Os justiceiros

La Piovra, com o célebre comissário Corrado Cattani (Michele Placido), foi uma das séries italianas mais seguidas em todo o mundo nos anos 80 do século XX. Cattani foi transferido para uma pequena localidade siciliana e infiltrou-se no mundo da máfia numa época de predomínio da Camorra, feito de narcotráfico e corrupção, passando pelo terrorismo.

Quando ‘O Polvo’ fazia sucesso na televisão nacional – e de leste a oeste no mundo -, rebentavam simultaneamente escândalos atrás de escândalos em terras transalpinas. Do nunca bem explicado sequestro e homicídio de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas ao caso da megafraude do Banco Ambrosiano (do Vaticano), das ligações entre grupos de crime organizado, na política, na banca, em meios empresariais e industriais, um fenómeno quase transversal na sociedade italiana.

Na vida real, os protagonistas principais eram um superjuiz – Giovanni Falcone (morto em atentado em 1992) – e um superprocurador, Antonio Di Pietro, que conduziam a megaoperação anticorrupção conhecida mundialmente por ‘Mãos Limpas’. E que além de um rol de processos e condenações, resultou num número nunca visto de detenções (aos milhares), além de mais de uma dezena de suicídios, entre políticos e empresários, magistrados e agentes da polícia apanhados na malha fina da Justiça. Caiu assim a Primeira República italiana, em 1994, e as máquinas partidárias praticamente todas. Resultado: um multimilionário de Milão (curiosamente a cidade onde começou a operação ‘Mãos Limpas’) fundou a sua própria coligação partidária e conquistou o poder. O magnata que dominaria a Itália por mais de uma década chama-se Sílvio Berlusconi – primeiro-ministro sucessivos mandatos que utilizou o poder (legislativo) para alterar a lei por forma a evitar responder perante a Justiça, ao ponto de decretar amnistias confundíveis com perdões pessoais e promover outros estratagemas quejandos para fugir à imputabilidade dos crimes de que é suspeito.

Em Espanha, o crime organizado – do tráfico de droga ao terrorismo (ETA ou GAL), dos crimes económicos à corrupção – teve em Baltasar Garzon o protagonismo maior. O superjuiz espanhol ultrapassou fronteiras quando emitiu mandado de captura internacional contra o então Presidente chileno Augusto Pinochet, aproveitando a acusação ao ditador de genocídio e justificando a competência para a sua jurisdição pelo facto de haver cidadãos espanhóis entre as vítimas. Garzon acabou expulso da magistratura, condenado pelo Supremo Tribunal espanhol, por prevaricação. É, atualmente, destacado defensor de Julien Assange (Wikileaks).

Cronologicamente posterior nas suas ações contra as relações duvidosas entre a fina flor da política, da alta finança e do mundo empresarial, aparece em Portugal nos anos 90 mais um superjuiz: Carlos Alexandre. Assesta baterias contra Dias Loureiro, Paulo Portas, Paulo Pedroso, José Sócrates, Ricardo Salgado (que agora foi também constituído arguido na ‘Operação Marquês’) e muitas outras personalidades dos meios políticos, financeiros, empresariais e desportivos. Portugal nunca teve tantas buscas transmitidas em direto pelas televisões, políticos, banqueiros e empresários detidos e levados sob custória policial, tantas condenações na praça pública. Mas demasiado poucas, mesmo raras, acusações deduzidas e muito menos sentenças de condenação transitadas em julgado. 

Finalmente, no Brasil, já neste século, o juiz federal Sergio Moro destacou-se nos megaprocessos que igualmente envolvem as mais altas personalidades da vida pública brasileira, uma vez mais e também, dos meios políticos, financeiros e económicos. Desempenhando papel central em megaoperações como o ‘Mensalão’ ou o ‘Lava Jato’, que acabaria por conduzir ao impeachment de Dilma Rousseff e à ascensão à Presidência de Michel Temer, ele próprio também sob suspeita.

Dos países do Sul da Europa à América Latina, há uma coisa em comum em todos estes escândalos, para além da natureza dos crimes e dos perfis dos envolvidos: os superjuízes ou superprocuradores que corajosamente desencadearam as operações… e que delas acabaram vítimas.

