A PIDE e o bigodinho do Clark Gable

As senhoras que me desculpem: mas Clark Gable é, para mim, a boa imagem de um canastrão. 

Não lhe recuso qualidades, até porque, segundo Chuck Jones e Friz Freleng, foi ele o inspirador de Bugs Bunny, esse sim, um ator que me agrada particularmente. Parece que se limitaram a copiar o personagem principal de It Happened One Night na cena em que se encosta a uma cerca e fala de boca cheia para cima de Claudette Colbert enquanto mastiga cenouras. Um vício muito dele: Vivien Leigh queixava-se de que, nas cenas de E Tudo o Vento Levou, já não lhe suportava o bafo a cebola. E foram muitas horas de filmagens a inalarem o hálito um do outro, essa é que é a verdade.  

Falei aqui de Clark Gable mas mais por causa do bigode: afinal o bigode vive ali na fronteira da halitose. Houve muito bom rapaz a querer ter um bigodinho à Clark Gable e Santana foi um deles. Joaquim Santana da Silva Guimarães: nascido no Lobito e jogador do Sport da Catumbela. Depois veio para o Benfica. E bem.

De cada vez que penso nos sinistros agentes da velha PIDE vem-me à cabeça a imagem de uma figura raquítica num canto de um café, escondido atrás de um jornal, de olhar desconfiado e bigodezinho caído nas pontas: mais do género Mark Spitz. Claro que não passa de um produto da imaginação: os agentes da PIDE estavam no meio de nós, alguns conheci-os mais tarde como avozinhos extremosos e, no entanto, sinistros. Enxameavam a Rua António Maria Cardoso, ali ao Chiado, por onde eu passava todos os dias em direcção à faculdade. António Maria Cardoso foi um oficial da Marinha Portuguesa, explorador de África, sem nada de sinistro.

José Águas, também angolano, capitão do Benfica das vitórias na Taça dos Campeões, contava: «Houve um bufo que transmitiu à PIDE o teor de algumas conversas que eu tinha tido num café no qual costumava encontrar-me com um grupo de amigos. Fui interrogado por várias vezes. Aconselharam-me a não me meter na política. Cheguei a ver o caso muito mal parado. Felizmente, o futebol sempre influenciou fortemente aqueles que eram mais suscetíveis de serem influenciados. E os senhores da PIDE nunca foram dos mais esclarecidos. Mas cheguei a sentir medo. Muito medo!».

Não sei se os bufos tinham hálito a cebola, mas podiam muito bem ter. Eram de um tempo em que o Benfica deixou de vestir de vermelho e passou a vestir de encarnado. Hoje ainda se diz: «No tempo da outra senhora…» Uma senhora salazarenta que não gostava de vermelho.

Voltemos a Santana, Joaquim Santana. Era um jogador finíssimo, de técnica maravilhosa, um avançado único. Mas aconteceu um azar na vida de Santana: apareceu Eusébio. Na primeira final europeia do Benfica, ainda havia José Augusto, Santana, Águas, Coluna e Cavém. Na segunda entraram Eusébio e Simões. Cavém recuou no campo; Santana saiu dele. Foi pena.

Chamavam-lhe ‘Molengão’. Gostava de ter a bola só para si, às vezes em exageros de egoísmo. Na famosa dupla jornada da Taça Intercontinental contra o Santos de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, marcou dois golos no Maracanã perante mais de cem mil pessoas. Em Lisboa, na goleada dos brasileiros, apontou o último golo encarnado e não vermelho.  Era mais Santana do que nunca.

Santana também conheceu a Rua António Maria Cardoso. Tinha ligações aos movimentos de libertação de Angola e Moçambique. Diz-se que era amigo do poeta Marcelino dos Santos e que mantinha contactos com ele e com outros independentistas. A PIDE não gostava dessas coisas. Um dia, os agentes surgiram no Estádio da Luz para o levarem. Esteve preso durante muito tempo. Foi torturado. Emagreceu quase dez quilos. Por mais de uma vez, brigadas da Polícia do Estado estiveram no seu quarto do Lar do Benfica, no qual moravam muitos dos jogadores da época, procurando documentos que o comprometessem. Nunca os encontraram.

Santana não era apenas uma grande figura como jogador de futebol. Era-o também na vida, com o seu bigodinho à Clark Gable e o seu jeito tímido.

Mais uma vez, José Águas: «Quando foi do caso do Santana, fui chamado para me identificar na PIDE, no dia seguinte. Soube da sua prisão e percebi que também eu estava metido num sarilho. Dois ou três dias depois, notei que andava a ser seguido. O homem tinha uma cara que nunca mais esquecerei. Escondido atrás de um jornal, parecia um daqueles agentes secretos dos filmes. Nem posso dizer o que senti nesse momento…».

Eu também não.  Mas, muito provavelmente, um intenso cheiro a cebola…