Eduardo Paz Ferreira. “Trump coloca-nos num mundo completamente diferente”

No dia em que toma posse Donald Trump, o prof. Eduardo Paz Ferreira organiza, na Reitoria da Universidade de Lisboa, o “Trump Day”, uma conferência em que vão ser discutidos os aspetos económicos, geoestratégicos e políticos da nova presidência norte-americana.

Eduardo Paz Ferreira. “Trump coloca-nos num mundo completamente diferente”

O que significa a eleição de Donald Trump?

A eleição de Trump vai muito para além das eleições de um presidente americano normal. Vai muito para além da mais espetacular eleição antes dele, que será porventura a de Ronald Reagan. Esta eleição de Donald Trump coloca-nos num mundo completamente diferente: primeiro, na política interna norte-americana, as coisas dificilmente voltarão a ser como eram. E, depois, é uma eleição que ameaça alterar totalmente o mundo tal como o conhecemos, um mundo que, até há pouco tempo, todos nós acharíamos que íamos morrer nele.

É possível afirmar que há uma rutura do mundo pós-ii Guerra Mundial em que vivemos?

Eu gostava de ser daquele grupo de pessoas que encontram sempre razões para ter algum otimismo. Lembro-me, quando fui recentemente à televisão, de ter sido fortemente criticado por um jornalista que garantia que o sistema tinha checks and balances que serviriam para domar eventuais excessos de Trump. Agora vi um artigo em que esse próprio jornalista criticava as pessoas que defendiam que os checks and balances iam funcionar. É evidente que não há nenhum poder capaz de controlar um presidente deste tipo. Nunca houve tal concentração de poderes como existe com esta eleição de Donald Trump: ele domina as duas câmaras do Congresso, a presidência, a maioria dos governadores dos estados. E o que é mais grave de tudo, porventura, todo o pessoal político intermédio e o poder judiciário. No Supremo Tribunal vai haver mais nomeações políticas que o vão ancorar ainda mais à direita. E repare que, quando os juízes são nomeados pelos democratas, eles são, por norma, relativamente progressistas, mas estão sempre disponíveis para o diálogo. Os republicanos, não. O seu modelo é o de Clarence Thomas [considerado o mais conservador juiz do Supremo Tribunal dos EUA, nomeado por George W. Bush], alguém com certezas absolutas e que não discute nada com ninguém.

Há o problema também de os checks and balances estarem diferidos no tempo. Por exemplo, George W. Bush aprovou o Patriotic Act, que violava muitos princípios legais que só anos depois foram judicialmente corrigidos.

O mesmo se passa em relação a uma eventual correção política. Daqui a dois anos haverá eleições para o Senado que podem ajudar a reequilibrar o sistema. E depois há uma coisa que tem sido acentuada por alguns analistas, nos últimos dias, como Wolfgang Münchau do “Financial Times”, que é a possibilidade de Trump ter, a curto prazo, bons resultados económicos e isso ser um dado satisfatório para a maioria da população, apesar de ele poder ter políticas muito agressivas e desagradáveis.

Essa ideia de que democracia tem de rimar com economia é um pouco falaciosa. Há um anúncio célebre e muito premiado da “Folha de São Paulo” em que se vê, no começo, um pequeno ponto preto no ecrã, e, em alguns segundos, centenas de outros pontos formam um retrato a preto e branco, enquanto a voz off narra, antes de se perceber quem é: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho a seu povo…” E quando finalmente se percebe que o retrato é de Hitler, passa-se a ouvir: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade.”

(Risos) É muito curioso esse anúncio.
É possível uma ditadura ter crescimento económico. O próprio Chile, durante a ditadura de Pinochet, teve crescimento económico. Mas isso é diferente de ter um verdadeiro desenvolvimento económico. Houve o crescimento do PIB, mas isso, por si só, não garante que haja de-senvolvimento e melhoria de vida para a maioria da população. Criou-se um mito de que o liberalismo económico estava necessariamente ligado à democracia. E isso pode ser assim, mas também pode não ser. Veja-se o caso da China. Estranho mundo em que o presidente chinês abriu o Fórum de Davos…
É bastante hilariante ver os grandes empresários que participam nesse encontro a glorificar o líder do Partido Comunista Chinês e o seu sucesso no crescimento capitalista da China.

A eleição de Trump também é uma afirmação do isolacionismo e desinvestimento em organizações internacionais. Pode ser também uma interrupção do processo de globalização?

