Paris > Sarah > Lisboa. A caminho do excesso

A partir do foyer, e durante 50 minutos, Beatriz Batarda conduz um percurso pelo São Luiz Teatro Municipal, acompanhada pelo texto criado por Miguel Loureiro e inspirado na mítica Sarah Bernhardt

Um foco no foyer do São Luiz faz sobressair a placa que comemora a vez em que Sarah Bernhardt actuou nesta casa, em 1899. Ali mesmo tem início o espectáculo, aquilo que pode ser descrito como uma tentativa séria de obter um vislumbre dela. Não temos uma hora para a mulher que levou Jean Cocteau a cunhar a expressão “monstro sagrado”, mas temos minutos longos, abrindo um poço sobre a memória e o além e tirando lá do fundo a água de um reflexo, através de uma encenação em planos sequência, alguns formidáveis, que despertam das sombras os espaços de ligação daquele teatro. Tomamos parte numa divagação em torno do penetrante enigma da actriz, aquela que tirou mais verdade das suas mentiras, e que terá ido tão longe que, mais do que espantar, convertia. Tantos não puderam resistir-lhe. D.H. Lawrence viu-a uma vez e chamou-lhe “a encarnação da emoção violenta, aquela capaz de libertar as paixões primitivas da mulher”. Na peça que hoje estreia, tornamo-nos sensíveis às dores de parto que buscam devolver um mito à carne, aos rituais e gestos que compõem uma intimidade. Beatriz Batarda é a rede e a arma neste cerco idealizado por Miguel Loureiro, é um corpo apontado numa presteza ameaçadora. Nada é fácil, nada procura ser óbvio, nada está ganho à partida. O i falou com o encenador e a actriz sobre o desafio de invocar a mais adorada actriz de sempre.

Quando recebeu o convite para escrever esta peça, quais foram os seus maiores receios?
Miguel Loureiro: A primeira dificuldade foi a escrita, porque sou actor e encenador, mas só há pouco tempo comecei a exercitar uma escrita para ser ouvida. Não diria cénica. Esta é ainda um acordo entre o registo biográfico e o documental, acrescido de inquietações minhas na relação com o teatro. Portanto, o meu primeiro receio foi a questão de saber até que ponto a escrita podia corresponder ao desafio que me foi feito. A parte da direcção de actores, nessa sinto-me confortável, e pensei que o universo referencial e metonímico eu conseguiria montar. Não sabia era se a escrita saberia fazer uma passagem que não comprometesse em demasia a figura. Não queria abusar do que é a imagem da Sarah Bernhardt. Ela pertence a um mito e queria respeitá-lo, desde logo porque gosto do que ela representa. Tentei andar de volta dela através de fantasias anacrónicas, sendo fiel às preocupações dela, enquanto figura da viragem do século.

Tendo feito um grande trabalho de pesquisa sobre ela, o que foi que mais o fascinou?
M.L.: O que ela conta sobre si na famosa autobiografia, “Ma Doble Vie”. Tem ainda um livro técnico e os de contos, há aquele livro fantástico em que conta a aventura da viagem que fez de balão. Tem as peças de teatro: horríveis, pastelões românticos que ela escreveu e que não se aguentam… Mas gosto de como ela inflaciona a sua própria imagem. Gosta que seja uma mentirosa maravilhosa. Gostava de se projectar como heroína e mártir, como alguém que subiu a pulso, vindo de baixo. Os biógrafos dizem que não é tanto assim, encontram muitas mentiras, e referem que ela era até conhecida pelos amigos como uma mentirosa compulsiva. Talvez porque quisesse aceder a um estado existencial mais elevado. Ela não se contentava com este mundo e, por isso, para mim a denúncia das mentiras dela não surgem em detrimento dela, mas denotam uma construção que me fascina. Gosto de pessoas em que também há essa mentira virada para o excesso. O que ela é é sempre um excesso em construção. As pessoas hoje desconfiam, preferem o que é genuíno, mais puro e verdadeiro, mais simples, sem o artíficio. Pois eu tenho um fascínio imenso pelo artíficio e pelas camadas sobrepostas de artíficio. A minha Sarah é essa do artíficio e da ocultação. Para mim ela é uma espécie de eclipse lunar, está sempre em ocultação. E quando decide revelar-se é sempre como rosa florida ao extremo. Depois é difícil estabelecer uma fronteira entre o que sabemos da sua vida e aquilo que já diz respeito ao espectáculo.

