Vasco Gato. A poesia como o grande adversário da complacência

Foi no virar do milénio que Vasco Gato começou a publicar. Tinha 22 anos e um prémio levou à sua entrada em cena naquela que era, à época, a mais prestigiada editora de poesia portuguesa, a Assírio & Alvim. Hoje, com 38 anos e 12 livros de poesia, a maioria deles esgotados, aceitou a proposta…

Vasco Gato. A poesia como o grande adversário da complacência

Contra Mim Falo, título da obra poética de Vasco Gato, acaba de chegar às livrarias e é, a par da reunião da obra do poeta brasileiro Eucanaã Ferraz, uma edição que abre boas perspetivas quanto ao projeto de fazer renascer a Plural. A emblemática coleção de poesia criada em 1982 por Vasco Graça Moura, na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, marcou um dos últimos esforços consistentes no apoio do Estado à divulgação da poesia contemporânea, e reaparece num tempo em que a sua falta se fazia sentir mais que nunca, num momento em que a maioria das editoras com expressão no mercado desleixaram a edição de poesia. Quanto a Vasco Gato, a reunião da obra não significa que chegou a hora de fechar para balanço. O arco descrito por esta poesia é desde logo um tanto acidentado, manifestando um elevado grau de inquietação, numa busca que se colocou do lado da errância, ao ponto de o poeta assumir já uma certa vergonha em relação aos primeiros livros.

Nascido em Lisboa em 1978, Vasco Gato frequentou os cursos de Economia e de Filosofia, acabando por abandonar ambos. Durante algum tempo trabalhou como comissário de bordo, até que em 2006 fez da tradução uma ocupação a tempo inteiro.

A estreia no ano 2000, se não foi das mais seguras, viria a ser marcante por dar início a um percurso que hoje coloca Gato como um dos nomes mais firmes da nova poesia portuguesa, essa que não recusa nem vira as costas aos grandes abalos provocados na tradição poética portuguesa no século XX. Poetas que trabalham do lado da radiância da língua, derramando o pote de mel e prosseguindo a sua investigação numa abertura face a influências de todo o mundo e de todas as épocas.

Tem alguma memória do momento em que se deu conta de uma particular sensibilidade às palavras?

Sim, lembro-me de um episódio. Não era um poema inteiro, mas só uma parte, de Álvaro de Campos. Os meus pais tinham uma empresa de t-shirts e estavam a pensar fazer, tanto quanto me lembro, um fotolito com aqueles versos impressos. A minha mãe deu-mos a ler. Ela disse que a expressão da minha cara se alterou quando cheguei ao fim. Deve ter sido o momento em que me apercebi da potência de conjugar palavras.

Lembra-se dos versos?

«Há sem dúvida quem ame o infinito,/ Há sem dúvida quem deseje o impossível,/ Há sem dúvida quem não queira nada —/ Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:/Porque eu amo infinitamente o finito,/ Porque eu desejo impossivelmente o possível,/ Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,/ Ou até se não puder ser…»

Desde então, e especialmente desde que começou a publicar, em 2000, há alguma coisa que sinta ser a sua assinatura, algo que permaneça imutável na sua relação com a poesia?

Há a opinião generalizada de que a principal fruição em arte advém do reconhecimento ou da identificação com a obra. Eu sempre achei que importam mais o desafio e a luta. Aquele anzol que fica, que se te prende à boca e que te puxa. Essa sensação de estar a ser puxado para algo que eu ainda não sou, que não consigo ainda ser ou compreender completamente, julgo que foi sempre o que me cativou. Claro que tens de identificar-te com o anzol ou com aquelas águas, mas esse perder o chão e ser levado é a marca que se manteve.

E quanto à própria experiência da escrita, os rituais a que obriga?

A escrita sempre ocupou o espaço de uma solidão que, à mínima interrupção, gera uma vergonha imensa. Daí que talvez tenha procurado sempre ler e escrever à noite, quando já se é impune, já se está resguardado. À mínima interrupção parece que se quebra o feitiço e esse lado ritual desmorona. Assim, o recato talvez seja a necessidade essencial.