Os Estados Unidos têm sempre uma forte tendência isolacionista. Por vezes, tem havido grandes figuras, como o presidente Roosevelt, que conduziu os EUA para a intervenção na ii Guerra Mundial e que tem um discurso absolutamente notável sobre como se pode construir a paz, uma paz assente na justiça, na igualdade. E uma ideia lindíssima que ele tem naquele discurso das “Quatro Liberdades”, em que defende “a liberdade da necessidade” e faz notar como é necessário que, para haver liberdade, as pessoas tenham as suas necessidades básicas satisfeitas. Mas, noutras fases, os EUA têm a tendência de se desinteressar do que se passa no exterior ou, então, de impor, de uma forma muito violenta, os seus pontos de vista. O certo é que, de uma forma ou de outra, temos vivido a chamada pax americana. Com este senhor, isto está ameaçado. Trump vai, na política externa, trair o essencial das alianças tradicionais dos EUA. O corte com a Europa é já nítido. As suas declarações fazem antever um diálogo muito duro com os principais políticos europeus. Devo dizer que a sra. Merkel. que estava no meu álbum de antipatias. vem mudando para o álbum das simpatias.

Não que ela tenha mudado muito.

Mas o mundo tem mudado tanto que ela até parece defender valores razoáveis. Muitos de nós acabamos por vir a simpatizar com a CIA e o FBI porque são insultadas por Trump e chamadas “tropa nazi”.

Não exageremos (risos). Embora, recentemente, um articulista do “Financial Times” fazia notar que a esquerda costuma desconfiar da CIA e outras agências deste tipo por as achar do lado mau da força, mas que os republicanos também tendiam a desconfiar, porque os espiões costumam ter várias licenciaturas e até falam línguas estrangeiras.

(Risos) Essa história é muito engraçada. Mas não podemos esquecer o papel pernicioso que teve nas eleições o FBI, com aquela investigação tardia sobre os emails de Hillary Clinton.

Uma mudança política muito mais profunda, a passagem da União Soviética para a Rússia, não alterou muitos dos interesses estratégicos históricos. É possível que os EUA abandonem os seus aliados europeus, que têm sido um ativo estratégico de Washington nos últimos 70 anos?

Estou de acordo que haja uma certa continuidade na política russa. A Rússia de Putin podia ser a União Soviética. Pode parecer muito ofensivo para os soviéticos, mas há aspetos do expansionismo e do orgulho de uma grande potência que são comuns. Mas a questão de Trump é diferente. Ele não está interessado nisto, não é um ideólogo. Mas, se ele tem uma ideia para a Europa, é criar uma relação ainda mais privilegiada com o Reino Unido. Não penso que seja uma coincidência que a Theresa May faça um discurso tão forte esta semana na linha do hard Brexit: não vamos sequer ficar no mercado comum, etc. Ela está a dar uns sinais de que quer sobretudo colaborar com os EUA. Há também a enorme incógnita do que se vai passar na Europa, há uma série de processos eleitorais que podem mudar muito a situação.

Holanda, França, Alemanha e, se calhar, Itália.

Parece-me que apenas na Alemanha estamos livres de grandes surpresas, apesar de ser no fim do ciclo eleitoral. E aquilo que me parece mais interessante é que, pela primeira vez, se começa a ouvir defender o que poderia ser uma solução à portuguesa: uma aliança vermelho, vermelho e verde [SPD, Die Linke e Verdes]. Não penso que venha a verificar-
-se, mas o que é curioso é que, se isto fosse no parlamento atual, esta aliança teria tido maioria e poderia governar. O mais provável é que continue uma aliança CDU/CSU e SPD, eventualmente com o recurso aos liberais.

É possível que a Europa como a conhecemos, com União Europeia e euro, possa acabar este ano?

Há muitas razões neste sentido. Embora o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, o verde Joschka Fischer, tenha escrito há pouco tempo um excelente artigo em que afirmava o contrário, defendendo que, com esta situação mundial e com a Rússia do outro lado, há pressões para que exista um entendimento europeu ainda maior, para recriar a ideia de uma potência europeia. Dito isto, há muitas razões que podem levar à queda da União Europeia. Para já, o Brexit. À primeira vista os seus efeitos parecem muito piores para o Reino Unido do que para os outros países europeus. Depois há o risco de, na Itália, haver um referendo sobre a matéria; se isso acontecer, as coisas podem começar a esboroar-se mais rápido até que o previsto. Há quem diga que mesmo na Grécia, de que temos ouvido falar pouco, onde parece haver uma enorme apatia e resignação, Tsipras pode jogar uma última cartada e defender a saída da UE ou, pelo menos, do euro. Há muitas coisas que podem correr mal e colocar em risco o projeto de integração europeia durante este ano.