 
A primeira imagem que temos dela é a de uma mulher obcecada pelo teatro e pelo seu trabalho. De que modo isso corresponde à realidade?
M.L.: A primeira coisa na vida dela era o teatro. Se ela era a artista por excelência, também assumia todos os outros cargos no teatro que ela dirigia, o Théâtre des Nations, que depois ficou Théâtre Sarah Bernhardt, nome depois suprimido pelos nazis, passando a Théâtre de la Ville. Nós conhecemos também aqui em Portugal alguns exemplos assim. Pessoas daquelas que companhias que surgiram a seguir ao 25 de Abril e votaram a sua vida a um teatro, mal de lá saíam, muitas vezes com grandes custos para a vida pessoal. Como acontecia com as enfermeiras e as professoras. Hoje já não é tanto assim, mas no ideal de Sarah, que era uma romântica, havia esta entrega absoluta… Quase de morte.

Há algumas reservas dela em relação ao teatro moderno. Gostava de saber em que sentido é que acompanham ou até encarnam algumas dessas reservas.
M.L.: Dentro dos padrões em que desenvolveu a sua arte, nesse quadro estético tão definido que é o romantismo, com as divas, as heroínas trágicas… Ela preferia o lado escuro das peças. Diziam que ela era especialista nas longas agonias. Escolhia o repertório buscando uma morte em que pudesse brilhar em estado de agonia. Foi exímia nisso, na forma de estetizar um texto através do canto, da métrica, do modo como estudava a enunciação. Não revela as preocupações que surjem no século XX entre os actores, com a construção da personagem completa – com a psique, com o corpo, com tudo ligado. Ela era outra coisa. Penso que nela o corpo se arrastava atrás do texto. Desenvolveu uma tal mestria na sua abordagem que se tornou uma espécie de flor de sortilégio. Mesmo os mais cépticos, os espíritos mais avisados para as modernidades do teatro ficavam boquiabertos com ela. Podiam ser coisas que já se tinham convencido de que não gostavam mas depois as barreiras caíam, porque ela puxava-os para si de uma forma tão encantatória que era como um feitiço. Atrizes contemporâneas dela usavam uma técnica não tão inchada em cena, mais próximo daquilo a que chamamos hoje de bom gosto, contenção. Na Sarah não, ela estava sempre a caminho do excesso. Mas sabia fazê-lo. Porque é um caminho perigoso e a maior parte de nós quando vamos por aí estatelamo-nos. 
B.B.: Tu [estatelas-te].
M.L.: (Risos) Estou a falar de um modo geral, não da Beatriz. Há nomes para isso no teatro. O canastrão é o que faz normalmente sempre o mesmo papel, mas o cabotino é que faz tudo de um modo inchado. 
BB.: Agora diz-se overacting.
M.L.: Mas a Sarah tinha sempre espíritos bastante críticos à volta dela… O [Victorien] Sardou, o [Robert de] Montesquiou, o Victor Hugo. Estavam avisados, eram homens brilhantes, mas todos eles se prostraram aos pés dela. E mesmo figuras já do século XX, gente mais jovem, com um gosto refinado. Iam vê-la não para testemunhar algo mais freak, como nós fizemos com a Natália de Andrade. Ela elevava a sua arte ao limite. Depois podíamos ou não aderir ao código, mas isso é como nós hoje vermos um filme do Ozu, do Kurosawa ou do Mizoguchi… Aquilo custa-nos, oferece resistência, mas a partir do momento em que dominamos o vocabulário nipónico do meio do século, o confronto entre a modernidade da tradição nipónica e a do cinema, depois tudo fluí. Nela também. A audiência dela não eram meros curiosos, eram devotos. Seguiam-na, vendiam pertences para comprar os bilhetes. Esta mulher movia paixões. Onde estivesse iam ter com ela. Era uma espécie de peregrinação ao templo.

E em relação às suas reservas?
Tenho algumas reticências quanto à prática e à escrita de algum teatro contemporâneo. Não quer dizer que seja conservador em relação às propostas mais inovadoras, pode até ser em relação a coisas mais sedimentadas e que se continuam a fazer sem serem questionadas. A Sarah tinha as suas preferências. Ela morre em 1923, portanto conheceu os ecos do Teatro de Arte de Moscovo, porventura também a escrita de Strindberg e Ibsen para um teatro realista, mas continuou a fazer Sardou e Musset até ao fim da vida dela. Isso representa uma opção. Ao contrário do modus vivendi dela, em que era uma revolucionária, a maneira de encarar a arte era prosseguir naquilo em que era boa. Não direi que era conservadora, mas se sentia que era boa naquilo o que quis foi levá-lo até ao fim.

