Portugal caminha para direito a ignorar emails fora do horário de trabalho

As empresas francesas com mais de 50 funcionários vão poder estabelecer horários durante os quais os empregados podem, ou não, responder a emails relacionados com trabalho. Jurista contactada pelo i admite que este será o caminho a seguir por toda a Europa

Os trabalhadores portugueses vão poder ignorar emails e chamadas de trabalho fora do seu horário de trabalho? A jurista Inês Reis, sócia da sociedade de advogados pbbr, responsável pela área de prática de trabalho e segurança social, acredita que sim. França já ganhou esta batalha e a responsável defende que este será o caminho a seguir, mais cedo ou mais tarde, em toda a Europa. “Este exemplo vai acabar por ser seguido. Este é um caminho sem retorno e a realidade do trabalho hoje em dia não tem nada a ver com os anos 70, não há um trabalho de secretária das 9h às 17h ou até às 18h”, refere em declarações ao i.

Ainda assim, não sabe se essas regras vão ser impostas por lei ou se por contratação coletiva, tal como já foi sugerido. No entanto, faz um alerta: “Não há uma solução para todos.” E a explicação é simples: “As empresas pequenas têm determinadas necessidades e realidades e as maiores têm outras. E, mesmo dentro das empresas da mesma dimensão, as exigências variam consoante a atividade das empresas e são distintas. E também variam consoante os cargos”, diz.

Isto significa que a tendência é seguir o exemplo francês. A lei agora aprovada aplica-se a todas as empresas francesas com mais de 50 funcionários. Não proíbe o envio de emails ou mensagens de foro profissional fora do horário laboral, mas não obriga à sua resposta. E pede aos empregadores que negoceiem um novo protocolo de forma a assegurar que o trabalho não entra pelas noites nem pelos fins de semana dos funcionários dentro. Também pode optar por fixar horários entre os quais não é expetável obter resposta – como entre as 21h e as 7h do dia seguinte ou entre as 19h e as 7h. No fundo, é uma forma de tentar contrariar a disponibilidade permanente que a tecnologia hoje permite – e de assegurar que o tempo de descanso dos trabalhadores não é posto em causa.

No entanto, para ser transposta, a lei teria de ser ajustada. “Em França, isso só se aplica a empresas com mais de 50 trabalhadores, o que, em Portugal, tendo em conta o nosso tecido empresarial, significaria que muitas empresas ficariam de fora destas regras”, alerta.

Causa de stress

E o certo é que o correio eletrónico profissional, segundo diversos estudos, é visto como uma fonte significativa de stresse. Por exemplo, um grupo de professores da Universidade de Stanford estimou que o cansaço extremo e o stresse por motivos profissionais custa mais 125 a 190 mil milhões de dólares, por ano, ao serviço de saúde norte-americano.

Daí o caso francês não ser isolado. Outras empresas europeias já assumiram os perigos do trabalho fora de horas. Em 2012, a Volkswagen, por exemplo, bloqueou o envio de emails para os telefones dos funcionários fora das horas laborais.

Também o ministério alemão do Trabalho fez aprovar em 2014 uma lei idêntica, mas menos restritiva. Os patrões ficaram impedidos de telefonar ou enviar emails aos funcionários fora do horário normal, a não ser em casos de emergência.

Mas nem tudo são vantagens. A jurista lembra que, “se dissermos a um trabalhador que não vai ter acesso ao email da empresa fora do horário de trabalho mas, em contrapartida, enquanto estiver a trabalhar não pode resolver nenhuma questão pessoal durante esse horário, se calhar, nenhum trabalhador quer isso”, acrescentando ainda que, “muito provavelmente, muitos preferem ter acesso ao email e ao telemóvel fora do seu horário de trabalho porque isso permite ter algum controlo sobre o que se está a passar e conseguem antecipar a resolução de eventuais problemas. Por exemplo, a maioria não está interessada em estar completamente desligada durante as férias inteiras e, quando chegar ao trabalho, ter vários incêndios para apagar”, salienta ao i.

Contratação coletiva

Mas este assunto já começou a ser debatido em Portugal. O governo já remeteu a questão para a contratação coletiva, mas o Bloco de Esquerda quer uma lei que acabe com o que entende ser uma ilegalidade praticada pela maioria das empresas.

Inês Reis defende, no entanto, que esse direito à desconexão terá de ser feito por uma via que não seja a legislativa. “O direito à desconexão terá de ser feito por outra via porque, se for feito por via legislativa, só vai criar uma obrigação e o mais certo é que as empresas não consigam cumprir, porque não é por estar ali que vai ser mais válido. O direito ao descanso já existe, a conciliação entre a vida profissional e a vida privada também já existe”, refere.

De acordo com a responsável, cabe a cada empresa e a cada grupo de trabalhadores organizar-se para conseguir regular essa desconexão através de regulamentos internos. “Se cada vez que a vida laboral muda se tivesse de ir fazer alterações ao código, não faríamos outra coisa.” E a jurista dá exemplos: “Se as empresas já o fazem com os carros, porque não o fazem com as ferramentas digitais que vão disponibilizando?”, questiona.