Teatro Meridional. “Nós temo-nos uns aos outros e mais nada”

Na celebração dos seus 25 anos, o Meridional tem em curso uma programação que devolve ao teatro um papel decisivo e urgente numa sociedade em que o vínculo entre os homens assenta cada vez mais sobre miragens

Um português, um italiano, um espanhol e outro espanhol… Podia ser o começo de uma anedota dessas com muita estrada e que, entre tantas variações, tornam difícil investigar-lhes a origem. Dessas que, logo após nascerem, arrancam as raízes e vão-se ao gosto de um humor vagabundo. Entre aqueles quatro terá havido conversas em bares e as punchlines todas que a vida vai servindo, mas, há um quarto de século, o encontro em Itália deu-se numa oficina de commedia dell’arte.

Já todos pintámos nalgum painel do nosso imaginário a visão das ancestrais trupes de génese familiar que surgiam de entre as nuvens de pó dos caminhos com o seu espetáculo ambulante metido em carroças, indo de povoação em povoação, desde o século xv, para se misturarem com a vida de cada lugar durante o dia, ganhando os contornos das intrigas locais, e, logo que a noite desabasse, devolverem àquela mesma gente um eco mestiçado nos números ensaiados.

Em 1992, a primeira produção do Teatro Meridional foi “Ki Fatxiamu Noi Kui?” – Que Fazemos Nós Aqui?, num italiano macarrónico -, peça que, depois dos ensaios em Lisboa, teve a sua estreia no festival de Casablanca, em Marrocos, onde ganhou o prémio de melhor espetáculo. Mas a história é a história e o teatro vive para o “aqui e agora”, sublinha Miguel Seabra, o elemento que restou do quarteto fundador. Para deixarmos o que foi e irmos ao que é, o italiano só participou nessa primeira produção e, até 1999, a companhia foi como “um barco ibérico” em que os espetáculos eram bilingues e se persistiu no trilho da tradição teatral mediterrânica, numa escola que explorou outras técnicas além da commedia dell’arte, como as da máscara, do clown e do contador de histórias. Mas em 2000 houve “uma espécie de Tratado de Tordesilhas” e o Meridional, dali em diante, mantém o mundo como horizonte, mas ramifica-se: um em Espanha, com Álvaro Lavín e Julio Salvatierra, e outro em Portugal, com Miguel Seabra e Natália Luiza.

“Nascemos itinerantes, o Teatro Meridional já andou por 20 países dos cinco continentes”, refere Seabra, adiantando que, por mais velhos que estejam os sapatos, a sua fome de estrada não diminuiu, e se na sola destes se misturam hoje areias de todos os lados, o mundo só ficou mais vasto, e o Meridional mantém-se empenhado como antes, continuando a “privilegiar a proximidade com o público, num teatro de ligação direta com ele”. Isto consegue-se pela paixão do detalhe, todos os pormenores que se oferecem a uma visão invisível, algo que se vê sem estar à vista. Seabra exemplifica com o trabalho de Marta Carreiras, responsável pelo espaço cénico e pelos figurinos. Diz-nos como o seu cuidado está para lá do que se pode esperar que a maioria do público possa notar. Mas basta um, e essa surpresa que se guarda como um segredo vale muito num esforço que tem a ambição de fazer de cada apresentação ao público um momento que não ouviu falar de ontem nem de amanhã, um momento inteiro e único, levado até às últimas consequências.

Seabra lembra o AVC que sofreu há 20 anos, uma hora antes de ir para o palco. Mais do que o braço inerte ou “a mão preguiçosa”, como se lhe refere, aquele espetáculo cancelado diz-lhe que não há garantias em relação a um desejo deixado para mais tarde. O palco surge, assim, como altar de um acontecimento que não aceita a condescendência das suas testemunhas. Este ator que encena, faz o desenho de luz das peças e, ao lado de Natália Luiza, dirige a companhia, mantém-se presente em cada fase da construção e apresentação de um espetáculo, e sublinha que o teatro não serve como profissão, pois não pode ser outra coisa senão um modo de vida.