E para a Beatriz, enquanto actriz, como é que foi este encontro com uma figura de excessos?
B.B.: Penso que também sou uma actriz de excessos. Aqui tentei aproximar-me o mais possível daquilo que era a fantasia do Miguel baseada nas impressões que ele foi acumulando ao construir este texto, juntando excertos de textos do Cocteau, dela própria e outros. Não passei o mesmo tempo que o Miguel a dedicar-me a esta criatura fascinante. Mas acabei por ler duas biografias, uma mais inflacionada, outra mais engraçada e actual, além de alguns textos que estivemos a ler, crónicas e artigos de jornalismo sobre as visitas dela a Portugal. Percebes ao ler estes textos que é uma personalidade grandiosa quanto mais não seja pela capacidade de agregar multidões, bem como o investimento financeiro no trabalho dela, com várias carruagens de comboio alugadas para o seu séquito e as equipas de trinta pessoas que têm de ser alojadas, com digressões que se estendiam ao longo de anos, chegando ao ponto de comprar o seu próprio teatro, assumindo-se até como empresária. Acho tudo isto incrível, mais ainda numa época em que a comunicação era feita por carta e pelos jornais. Não se compara aos actuais fenómenos de popularidade que explodem graças aos novos meios de comunicação. Tudo o que lhe aconteceu é incrível para uma pessoa do teatro e, ainda por cima, uma mulher. Não que eu esteja a defender um ideal feminista, mas porque é realmente admirável. As mulheres não se evidenciam desta maneira e com esta versatilidade, como se fosse um artista renascentista, com tanta variedade na sua forma de expressão artística.

E em relação à forma como a encarnou?
Tentámos procurar uma espécie de curva. O texto também nos leva a isso… Começas a pensar no que estás a dizer e com esta mulher a defender a condensação do gesto, o jogo da entoação, da respiração, começas tu próprio como actor inevitavelmente a procurá-lo, parece que o corpo vai lá sozinho. Vai procurar essa relação com a imagem e com o código. 
Este espectáculo começou em Paris, agora chega a Lisboa. Que transformação sofreu nesta viagem?
Em Paris era uma leitura encenada. O que tinha de pitoresco é que foi feita no camarim que se supõe que tenha sido o da Sarah. Tem pertences dela, como um sapatinho do filho, Maurice… O filho morre cinco anos depois dela. Com uma mãe que é uma monstruosidade destas ele sempre dependeu dela. Era viciado no jogo, viciado em ópio. Ela morreu, deixou de haver dinheiro para os vícios e ele morre pouco depois. 
B.B.: De uma overdose.
M.L.: A Sarah tinha um iman magnífico que atraía uma corte de personagens que a cercavam, dependiam dela alguns, dos jantares, sendo que ela também dependia de alguns deles, condes e outras figuras endinheiradas. Era um salão, e ela, sendo saudosista e mitómana…
B.B.: Filha de cortesã, ela própria cortesã numa época da sua vida.
M.L.: Ela já tinha iniciado os seus estudos, penso que já se tinha estreado na Comédie-Française, quando interrompe e vive três anos como cortesã. Depois volta.

E às tantas aprendeu boxe?
M.L: Sim, aprendeu. Era também louca por animais. Quando chegou a Lisboa, à estação do Rossio, trazia cinco ou seis cães, tinha um rapaz negro cuja tarefa era tomar conta deles, e isso na época era mais uma das suas excentricidades. Mas além dos cães, em casa tinha cobras…
B.B: Tinha crocodilos, tinha tigres…
M.L.: Tinha tudo. Uma vez quis trazer um elefante de África. Foi ao Congo belga e houve um chefe local… Eles caíam aos pé dela, e não percebiam nada de francês… Esse chefe era indígena, verso alexandrino, Racine, e eles adoravam, tal como os índios nos EUA, ela actuou em reservas índias, como o fez para os cowboys… Isso até está retratado de uma forma caricatural mas muito fidedigna num livro de banda desenhada do Lucky Luke e que dá conta da primeira tournée dela pelos EUA. Há um momento em que um espertalhaço, um homem de negócios e armador, depois de um dos barcos dele ter caçado uma baleia, num golpe de publicidade, com a baleia em terra, morta, põe uma escada para a Sarah subir e tiram-lhe uma fotografia. Meses depois, com a digressão ainda a decorrer, aparece em todos os jornais o anúncio a dizer que a Sarah Bernhardt prefere os espartilhos de baleia, com a fotografia dela em cima da baleia. Furiosa ela quis ser recompensada e o tal homem de negócios ofereceu-lhe uma baleia para reparar a ofensa. Ela mandou juntar mais uma carruagem ao comboio, tirou-lhe a parte superior, ficando só a plataforma, e levou a carcaça da baleia a apodrecer debaixo do sol do faroeste, e ainda mandava cortar bifes para a companhia… Ela vai experimentando antes dos outros. Dizendo a si que, se calhar, tudo é possível, até levar uma baleia pelo faroeste.