Falcone foi morto. Garzon expulso da magistratura. Moro tem meio Brasil a acusá-lo de ter sentenciado um golpe palaciano (e nesta semana o juiz do Supremo Federal que decidiu sobre o ‘Lava Jato’ morreu vítima da queda do avião em que seguia). Carlos Alexandre perde credibilidade entre os agentes da Justiça, porque não há meio de a promover, ainda que conte com o beneplácito de uma comunicação social que se alimenta das suas ações e condena os seus alvos mesmo antes de haver sequer acusação por parte do Ministério Público e muito menos pronúncia, julgamento, condenação ou absolvição.

Porque em Portugal, como bem notou o Presidente Marcelo numa das suas inúmeras intervenções da semana passada, a Justiça é demasiado lenta para ser justa e tem mecanismos que permitem a acusadores e defensores dilatarem os prazos a perder de vista, quando não mesmo o efeito ou utilidade da lide ou do procedimento criminal (Francisco Canas, o ‘Zé das Medalhas’, morreu sem conhecer qualquer desenvolvimento judicial da ‘Operação Monte Branco’ que o levou à prisão… preventiva).

Nos Estados Unidos, Madoff foi preso preventivamente e em pouco mais de 10 meses acusado, julgado, condenado e, após recurso, viu confirmada a sua pena perpétua. Entretanto, dos dois filhos que envolveu e se envolveram nos seus esquemas, um morreu vítima de doença e o outro suicidou-se.

José Alberto dos Reis, referência do Direito processual português no início do século XX, defendia abertamente que mais valia uma justiça lenta e justa do que uma Justiça célere mas injusta. E tinha toda a razão – porque raramente ou nunca se repara uma injustiça e a presunção de inocência é (era?) princípio basilar de todo o Direito. Mas a lentidão de que Alberto dos Reis falava nada tinha a ver com a inação ou quase total falta de capacidade de resposta da Justiça.

Não é admissível que um ex-primeiro-ministro seja detido e preso preventivamente durante meses e mais de dois anos volvidos ainda continue à espera de conhecer acusação.

Como não é admissível que um banqueiro a quem se imputa uma das maiores fraudes da história da banca mundial (assim foi classificado internacionalmente o caso BES) fique anos até se sentar no banco dos réus (leia-se arguidos).

A realidade ultrapassou em muito a ficção d’ O Polvo do comissário Cattani.

Di Pietro, Baltasar Garzon, Carlos Alexandre e Sergio Moro já estão confirmados num ciclo de conferências que se realiza em maio em Portugal – no Estoril.

E já foi feito o anúncio da dita e extraordinária sessão com os quatro supermagistrados.

Simplesmente, como foi feito entre outros anúncios, e como a sempre atenta comunicação social portuguesa estava entretida a discutir as suas condições de trabalho num cinema da capital, ora acusando os patrões pelas costas ora subservientemente anulando votações e apressando os trabalhos para se curvar perante eles mal poisam pé atrás do palco, quase ninguém deu por isso.

Porque pouco interessa se entre os palestrantes estão Oliver Stone, Nigel Farage ou Sofana Dahlan, já que na agenda mediática desta nova era a estrela das ditas conferências, mesmo à distância (naturalmente, só participará através de videoconferência), é o espião-bufo da moda Edward Snowden.

Di Pietro, Garzon, Alexandre e Moro também vão lá estar. Importa? Pouco, porque poucos se recordam de três deles e do outro só se lembram quando lhes interessa.

Certo é que os quatro representam a judicialização dos regimes políticos de Estados ditos de Direito democrático, que devia ser objeto de muito mais alargado debate (e reflexão) nos países do Sul da Europa e da América Latina.

E os quatro, ainda por cima juntos, representam certamente um problema maior em termos de segurança, sobretudo com a divulgação pública de tal encontro com tamanha antecedência.

E os quatro, ainda por cima juntos, merecem muito mais atenção do que se lhes tem dado.

Nem que seja para os confrontar com o balanço e as consequências dos seus atos heróicos e justiceiros e o seu real contributo para a Justiça. Cuja imagem pública – muito por causa deles – pouco ou nada tem a ver com uma balança de pratos equilibrados e tão pouco com o verdadeiro sentido que se pretendia metaforizar com uma senhora de olhos vendados.