Julgo que a noite tem essa virtude. Também gosto muito da noite enquanto convívio, de estar agitadamente com os outros em desforra. Mas esse valor da noite como território próprio, no qual desenhamos o nosso próprio espaço, sempre foi fundamental, e pode ser muito importante como espaço de sondagem de si, em vez de cair sempre no entretenimento e na distracção. É importante ter esse lado monástico, esse recolhimento em que te permites entrar no ecrã de ti próprio.

Nesta reunião dos seus 12 livros já publicados, sentiu a necessidade de modificar alguma coisa?

Foi um trabalho em que não quis demorar-me, porque é muito difícil lidar com os livros já publicados, sobretudo com os mais antigos. Queria fazer esse trabalho de revisão de modo rápido, não porque não me interesse e não tenha cuidado, mas porque não queria fazer uma purga. Queria que o contacto com os poemas antigos fosse apenas o suficiente para avaliar o seu centro de gravidade. Foi essa a ideia: passar rapidamente, encostar-me a eles e ver se têm força de atracção. Nalguns casos eliminei algumas coisas, mas se acrescentei algo foi muito pontual. Excluí alguns poemas, mas a maior parte das alterações passou pela supressão de títulos, porque comecei a achar que eram desnecessários, bem como alguns versos e adjectivos. Alguns poemas longos ficaram mais curtos, mas isso aconteceu sobretudo nos livros mais antigos. Foi uma viagem complicada, porque é difícil, por um lado, voltar a habitar aquele território, e por outro não queria chegar agora com um x-acto e começar a estraçalhar tudo. Sinto que esse é o desafio que me colocarei no que vier a escrever futuramente. Não interessa tanto suprimir agora aquilo em que terei falhado anteriormente.

Se houvesse uma imposição de mínimos olímpicos na poesia, há algum momento da sua obra que assinarias duas vezes?

A escolher um livro, escolheria o Fera Oculta (Douda Correria, 2014), aquele em que consigo ainda permanecer, sinto que tem o meu sangue e ainda está completamente inscrito em mim. Fora isso, o poema final do Napule (Tea for One, 2011) que fala dos blues… Não sei os versos de cor, mas sei que gosto bastante do ritmo e das imagens desse poema. É um poema que tenho para mim como exemplar.

Este título, Contra Mim Falo, pressupõe a ideia da poesia como o discurso com o qual uma pessoa se condena, ao invés de procurar salvar-se?

Claramente. Espero que esse fogo se mantenha, o da poesia como o grande adversário da complacência. É fácil não ter complacência com o mundo, com o estado das coisas, mas depois seres bastante benevolente contigo próprio. O título pode estender-se a essa investigação que deves sempre manter, um estado de vigilância e confronto contigo mesmo. Na verdade, nasceu da ideia de reunir todos os livros, que não era algo que eu desejasse propriamente, sabendo que ia ter de lidar com muitas coisas que, neste momento, me põem a falar contra mim, mas, num sentido mais lato, creio que sempre foi essa a matriz.

Há, na poesia, mais do que uma preocupação estilística, uma preocupação ética?

Sim, sim. Isso lembra-me aqueles versos de Blaise Cendrars que qualificam o mau poeta como aquele que não sabe ir até ao fim, que fica aquém de um compromisso mais vital e que extravasa a escrita. A escrita pode dar-nos ressonâncias disso, radiografias, mas nesses versos julgo que está manifesto um programa pessoal, o de uma existência atenta ao mundo, a uma exigência do humano. E isso pode passar pela escrita ou não. Esta pode apresentar as réplicas e as ressonâncias dessa luta e desse empenho, que se traduz numa ética: tentar estar presente nas vivências, no questionamento das condições do nosso tempo.

Esteve perto de abdicar de algum dos livros aqui reunidos?