Se sabemos como, de há um bom tempo a esta parte, as palavras estão gastas, difíceis de se deixarem despir da banalidade dos sentidos a que mais são sacrificadas, e se sabemos também que de pouco vale repeti-las, é preciso notar como algumas dobram como sinos, ressoam mais alto, o que só pode acontecer se houver nelas um peso verdadeiro. Vinte e cinco anos depois, no trabalho do Meridional existe a força de algo que se pode tocar, e o toque, como disse Keats, tem a sua memória. O teatro que é necessariamente a arte do encontro entre os homens, esse ar dirimido entre duas, mais bocas, o ar onde as frases entrelaçam sentido e ímpeto, uma arte que, ao deixar-se olhar, é impressionada por esse olhar que assim a transforma.

A proposta do Meridional, neste ano de comemorações, contará todos os meses com reposições, criações originais e acolhimentos. De momento, e até 5 de fevereiro, está em cena a primeira de seis reposições: “Al Pantalone”, um espetáculo que recupera a matriz da commedia dell’arte, com texto de Mário Botequilha (um dos elementos do “Inimigo Público”), e que primeiro foi levado à cena em 2014, tendo sido então distinguido com o Prémio do Público (FIT Almada 2014) e Prémio Nacional da Crítica (Ass. Port. Críticos de Teatro). 

Numa formidável recomposição e reatualização dos elementos tradicionais daquela técnica e dos seus personagens–tipo, o que se consegue é um majestoso exercício de sátira em que uma série de sinais, tiques e modos da nossa classe política são apanhados num espelho que, mais do que o grotesco, alcança um reflexo que é uma perfeita vingança

Tumultuoso nas suas subtilezas, a afinação expressiva, a endiabrada precisão dos atores, com gestos que em si mesmos tecem revelações do caráter, e que são, a um tempo, deliciosos e cruéis, temos aqui um humor vibrante que, mais do que fazer rir, nos embevece, nos maravilha, tornando-nos assim mais despertos para as maquinações destes escroques tão facilmente identificáveis, estes que têm o estribo sobre as nossas misérias, figuras que são enfiadas num frasco e levemente agitadas para deixar claro que aquilo de que suspeitamos está mesmo à vista de todos, como todo o mal cabe numa ilustração que vai muito além da caricatura, conquistando o brilho perverso de certas fábulas negras, e porque rir deles é a melhor forma de partir para a sua destruição. 

O percurso pela memória será feito através da revisitação de um conjunto de espetáculos que, além do sucesso junto do público, captam as principais linhas de atuação artística da companhia. Em novembro irá estrear-se o espetáculo comemorativo destes 25 anos, e Miguel Seabra adianta que este ecoará de algum modo o primeiro espetáculo, fazendo sentido hoje perguntar “Que Fazemos Ainda Nós Aqui?”

Só tendo conseguido um espaço próprio em 2005 – na antiga Galeria da Mitra, em Lisboa, ao Poço do Bispo -, o Meridional era há muito um caso à parte no teatro português pelas inúmeras viagens pelo país e fora de portas. Isso não mudou. Hoje, a larga experiência da companhia sente-se, além de estar refletida pela forma como muitas produções constituem testemunhos vivos da cultura e identidade territorial quer de Portugal e da lusofonia, quer do sul da Europa. Quanto a esta experiência, Miguel Seabra não a reclama como motivo de orgulho, mas reafirma a importância de lhe dar um significado. “É uma forma de aprendizagem constante” que se faz contra os estados de dormência, de abandono. “Temos de ser um eco transformador, artístico. Este final de século xx e início do xxi foi brutal na transformação da humanidade. Esta falsa proximidade da era digital, tendo coisas boas, coloca grandes desafios. No trabalho do Teatro Meridional está sempre implicada uma postura política, um ponto de vista ativo sobre o mundo.”

E o mais fácil é concluir com palavras que, se se distinguem, não é por serem belas, mas porque a experiência as tornou verdadeiras. Mais do que os que as escrevem, isso acontece através daqueles, como Miguel Seabra e Natália Luiza, que lhes dão corpo e vida: “O José Luís Peixoto escreveu connosco o espetáculo ‘À Manhã’ em 2006, numa coprodução com o São Luiz. O texto tinha uma frase muito bonita: ‘Nós temo-nos uns aos outros e mais nada.’ Eu acho que o teatro é um dos polos ainda resistentes onde as pessoas ainda se encontram. Esta força que o teatro encerra, por si só, é brutal, e tem a sua génese na relação humana. O teatro é, por definição, uma atividade humanista que precisa de pessoas dos dois lados.”