Divagar se vai ao longe

Tenho a certeza de que o Rio de Janeiro continua lindo, eu é que não consigo vê-lo. Está uma temperatura de Outono e há focos de neblina por todo o lado, ao virar de cada prédio, como bêbedos abraçados a árvores.

e depois é a pancada, como dizem aqui. cada ‘pancada’ é a chuva tropical, que vem e que passa com a intensidade de um murro na boca do estômago.

acabámos de chegar ao hotel após 24 horas de viagem. um pouco mais e tínhamos ido directos a sydney. um abuso patético motivado pelas ameaças de greve (obrigado aos controladores de tráfego aéreo e aos pilotos da tap). somos uma mini-equipa de rodagem, cinco pessoas estoiradas cuja produção – para cumprir o calendário e contornar os potenciais grevistas, nos mandou fazer lisboa-madrid-salvador da bahia-rio de janeiro. ao enfim chegar, ainda nos mandaram para o hotel errado e no hotel certo os quartos não tinham sido limpos. bacana.

não sei se é do jet-lag mas ando a sentir-me como o pepe, quando o nosso grande defesa central da selecção faz aquele esforço para parecer mais lusitano que o viriato. a tentativa aqui é a inversa mas o resultado o mesmo: ele açaima o sotaque brasileiro como quem amordaça um cão com raiva, nós puxamos por ele como se sempre tivesse sido o nosso animal de estimação. confirma-se: aqui é mesmo preciso praticar o gerúndio, arredondar as vogais e falar com musiquinha, caso contrário os locais parecem uma multidão de surdos: ‘oi?’, ‘oi?’, ‘oi?’, um coro amavelmente suíno de gente duvidando.

escrevo de uma varanda minúscula de costas para o mar mas defronte de um par de morros luxuriantes de verde, com uma mão do cristo redentor espreitando ao longe por entre a fumaça hesitante entre ser poluição ou nevoeiro. são 8 da noite mas terminámos de jantar há pouco e não sabemos o que fazer: se trabalhar, se ir para a balada, se dormir. a nossa guia no local, giona, hoje de folga, deixa o conselho: ‘meninos, no brasil não dá p’ra confiar nem no gps!’. por hoje, preferimos então abancar num dos quartos e ressacar juntos o cansaço de cinco semanas a filmar.

o fim da aventura aproxima-se e tenho aprendido muito sobre os meus limites. este vosso escriba anda há um mês e meio a dormir uma média de quatro horas por noite enquanto faz malabarismos com dois empregos a tempo inteiro, fora os biscates (que muito me realizam). o lado positivo do cansaço extremo é aprender a dizer que não: de repente, não há cá sentimentos de culpa, constrangimentos, receio de desiludir, vontade de provar que se tem uma costela de super-homem. não. subitamente até se tornou numa palavra bonita. ‘estou a fazer isto, por isso não dá’. não, não e não. que delícia.

o lado negativo nota-se no desgaste físico, na adrenalina que às vezes atrapalha as poucas horas disponíveis para dormir, na morte súbita de toda e qualquer hipótese de vida social, nas alterações de humor, nas crises de nervos e até de choro – choro que não vem de nenhuma tristeza, é apenas como se abrissem as portas do dique e o nosso corpo pudesse expulsar as maleitas sob a forma de lágrimas. cansa, mói, arrasa, atormenta, mas – de vez em quando, como se fosse um ciclo – parece que da profunda fadiga nasce um desespero criativo vestido de vertigem alucinada e bem-disposta. e assim, em pausas frenéticas e incompreensíveis, consegue trabalhar-se ainda mais e com uma estranha alegria. há até um lado nosso diabólico que parece clamar por mais obstáculos, esforço, demência. uma luta interna entre a razão e o coração.

por aqui, no rio, esperam-nos uma dezena de cenas relacionadas com a fuga (ou será retirada?) da família real portuguesa, bem como a corte, para o brasil aquando das invasões napoleónicas. e mais não posso dizer, que não me autorizam ainda e fazer suspense fica sempre bem. amanhã, se aparecer a mala com a nossa roupa de cena e a tempestade amainar, gravamos no jardim botânico, biblioteca nacional e no corcovado. apesar de tudo, das escalas doidas, dos sonos trocados e a conta-gotas, consigo imaginar mil trabalhos piores. perdoe-me o leitor por já divagar. vou só acertar o fuso horário e para a semana cá estamos outra vez.

lfborgez@gmail.com