Sim. O Imo. Alguns podiam claramente ter saído. Acho que tirei alguns, mas podia facilmente deixar cair boa parte dos poemas dos primeiros anos.

Com esta reunião dos seus livros, sentiu o risco da reiteração em relação à sua poesia? Sentiu que ela poderia perder alguma capacidade de surpresa por estar tão cercada de si mesma?

É possível. Mas isso não me preocupou por aí além. A razão que me levou a fazer esta reunião foi o facto de quase todos os livros estarem esgotados. A intenção foi disponibilizá-los. Agora não sei qual vai ser o resultado disto. Já não é tempo para recuar. Já fizeste, publicaste, assume-o. Mesmo aquilo que sinto como fraco em mim, certos momentos de vergonha, existe e está aí. Se voltar a fazer algo deste género, posso talvez fazer um outro exercício, tentar depurar e destilar. Para já convivo melhor comigo evitando esquartejar o que já fiz. Preferi apenas entregar uma coisa que já não estava disponível.

Alguma vez pensa no que gostaria de deixar como obra?

Não. Quero afastar-me de tudo o que seja um vestígio de consagração. Não tenho programa para o futuro, nem tenho cadeira onde me sentar no passado. Só o presente conta e vou escrever, se escrever, apenas porque isso de alguma forma se impõe. Acho que foi W.H. Auden que escreveu que o poeta, quando termina um poema, pára de escrever talvez para sempre. Penso que o foco deve manter-se nesse horizonte escuro em relação ao qual não sabemos o que esperar.

Há quanto tempo retira o sustento do seu trabalho enquanto tradutor?

Há cerca de 10 anos.

Trabalha com o italiano, o espanhol, o inglês. Também traduz poemas a partir do alemão e do francês… Descobriu alguma coisa sobre a língua portuguesa ao frequentar outras?

É algo em que reparo diariamente. Na tradução de romances, quando os problemas se põem mais na língua de origem, na forma como tentas transmitir a expressão eficaz e fiel de uma ideia, atentas mais na estrutura e plasticidade da língua de partida. Na tradução de poesia acontece mais o contrário. É claro que também tens de tentar perceber o horizonte da proposta inicial, mas depois trata-se de tentar encontrar o modo que a língua portuguesa tem de dizer aquilo.

E estando de algum modo preso ao destino desta língua, sente às vezes inveja de outras, das possibilidades que oferecem?

Sim, sim, especialmente na comparação com o inglês, que tem uma maneira mais fina de nomear as coisas, as modalidades do andar, do rir, do sorrir. Parece que há sempre um verbo ou adjectivo que é mais preciso para alcançar o efeito desejado. O inglês tem a facilidade de haver apenas uma diferença de modo entre um substantivo, um adjectivo ou um verbo. Há o acordo tácito entre os falantes de que certa palavra é conversível em verbo. É mais fácil inovar, marcar uma nuance muito condensada. Talvez tenha que ver com o lado mais enxuto da língua. O português talvez exija uma renovação constante da filigrana, que não está tão trabalhada na linguagem coloquial.

Em português parece ser muito evidente a diferença entre os registos do discurso mais popular ou erudito. Há palavras que são logo à partida tomadas como sinais de uma certa erudição. Falar ricamente é tomado como uma forma de pedantismo.

Parece-me que, mesmo no discurso mais coloquial, em inglês há trejeitos de aparente erudição, que não o são, pois resultam simplesmente de um conjunto de usos linguísticos que transmitem uma certa competência de expressão que enriquece a língua. Na nossa língua, os desníveis no discurso são imediatamente perceptíveis, evidenciando o declive entre as formas mais simples e as mais elaboradas. Nos usos quotidianos, valoriza-se uma linguagem pragmática, o que enriquece pouco a língua.

Nos últimos tempos tem traduzido muita poesia. Há um lado mais sedutor na tradução do que na escrita de poesia?

