João Villaret. Uma voz, muitas vozes

Acolheu a vida íntima de um largo leque de personagens, do bobo ao rei, do inspector ao ladrão, de Santo António, entre girls, às figuras com pés de barro da vida nacional. Todas lhe infundiam medos muitos enquanto não chegava o público. «Onde não há público não há êxito», costumava dizer.  

No palco, o terreno que mais gostava de pisar e onde brilhou a grande altura, João Villaret (10 de Maio de 1913 – 21 de Janeiro de 1961) demonstrou que «se o fado se canta e chora, também se pode falar» (Aníbal Nazaré / Nelson de Barros). Na sua voz, aliás, de ricas e diversas tonalidades emotivas, a poesia, convertida em ‘sentimento próprio’, mudava de face. «O actor é um fingidor», fez notar, parafraseando o célebre poema de Pessoa, que, juntamente com António Nobre, António Botto, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, José Régio e vários outros, deu a conhecer ao público através de discos e recitais memoráveis, divulgando a língua e a poesia portuguesas.

Razão teve Miguel Torga quando afirmou que os poetas portugueses lhe deviam uma espécie de requintada edição oral de alguns dos seus melhores versos. Ao longo de quase quatro décadas, tempo suficiente para criar uma escola, Villaret soube fundir a arte do poeta e a arte do intérprete, criando poesia ele próprio. Rendido à sua forma única e apaixonada de dizer, ao encantamento das palavras que fazia suas, o público não se cansou de o aplaudir.

De palco em palco, em digressões pela província e pelo mundo, a sua vida, feita de palavras e espessura humana, foi um corridinho. Nasceu – viviam-se então os anos revoltos da Primeira República – a uma distância mínima do Tejo e com o dom superlativo da comunicação que haveria de tornar famosas as suas tertúlias no Café Brasileira do Chiado. Menos ínvios que os de Portugal, que então buscava o seu rumo, são os caminhos que conduzem João Villaret ao teatro.

Frequentado o Conservatório Nacional, depois de estudos feitos no Anglo-Portuguese College, começou por integrar o elenco da companhia de Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro. No Teatro Nacional, onde se estreia em 1931 com o drama histórico Leonor Teles, como nos muitos outros palcos ou espaços onde a companhia se apresentou, em Portugal e no Brasil, fará comédias, dramas e tragédias. O seu facetado talento foi exibido em peças como A Recompensa (1938), de Ramada Curto, A Madrinha de Charley (1942), de Brandon Thomas ou, no ano seguinte e num Teatro Nacional já restaurado, Electra e os Fantasmas, de Eugene O’Neill, desdobrando-se em duas personagens de idade distinta.

A sua actuação em Esta Noite Choveu Prata, do dramaturgo e médico brasileiro Pedro Bloch, foi porventura o seu maior êxito teatral – significativamente, uma peça escrita para um só actor. Triunfalmente estreada em 1954, no Teatro Avenida, onde foi representada 150 vezes!, a peça foi levada a S. Tomé e a várias cidades de Angola e Moçambique. À digressão africana, seguiu-se a Madeira e os Açores e depois a Argentina. 

Muitíssimo apreciado também em terras do Brasil, que o acolheu com generosidade e, a cada nova visita, recebia entusiasticamente os seus espectáculos, Villaret colaborou com a Rádio Globo, e apresentou em 1953 o programa «Poesia em sua Casa» na TV de São Paulo, tinha já feito, a sua estreia frente às câmaras na TV Tupi, do Rio de Janeiro.

Por cá, antes mesmo de embarcar na aventura d’ Os Comediantes de Lisboa, companhia fundada pelos irmãos António Lopes Ribeiro e Francisco Ribeiro (Ribeirinho), ganhava então João Villaret (boa) fama de declamador, produz-se uma espécie de alargamento na sua carreira, a causar algum escândalo junto da ‘nobreza artística’ e dos defensores do chamado teatro sério. Acompanhado da sabedoria das artes do palco, dos seus excepcionais recursos e de um sentido de modernidade, João Villaret “desce”, nos idos de 1941, do teatro dito declamado ao teatro de revista (género por muitos desdenhosamente considerado menor), elevando-se ao olhar e ao ouvido do público, que não lhe poupou elogios rasgados. Nos palcos do teatro ligeiro encadeará êxitos que vinham comprovar a possibilidade de conciliar o ‘dramático’ com a revista, género a que associou por dez vezes o seu nome.

Em Tá Bem ou Não Tá? (1947), porventura de todas a mais famosa, popularizou o célebre «Fado Falado» – à época, momento maior da arte de representar em Portugal. Na memória colectiva ficaram outros solos brilhantes como «A Vida é um Corridinho» (1952), a ferir, com ironia, notas amargas da vida provinciana, ou «A Procissão» (1955), de António Lopes Ribeiro, que viria, anos mais tarde, a popularizar no seu programa de domingo, na RTP: «João Villaret», a projectar a popularidade do actor para lá do círculo restrito dos palcos teatrais. 

João Villaret não se deteve no teatro. No cinema, arte de que era comedido entusiasta, assinou interpretações em Inês de Castro (1945) e Camões (1946), ambos de Leitão de Barros; Três Espelhos (1947) do húngaro Ladislao Vadja; Frei Luís de Sousa (1950); O Primo Basílio (1959), a última longa metragem de António Lopes Ribeiro. 

Quando, em finais de 1958, depois de algumas participações em programas na televisão, inicia o célebre programa das noites de domingo que o viria a consagrar como figura de referência da história da Televisão em Portugal, já Villaret se debatia com o sofrimento originado pelo tratamento mal sucedido de uma calosidade na planta do pé direito que o magoava, lhe dificultava a marcha e o desempenho pleno dos seus papéis. Em Abril desse ano, então em Nova Lisboa, o actor preveniu o barbeiro, logo disposto a ajudá-lo, que era diabético. O barbeiro tranquilizou-o: decerto não iria ter a infelicidade de ferir o Sr. Villaret… A verdade é que, apesar de todos os cuidados, um pequeno golpe foi o princípio do fim.

A doença, que há muito o torturava, veio retirá-lo definitivamente dos palcos antes mesmo de completar meio século de vida. «E do actor o que fica?» – perguntou Villaret, com a eloquência que o caracterizava, consciente de que o teatro, na sua mais profunda essência, é a arte do efémero. A resposta veio, pronta, pela sua própria voz, que não se cansou de transfigurar numa orquestração de emoções: «Ah, mas fica alguma coisa, indefinível, embora, mas dominadora, que é poesia e saudade».