Na entrevista de Donald Trump ao “Times”, ele diz que lhe é indiferente que a Europa esteja unida ou desunida. Mas se ela está desunida, isso deve-se mais às divisões que provocaram as políticas do eixo Berlim/Bruxelas que à eleição de Trump.

Absolutamente. Mas é evidente que Obama era partidário da integração europeia. Achava que era bom para os Estados Unidos. Havia, aliás, aquele velho queixume de “quem é que atende o telefone quando eu quiser falar com o chefe da Europa”. A resposta, depois, passou a ser mais fácil com a sra. Merkel. Para um presidente do tipo de Trump, percebe-se que ele diga “tanto se me dá como se me deu, eu não estou interessado na Europa, brinquem ao que quiserem”.

Essa ideia de que ele vai abandonar a aliança europeia costuma vir acompanhada da conceção de que ele é um homem que convém a Putin. Mas isso não é demasiado simplista? A mão livre que Trump dará aos israelitas, que podem até atacar aliados dos russos, como o Irão, ou o conflito crescente dos EUA com a China não podem ser contrários ao interesse de Moscovo?

Donald Trump é uma pessoa de uma aparente enorme irracionalidade, mas já mostrou ter uma grande capacidade de sobrevivência. Ele poderá gostar de Putin, mas os americanos não gostam dos russos, e isso é uma evidência. Não querem ter um presidente que seja um joguete de Moscovo. Isso vai obrigá-lo a marcar algumas distâncias. Admito que fará coisas como um eventual levantamento das sanções decretadas por Obama, mas esses grandes conflitos vão colocar-se. Aliás, nas audições dos membros da administração apareceram já algumas dissonâncias a esse respeito. Pode dizer-se que podem ter sido estratégicas para contentar o Congresso, para conseguir aprovações sem grandes problemas. Nelas até houve pessoas que negaram todo o seu passado, como Jeff Sessions, o procurador-geral indicado por Donald Trump, que apagou todo o seu passado racista. Há mais uma coisa curiosa em Donald Trump: ele está a quebrar aquelas boas maneiras tradicionais na transição entre presidentes, e ainda bem que está: aquela política de tolerância de “não se toca em ninguém”. Esta coisa de vários congressistas não irem à posse dele, é a primeira vez que isso acontece na história. É absolutamente necessário sair deste engodo de que o importante é cumprir a tradição, porque a tradição já acabou com este senhor. Portanto, ou mudamos o comportamento ou somos liquidados.

Como se explica esta mudança eleitoral? O presidente Obama sai com taxas de popularidade muito elevadas, das mais altas de sempre, e, no entanto, as eleições americanas resultaram na nomeação de um presidente que tem como programa explícito a destruição do legado de Obama.

É verdade que o grau de popularidade de Obama subiu muito depois do anúncio da eleição de Trump. Ele tinha um grau de popularidade considerável mas não tão elevado na fase final do seu mandato e subiu 20 pontos depois das eleições. Isso corresponde a uma reação de parte dos americanos à eleição de Trump, eventualmente até a algum remorso de parte do eleitorado que votou como protesto no milionário. Neste momento custa–me muito criticar Obama, mas a verdade é que ele é um presidente que me desiludiu profundamente. Quando olho para Trump, penso que tomara que houvesse um igual a Obama. Mas ele não fez muitas coisas que deveria ter feito: não fechou Guantánamo, foi muito indiferente em relação à violência policial sobre os afro-americanos e protagonizou uma política externa no Médio Oriente desastrosa. Há muitas razões pelas quais nos podemos sentir pouco confortáveis com o mandato de Obama, embora algumas coisas que ele sejam marcos civilizacionais, como o seu plano de saúde, o Obamacare. Mas isso pode ser destruído em dois tempos, o que levanta uma questão muito interessante, que é a de saber se uma simples vitória eleitoral permite fazer tábua rasa de tudo o que está para trás.

O problema é que grande parte das medidas que Obama tomou, devido a ter minoria no Congresso, são ordens executivas, e isso permite ao novo presidente anular quase tudo. O que é impressionante nos EUA é se 21 milhões de pessoas ficam sem qualquer cuidado de saúde…

Dos quais muitos votantes de Donald Trump.

Como é possível fazer isso sem oposição séria?

Estou profundamente convencido de que vai haver uma grande oposição de rua, coisa que não vemos nos EUA desde a guerra do Vietname. E vai haver por várias razões: primeiro, porque os democratas não são capazes de travar e enquadrar o descontentamento popular; e, depois, o próprio Bernie Sanders vai manter a sua rede ativa. Não vai jogar na frente de batalha do Congresso, mas nas ruas.

Dada a sua idade, é pouco provável que seja candidato na próxima eleição.