Sim. Há o próprio deslumbramento de andar a folhear e ser de repente apanhado por qualquer coisa. Já há o ponto de partida do fascínio e o desafio é só – é só? – transpô-lo, fazer com que mantenha a palpitação. Na escrita tens de andar à procura de um deslumbramento ou de uma inquietação. Às vezes penso que já traduzi muito, julgo que já não vou encontrar muitos poemas… E de repente, no último ano, depois de ter reunido uma série de poemas traduzidos, já tenho mais cento e tal páginas de poemas.  Não vou dizer que é inesgotável, mas é fascinante essa promessa renovada de que vais encontrar uma coisa que te vai derrubar. É esse o gozo do tradutor, neste caso, o saber que andam por aí à espera que tropeces neles, ou que alguém tos faça chegar. Que vais ter outra vez esse momento de descoberta.

Traduz prosa porque lhe pagam e traduz poesia, eventualmente, porque não lhe pagam para isso.

(Risos) Sim, é mais ou menos isso.

E consegue traçar uma fronteira entre prosa e poesia?

Aceitando esses termos como base, diria que o discurso poético, por mais enérgico, veemente, truculento ou imponente, pressupõe sempre um fio em volta daquelas palavras, um fio de dúvida acerca de quem está a fazer aquilo. É algo que eu não sinto tanto na prosa, essa fragilidade, por mais escondida que seja, por mais vencida que seja na sua expressão, mas que está lá. Mas se calhar isto aplica-se aos melhores casos de poesia e aos melhores casos de prosa. Para mim, é importante manter o rabo do gato de fora, a partir do qual nos damos conta de que o gajo não sabe muito bem como é que está a fazer aquilo.

Considera que o romance se tem reinventado, ou, como se diz, vive uma crise, converteu-se num género acomodado?

Tenho alguma dificuldade em ter uma leitura sistemática, até porque nunca fui um grande leitor de ficção e de romances, mas se houve uma experiência recente de uma obra que pôs em cheque esses dispositivos e o que quer que possa estar já cristalizado, é o livro que traduzi recentemente do Juan Gabriel Vásquez (A Forma das Ruínas, Alfaguara, 2017). Para mim, como tradutor, foi desarmante. Enfeitiçou-me pelo modo como está na fronteira da investigação histórica e da ficção, com personagens reais, a identificação parcial entre narrador e autor. Vive num tal encaixe/desencaixe com a realidade e com o autor que não sei se aquilo foi premeditado ou se o autor simplesmente embarcou por ali… Mas foi um livro que me ficou como um boicote a esses dispositivos que se multiplicam pelos livros que circulam pelo mundo fora … Há muito esse bater na mesma tecla. Senti neste livro um distanciamento em relação a tudo isso.

Quanto às tendências da poesia, sente alguma predilecção por alguma direcção em particular?

Não me coibindo de achar que isto é bom e aquilo é mau, parece-me que um dos aspectos felizes na poesia é o facto de poderem coexistir muitas expressões alternativas. É claro que o serem publicadas muitas coisas leva a um abaixamento do nível geral, mas acho que, apesar disso, quem tiver capacidade para atacar o bicho vai sempre fazê-lo.

Sente que os poetas de hoje já não procuram as grandes sínteses, mas sim a originalidade?

Há poetas que concentram uma quantidade imensa de bons poemas, mas para mim a verdadeira marca da poesia prende-se com os bons poemas que encontramos na obra daqueles que só tenham escrito talvez uns poucos poemas, ou que só tenham escrito três bons poemas numa obra extensa. O que importa é que esses três bons poemas não se percam. Se coligíssemos num volume os melhores poemas de uma tradição e a entregássemos a alguém que não lhe pertencesse, que importaria o nome dos autores? Para se ter a experiência da leitura daqueles poemas e tomar o pulso àquela energia talvez o nome dos autores não interesse para nada. Essa é uma tentação dos últimos séculos, a ideia do autor. Prefiro pensar no que cada poema representa como desafio em si mesmo, como acto de interpelação. Continuo a achar que, tanto como leitor quanto como escritor, é nos poemas, singularmente, que nos devemos focar.

