O tempo que vivemos dava uma crónica

Há um livro de Baptista-Bastos que se chama O Secreto Adeus e o cenário é uma redação de jornal no tempo da ditadura. Foi um dos livros que li em adolescente e que me fez ter vontade de ser jornalista. 

Agora vou citar de cabeça um livro que não tenho ao pé de mim e já não leio há muitos anos. Mas é assim: a dada altura alguém na redação diz «isto dava uma crónica» e a personagem principal irrita-se porque toda a gente estava sempre a dizer que tudo dava uma crónica e nunca ninguém escrevia crónica nenhuma. O tempo que vivemos dava uma crónica mas também é difícil escrevê-la. Nada é a preto e branco, mas os tempos atuais têm mais cambiantes do que era possível imaginar.

Ninguém acreditou que António Costa conseguisse ser primeiro-ministro sem que o PS fosse o partido mais votado. A solução, totalmente legítima, nunca passou pela cabeça de ninguém – incluindo de muitos socialistas – pela simples razão que as distâncias entre PS e os partidos à sua esquerda eram tão violentas, nomeadamente na questão do cumprimento escrupuloso dos compromissos europeus, que não se vislumbrava como PCP e Bloco poderia aceitar dar o sim a um Governo que faria questão de cumpri-los. 

Enganámo-nos todos: o PCP e o Bloco estavam disponíveis para engolir o sapo dos compromissos europeus a troco de melhores condições para os trabalhadores. Costa conseguiu o melhor dos mundos: teve o ámen dos partidos euro críticos para apresentar na Europa um défice de 2,3%, obtido naturalmente à conta do desinvestimento em serviços públicos e do corte no investimento público. É evidente que o PCP e o Bloco se insurgem todos os dias contra os cortes nos serviços públicos, mas não será por aí que o gato vai às filhoses. Ou pelo menos não é para já que as filhoses estão ameaçadas. 

Como conseguiu o impossível, António Costa julgou-se o super-homem. E foi nesse espírito que apareceu na Concertação Social ignorando a maioria que o apoia e acreditando que ter Marcelo ao lado era ter o sim do PSD. A decisão tática de Passos foi para o líder do PSD a emergência de um coma profundo que durou um ano. Costa pode ser sobredotado (também para a tática) mas não tem poderes sobrenaturais. E agora está a passar um mau bocado, evidentemente.