É verdade. A mais óbvia candidata dessa área é Elizabeth Warren. Eu, pessoalmente, risquei-a da minha lista dada a sua atuação no processo de primárias norte-americanas. Se ela tivesse apoiado o Bernie Sanders, como seria normal, isso teria dado muita força à candidatura deste. Ela foi muito hipócrita e, depois, ainda se ofereceu para vice-presidente de Hillary Clinton que, aliás, não a aceitou. De qualquer forma, ela tem a melhor reputação de liberal. Provavelmente será ela a candidatar-se nas próximas presidenciais, a menos que apareça um novo Obama, um jovem ambicioso que vem marcar uma nova agenda e que aparece como uma espécie de outsider.

Parece estarmos a assistir a um esgotamento do modelo político existente e ao aparecimento de um conjunto de populistas de extrema-direita. Como é possível contrariar esta deriva autoritária? Não serão certamente aqueles que estiveram no poder até agora que podem protagonizar uma mudança democrática.

Tenho muitas reservas em relação à forma como todo o poder instalado fala do populismo. Toda a gente que faz críticas à forma deplorável como funciona a democracia é um populista e uma pessoa horrível. Se ser populista é falar contra os desmandos do poder instalado, então eu também sou um populista. Obviamente que até a democracia que temos não se compara com o fascismo. Mas esta democracia está em crise. Temos uma política ordenada pelos poderes financeiros, e não pelos políticos, e há uma classe política completamente desinteressada das aspirações populares – tudo factos que estiveram por detrás da vitória do Brexit e de Trump. Há inúmeros aspetos a criticar. Dentro das pessoas que criticam, há aqueles que querem construir algo de positivo e uma democracia mais avançada; e temos aqueles que estão apenas a aproveitar-se disso, como é o caso de Nigel Farage e de Boris Johnson, que se vendem como se fossem candidatos antissistema, eles que são obviamente parte do sistema. E a culpa – volto sempre à minha velha ideia – é da traição social-democrata, porque se houvesse uma social-democracia capaz de reconhecer os seus próprios erros e de denunciar os erros da política, então as coisas seriam muito mais fáceis. Como não há, o espaço está dado a forças de direita extremista.

Ricardo Paes Mamede diz que, atualmente, os verdadeiros defensores de um programa social-democrata, com um Estado forte e direitos sociais, estão na extrema-esquerda.

Eu também diria o mesmo. Embora o caso português seja muito especial. Tivemos sorte. Lembro-me de falar com uma pessoa muito importante no PS, antes das legislativas, e ela dizer-me: “Nós somos a extrema-esquerda dos socialistas europeus.” Se correr bem, a solução portuguesa vai dar a ideia de que é possível existir uma alternativa. Nestes partidos que estão todos destruídos, como o PSOE em Espanha e o PSF em França, além do célebre PASOK, isso pode ajudar a mudar.

Jean-Luc Mélenchon [candidato da Front de Gauche, comunistas e dissidentes do PSF] dizia recentemente numa entrevista ao “El País” que ele é que era o candidato socialista.

Como é evidente. Mélenchon, em meu entender, fez o erro de não ir às primárias socialistas, que ele facilmente ganharia, e isso talvez lhe abrisse o caminho para a segunda volta. Mas ele também parece ter um ego desmedido.

Acha que é possível criar essa alternativa de esquerda? Os tempos parecem estar confusos, e até Corbyn, que pareceu ir nessa direção, admitiu ideias como a prioridade no emprego e direitos sociais aos britânicos que parecem tiradas dos programas populistas de direita.

Eu percebo que haja doses de realismo, expressão que eu odeio, e que não se pode alienar hipóteses eleitorais com proclamações que afastem os eleitores. Mas acho que o essencial é termos princípios, e aquilo que deu cabo da esquerda foi estar disposta a transigir sobre princípios.

Uma das forças do populismo é ter um conjunto de explicações simples que são agarradas pelas pessoas. À esquerda falta essa capacidade de suscitar adesão emocional.

Isso é totalmente verdade, e conto-lhe uma história narrada não propriamente por um homem de esquerda, Mario Monti, que ouvi, numa conferência, dizer isto: “O problema é que, quando a extrema-direita ataca os imigrantes dizendo que eles vêm roubar-nos o trabalho, todas as pessoas ficam com esse slogan na cabeça. Se alguém quiser desmontar isto, explicando que até vêm para trabalhos que os nacionais não querem e que vão contribuir para a economia e a sustentabilidade da segurança social, já ninguém está a ouvir.” O grande problema da esquerda é também como transmite a mensagem. Mas, sobretudo, não ser clara na aposta num programa social-democrata.