Há algum traço na experiência da poesia que lhe pareça específico a ela?

Julgo que a economia de meios. Chegar ao outro dando o número mínimo de passos. Nem tudo tem de obedecer a este preceito, mas os momentos felizes de um poema ou de um verso, para mim, têm essa característica, a de alguém que chegou até mim muito rapidamente.

Os seus leitores costumam associá-lo a Herberto Helder, Al Berto ou mesmo Luís Miguel Nava. Consegue identificar a presença de outras vozes na sua poesia?

Sim. Há casos em que sinto essas presenças ao revisitar certos poemas – coisa que não faço muito, mas fui agora obrigado a fazer.  Consigo descortinar que este ou aquele poema tem alguma motivação naquilo que lia num determinado período. Esse é um lado bastante pacífico. Depois há outros casos em que sinto nitidamente a contaminação de autores que foram importantes e que acabei por seguir. Aí já é mais constrangedor, mas também não posso escamoteá-lo. Podia optar pela purga, e retirar tudo o que soasse a outros, mas não me importo que a minha vergonha por ter estado, em certos momentos, próximo da língua deste ou daquele, fique também presente nestas páginas

Consegue apontar a presença que se tornou mais perigosa, aquela pela qual passou mais perigosamente perto?

Herberto Helder. Acho que era a carga de violência na sua escrita. Enquanto leitor, aquela forma avassaladora de te encostar à parede, e não ficar contente com isso, sufocar-te e continuar a destruir-te de uma forma que acaba por ser agradável, e que te leva a entregares-te a essa violência, foi o que mais me cativou. Num certo período julgo que estive na digestão ou na congestão disso.

Até que ponto estaria disponível para ser um poeta popular?

Gosto de exercer alguma parcimónia no aparecer. Quero viver bem comigo no sentido de não me esquecer de recusar coisas. Sinto-me bastante desconfortável com este metatexto, o estar a falar de coisas de que de algum modo já falei. Não convivo bem com isso, mas também há momentos em que se calhar isto também me vai interpelar no sentido de fazer algo diferente. Não quero fechar completamente as portas, mas não me deixaria levar numa tournée. (Risos)

O seu percurso tem algo de particular no sentido de ser bastante disseminado por vários projectos editoriais. Foi uma decisão sua?

Não foi uma decisão. Publiquei o primeiro livro na Assírio e quando surgiu o segundo houve um contratempo. Tratava-se de uma editora em reinvenção. Ficou no ar a ideia de que, se esperasse um ano, poderiam vir a editá-lo, mas o Jorge Reis-Sá, das Quasi, disse-me que tinha gostado do primeiro livro e que eu podia publicar com eles. Foi algo um pouco precipitado, tal como o primeiro livro. Há inocência no primeiro, quando não sabes bem ao que vais, e depois houve a inocência de tentar seguir noutra direcção, com o segundo. Uma vez dado esse passo fora – porque a Assírio & Alvim seria uma casa em que eu ficaria -, comecei a achar interessante esse desafio de ter de partir do zero. Um pouco como com o poema. Ganhei gosto a essa ideia de peregrinar.

Ainda apanhou o período de euforia da edição. As Quasi marcaram o auge dessa euforia…

Mas parece-me que havia então poucas editoras, ainda que houvesse mais leitores. Não sei, em termos de títulos publicados, quão diferente seria comparando com os dias de hoje, mas havia poucas editoras e de repente surgiram várias. O mais marcante de lá para cá foi a fragmentação. Há uma fragmentação das editoras, dos públicos de leitores, houve umas que apanharam este público, outras aquele… A coisa foi sendo fragmentada até ao momento actual, em que existe uma diversidade de editoras e de públicos de poesia.

O seu primeiro editor foi Manuel Hermínio Monteiro. Como foi a experiência de ser editado por ele?

