Distúrbios alimentares. Fazer do Instagram um consultório

As redes sociais estão a ser usadas como diário por quem recupera de um distúrbio alimentar. Uma tendência que os psicólogos não recomendam 

Sofia tinha de andar mais, mesmo com supermercados mais próximos, só porque no Lidl as bolachas tinham menos duas calorias. Ao lanche conseguia a proeza de cortar a meio uma fatia de pão de forma, para enganar os pais, convencendo-os de que estava a comer uma sandes de duas fatias. Com estes truques chegou aos 41 quilos, bem longe dos 55 que tinha quando era “normal”, palavra que usa para descrever a fase em que comia de tudo sempre que lhe apetecia. “Nunca fui gorda nem nunca quis emagrecer. Foi tudo uma questão de controlo”, conta ao i. 

Quando, há quatro anos, os pais se separaram, Sofia sentiu falta das regras e do dia-a-dia que a mantinham estável e passou essa necessidade de ter tudo sob controlo para a comida. “Podia ter-me dado para as limpezas, mas não”, brinca.

Em pouco tempo, a vida resumia-se a números: os da balança, os dos rótulos dos produtos e os das contas de cabeça que se obrigava a fazer para saber quantas calorias tinha tudo o que metia à boca. Mais tarde, já durante a recuperação, passou por uma fase de compulsão alimentar, e foi nessa altura que decidiu abrir uma conta no Instagram que utiliza de forma anónima para um registo da sua atividade diária, com fotos das refeições e das idas ao ginásio. “Publicar aquilo que como é uma forma de ter noção do que estou a ingerir, diminuindo assim as fases de restrição e de gula”, admite. 

Apesar do esforço, sabe que ainda não está curada e isso vê-se nos comentários de quem a segue. “Comer pão, massa e arroz ainda é muito difícil”, conta, e, por isso, cada vez que publica um prato pouco cheio ou apenas com vegetais, já sabe que conta com o julgamento externo. “Quem me segue de perto vai dando dicas e chama-me a atenção para o que estou a fazer mal.” Para Sofia, esta longa lista de likes, comentários e críticas são mais importantes do que uma ida ao psicólogo. “Os médicos têm a teoria mas não passam pela doença, enquanto nós sabemos o que o outro está a sentir e estamos mais alerta para comportamentos menos saudáveis”, conclui.

Médico vs.redes sociais Se Sofia vê mais resultados com aquilo que publica nas redes sociais do que com as idas ao médico, a psiquiatra Dulce Bouça tem uma explicação: “Maus profissionais.” A especialista em distúrbios alimentares acredita que esta é uma doença “muito íntima” e que deve ser tratada numa relação terapêutica e familiar. “Se há necessidade de expor a vida no Instagram é porque o médico não está a fazer um bom trabalho”, defende.

Apesar de ter uma posição menos radical, a psiquiatra Isabel Brandão também não é defensora desta partilha pública. “Estamos a falar de pessoas doentes”, faz questão de frisar. A chefe da unidade de psiquiatria jovem e familiar do Hospital de São João acredita que manter um registo diário só vem reforçar a opção que tomam de comer pratos pouco calóricos e, por isso, quando confrontada com uma doente que pretende iniciar uma conta do género no Instagram, o primeiro instinto é dissuadi-la. “Não tenho por hábito proibir nada, mas tento que esse não seja o foco do seu dia-a-dia”, até porque falamos de uma doença com cariz obsessivo. “A comida já é um assunto vivido de forma tão intensa que seria mais terapêutico ter uma conta nas redes sociais que explorasse outros temas”, aconselha.

Partilhar para curar Talvez para não fazer da comida e do exercício físico o foco do seu dia-a-dia, Inês Viana mantém duas contas abertas: uma do “mundo fit” – como habitualmente se designa esta comunidade nas redes sociais – e outra com partilhas comuns, com fotos da família, amigos, viagens e outros temas mais banais. É, no entanto, no primeiro perfil que reúne mais de 16 mil seguidores que já não passam sem saber que treino fez logo de manhã – treina quase sempre às 6h30 – e que refeições vai fazendo ao longo do dia. Pelo meio há espaço para dicas de compras, partilhas sobre quais as opções mais saudáveis do mercado e até para desabafos em dias menos bons. 

Criou o perfil em 2014, pouco depois de ter tido um acidente isquémico transitório – uma espécie de mini-AVC – e ter ficado sem menstruar devido ao baixo peso. O recorde de 48 quilos para os seus 1,71 metros foi batido depois de anos a testar técnicas para perder peso, desde substituir refeições por batidos e barrinhas hipocalóricas ou a prática de exercício físico sem controlo, que a levou a partir a elíptica que tinha em casa de tanto a usar. “E nem aí eu me via como anorética”, admite.

Depois de um tratamento à base de ansiolíticos e antidepressivos começou a recuperar alguma vitalidade que, mais tarde, a levou a deixar a nutricionista “chapa cinco que me dizia para comer bolacha maria ao lanche” e a começar a pesquisar sobre aquilo que devia passar a ser a sua alimentação. Ao mesmo tempo começou a frequentar um ginásio e a recuperar a forma, que se mantém bem longe dos dois extremos: os 48 quilos da fase da anorexia e os 80 quilos de uma “criança gordinha a quem chamavam baleia na escola”.

Atualmente publica duas a três fotos por dia e cada uma raramente conta com menos de 500 likes. Confessa que, apesar de sentir uma certa pressão de ter que publicar diariamente, quase como uma obrigação, os prós da lista continuam a pesar mais. “A força do Instagram é incrível”, garante, ao mesmo tempo que recorda os primeiros posts, ainda como anónima. “Apresentei-me como alguém a recuperar de um distúrbio alimentar e, a partir daí, os comentários que recebi, mesmo os que vinham em forma de crítica, eram sempre positivos”, esclarece.

A advogada de 29 anos acaba por usar as redes sociais para benefício próprio, mas não esquece os episódios em que constatou que servem também para ajudar quem a segue. “Uma vez, uma miúda de 13 anos veio ter comigo a dizer que só depois de me ouvir falar sobre a doença é que se apercebeu que sofria do mesmo.” E é por isso que os contras da lista continuam a pesar menos na balança de Inês.