma lesão ligeira. “A análise vai do coma superficial ao coma profundo”, resume Castro Caldas.
Quando o estado do doente é classificado como muito grave, praticamente sem reações, pode ser declarado o estado vegetativo. 

Quando um doente que sofreu uma lesão cerebral traumática grave, na sequência, por exemplo, de um acidente de viação, não tem sinais de consciência e está um ano nesta condição, é declarado o estado vegetativo persistente, embora até aqui haja relatos que superam o mau prognóstico. Em 2006, um estudo publicado na revista científica “Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry” relatou o caso de um doente que despertou ao fim de 20 meses.

Além dos traumas e lesões cerebrais, alterações metabólicas como diabetes descompensada ou insuficiência renal podem levar ao coma, que pode também ser induzido em situações de instabilidade clínica. 

Alexandre Castro Caldas, sem comentar o caso de Mário Soares em particular, explica que, no caso de uma pessoa de idade mais avançada e se o coma for provocado por alterações metabólicas, é menos expetável uma recuperação do que quando se está perante uma lesão fruto de um acidente. 

Nestes últimos casos, parece haver uma regra de estabilização dos doentes que não se aplicará tanto em contextos de coma fruto de alterações metabólicas. Se sobrevivem dez dias após o dano no cérebro, é expetável a sua sobrevivência, embora com sequelas. 

Parâmetros vitais normais

Durante os boletins clínicos à porta do Hospital da Cruz Vermelha, onde está internado Mário Soares, o porta-voz da instituição repetiu que o antigo Presidente mantinha os parâmetros vitais normais. O significado da linguagem técnica pode ter diferentes alcances, mas Castro Caldas explica que pode ser entendido como respirando sem apoio e tendo atividade cardíaca normal.

Muitos doentes em coma e mesmo, depois, em estado vegetativo persistente permanecem neste estado sem suporte de vida além da alimentação artificial através de uma sonda, uma vez que o cérebro continua a coordenar as restantes funções orgânicas, como a respiração.

Nos últimos anos tem havido um interesse crescente em técnicas que permitam de alguma forma recuperar doentes em coma. A neuroestimulação de uma área do cérebro que se pensa central na definição do estado de consciência – o sistema ativador reticular ascendente – é uma das apostas mais promissoras, mas Alexandre Castro Caldas sublinha que os trabalhos têm vindo a decorrer em fases experimentais, pelo que atualmente se espera que os doentes recuperem de forma natural.

Em 2016, uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia deu conta de avanços no estudo de uma nova técnica para despertar doentes em coma com a aplicação de neuroestimulação por ultrassons. Ainda assim, a equipa só utilizou o procedimento num jovem de 25 anos que estava há 19 dias em coma depois de ter sido atropelado e batido com a cabeça num passeio. 

Neste caso, publicado em julho na revista “Brain Stimulation”, os neurocientistas apontaram a neuroestimulação para o tálamo – estrutura à qual se liga a formação reticular. Uma estratégia idêntica já tinha estado, em 2007, por detrás da recuperação de algumas funções cognitivas num outro doente de 38 anos, nos EUA. 

O médico que desenvolveu o dispositivo de ultrassons na Universidade da Califórnia criou uma startup para desenvolver a tecnologia, que consiste na repetição de impulsos com a duração de 30 segundos, intervalados por pausas de 30 segundos, durante um período de 30 minutos. Segundo a “Scientific American”, além desta nova técnica, houve ainda ensaios clínicos com dois medicamentos, ambos com resultados promissores, mas não validados. 

Nos Estados Unidos, a Academia Americana de Neurologia estima que haja 56 a 170 casos de perda prolongada da consciência na sequência de lesões traumáticas por ano e por milhão de habitantes, o que dará entre 17 mil e 50 mil casos anuais. 

Em Portugal não há números. Em fevereiro de 2005, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida pronunciou-se sobre o estado vegetativo persistente, na sequência de um pedido feito por um hospital que descrevia o caso de um doente em que se colocava a questão de eventual interrupção do suporte de vida. 

O conselho concluiu que a pessoa tem direito a cuidados básicos de alimentação e hidratação artificial e qualquer decisão deve respeitar a vontade do próprio, que podia ser expressa ou presumida por pessoa de confiança previamente designada e envolvendo a equipa médica. Na altura, o país ainda não tinha legalizado o testamento vital, que desde 2014 pode ser preenchido com as vontades para situações de final de vida. 

Até à data, mais de 6 mil portugueses fizeram as suas diretivas antecipadas de vontade e foram registados 111 mortes de pessoas com testamentos vitais válidos.