Não retive nada de particular do meu contacto com ele. O que me ficou foi a figura que seguia pelas crónicas, os textos, tudo o que fez como editor. No trato com ele tudo se passou de forma bastante sucinta. Lembro-me de estar impressionado com aquele catálogo imenso, reconhecer-lhe uma enorme experiência, mas tudo o que me disse foi para eu ir para a casa e decidir se era mesmo aquilo [Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, 2000] o que eu queria publicar. Ou seja, não fez uso de tudo o que tinha atrás de si para dar algumas indicações a um gajo que se estava a estrear. Fez-me inteiramente responsável pelo livro que estávamos a fazer. Terei estado duas vezes com ele e nunca muito tempo. Não posso dizer que tenha travado um conhecimento pessoal.

E noutras relações com editores, houve alguma experiência marcante?

Há o caso oposto, o de Vítor Silva Tavares. Lembro-me de me ter chamado para vermos o livro que íamos editar [A Prisão e Paixão de Egon Schiele, &etc, 2005]. Quando cheguei, tinha o livro todo anotado, rabiscado, e fez uma leitura, não digo integral, mas foi passando as páginas e apontando uma série de coisas em que tropeçou. Perguntava-me porque é que tinha escrito isto ou aquilo assim e tomava esses esclarecimentos como ponto de partida para aquelas suas imensas histórias. Esse modo de ancorar as coisas, de não ser tudo esvoaçante, foi muito importante para mim. Gostei muito desse confronto com alguém que não deixava passar as coisas em claro. O Manuel Hermínio Monteiro queria ter a certeza de que era aquele o livro que eu queria publicar, o Vitor também, mas de outra forma, indo ao meu encontro e chocando comigo para ver se aguentava ou se não tinha um sustento para as coisas que escrevia. Mas nunca tive uma experiência má.

Muitos agentes de opinião pretendem realçar situações como a eleição de Trump como significando algo de mais profundo sobre o nosso tempo. Há, em termos concretos e quotidianos, algo que sinta que tem vindo a mudar?

Vou usar uma imagem de Trump: os muros. Estamos a tornar-nos mais acérrimos defensores do nosso quintal. Prevalece a ideia de que, perante as contradições, os abusos e a violência do mundo, podemos pelo menos ficar alheados neste pequeno quintal, defendendo-o com unhas e dentes de tudo o que possa ameaçá-lo, mesmo que ele possa já estar ameaçado pelo que lhe é inerente. Mesmo que estejas já depauperado e oco porque, em muitos sentidos, já te levaram tudo, proteges o teu pequeno território. Penso que essas células estão a ficar cada vez mais rígidas e impermeáveis no contacto umas com as outras.

Isso reflecte-se de alguma forma no campo cultural?

Paradoxalmente, este é um tempo em que acontece muita coisa, em que é possível frequentar muita coisa. Porém, julgo que se assiste a uma decadência do próprio espectador, do fruidor, decadência essa que passa pela não implicação naquilo que está a ver, naquilo que visita. Essa é uma doença que alastra, sendo possível haver salas cheias e eventos altamente elogiados e retumbantes, mas com gente que não esteve propriamente lá. São números que enchem casas, mas que não representam uma soma de gente. Esse é o lado assustador. A nossa cultura seguiu esse rumo, até as nossas práticas de convivência sugerem essa forma de fruição, no domínio da cultura ou da arte, sem rituais em que participemos para sermos afectados e transformados, com certos preceitos e linguagens. O ritual actual é automático: vais buscar a hóstia, sais e a partir do momento em que abandonas essa encenação sacralizadora até podes vomitar o pão, pois já não interessa.

Considera que há alguma relação entre a poesia e a tecnologia?

Deu-se o caso de a tecnologia, a partir de determinado ponto, ter começado a valer-se do ser humano para si própria. Isso num poema não acontece. Sendo um veículo, claro que é usado como transporte, mas devolve-nos a nós mesmos. Quanto à tecnologia, e em particular quanto à Internet, o que acontece é que parece que és tu que estás a pilotar o veículo, mas na verdade é este que te está a usar para certos fins e talvez até para garantir a sua própria vida. A experiência não é assim tão diferente, mas no poema há a ressaca, tens de regressar a ti. Na tecnologia parece-me que isso acontece cada vez menos. Tu és o usado, o despossuído no meio do arraial tecnológico.

Quais as consequências, para escritores e leitores, da prevalência da lógica das redes sociais e da partilha?

Acho que há uma acção brutal de conjugação de vidas desinspiradas, dos nossos trabalhos desinspirados, com uma bandeja que vai passando nesta espécie de festa-cocktail e que leva uns copos de shots, que podem ser as fotografias no Facebook com dois versos a servir de legenda, coisas que estão ali à mão, e de repente tudo isso anima um bocadinho mais um desfile que não se sabe do quê nem para quê. Mas dá para um pequeno alento que passa na garganta. Possivelmente, essas sensibilidadezinhas que se desenvolvem são também o reflexo do que somos, o sermos cada vez mais pessoazinhas. Também somos hoje gente apenas de raspão. E tudo se conjuga para que essas manifestações tenham público, tenham muito público. Por outro lado, nunca houve um momento áureo no caso da poesia quanto ao volume de leitores. Nem sei se será esse o propósito, de repente ter um exército de grandes amantes de poesia. Como é que seria esse mundo? (Risos) Tendo a achar cada vez mais que o teatro do mundo precisa dos gajos que sentem pouco, devagarinho, dos gajos que sentem muito, dos filhos da puta, do gajo que se atira para a água para salvar o esquilo que está numa enrascada… Só aos nossos olhos é que há coisas dispensáveis. Na trituradora do mundo tudo é óptimo para ser processado, para correr e acabar. Tudo é uma vantagem.

Um texto seu, escrito com esse propósito, foi recentemente levado à cena. Aprendeu alguma coisa sobre si ou a sua escrita vendo a peça, ouvindo as palavras ditas por outra pessoa?

Inicialmente, foi estranho ouvir aquilo como se não tivesse sido eu a escrevê-lo, como aconteceu na primeira vez em que vi a peça. Mesmo quando alguém lê um poema meu, tenho sempre aquela sensação de já estar em luta comigo, sem estar propriamente a ouvir o que a pessoa está a dizer. Ali, talvez pelo traço cénico, por haver espaço, corpos e vozes, por estar tudo em acção, consegui ter esse distanciamento e ouvir o texto como se não tivesse sido eu a escrevê-lo. Foi algo que me agradou particularmente neste processo. Na segunda vez em que vi a peça, a experiência foi diferente, mais próxima da tesoura, de pensar que podia cortar aqui, mudar aquilo… Já estava outra vez com os olhos da análise, na oficina, a pensar como é que podia, integrando todos os dados da cena, do tempo, etc., fazer com que as palavras fossem mais económicas na relação com o que estava a acontecer ali.

Há jovens poetas a enviar-lhe os seus poemas e a pedirem-lhe um conselho… Quais seriam os princípios essenciais, hoje, em poesia?

Diria um: o gostar da derrota. Estar disposto a conviver e a aprender a conviver com a derrota. Para mim é estrutural na experiência da escrita. Falo da derrota enquanto horizonte, sabes à partida que tudo vai falhar e, ao mesmo tempo, deves conseguir que isso seja libertador. Seja pela possibilidade de mudar, de escrever outras coisas e de outra maneira, seja também por não entrares num auto-embevecimento, num imobilismo que te esmaga à partida. A via possível para continuar nesta experiência da escrita é ter a derrota como garantida e cavalgar nela. Estou a lembrar-me de uma citação de Camus que diz que a angústia não pode ser encarada como fim mas como ponto de partida. Essa ideia existencialista de que a morte ou o fim não servem para derrubar-te, mas para te fazer rastejar. Sabes que estás no chão, agora rasteja.