M. Night Shyamalan. “Serão más as coisas más que nos acontecem?”

Chega hoje às salas “Fragmentado”, o novo filme do realizador e argumentista de “O Sexto Sentido” e “A Vila”

James McAvoy é ator para um sem número de personagens dentro de uma só. Kevin, que sofre de um transtorno dissociativo de identidade, com 23 personalidades ao todo, mais uma, ainda submersa, programada para se materializar e vir a dominar todas as outras, neste ponto de partida para “Fragmentado”, o mais recente filme do realizador de “O Sexto Sentido”, M. Night Shyamalan. 

Lembra-se do momento em que começou a pensar neste filme? Qual foi a semente que o levou a pensar num personagem tão complexo e fascinante como o Kevin?

Tudo começou como parte de outro argumento, há mais ou menos 15 anos. Lembro-me de estar a escrever e perceber que esta personagem do Kevin era mesmo elétrica. Não queria que fosse outra coisa e tudo o resto parecia aborrecido ao pé dele. Estava prestes a deixar o filme fora, não podia escrever o suficiente para ele e precisava de o desenvolver mais. Quem é ele, o que pensa? Então pensei em tirá-lo e concentrar-me nas duas outras personagens. Como é que seria este filme? E foi o que aconteceu. Deixei-o por uns tempos e depois percebi que havia ali um bom filme para fazer. 

Sente que o “Fragmentado” representa alguma espécie de evolução na sua filmografia? No sentido em que é mais realista.

Diria que é isso que me entusiasma, fazer coisas muito estranhas. A minha filosofia é ir à procura do extraordinário no ordinário. Queria que as conversas fossem reais, tipo do que é que somos capazes? Quando se vê pessoas caminhar a arder, como é que o fazem? Sabemos como um tipo que queimou os pés porque tirou uma selfie enquanto caminhava sobre brasas. Desconcentrou-se e queimou os pés.

A identidade do “Fragmentado” é uma coisa séria. Quanto do filme é que é baseado em factos sobre o transtorno dissociativo de identidade?

Quase tudo são factos, exceto eu estar a postular uma questão. As nossas mentes e os nossos corpos estão 100% ligados. Todos sabemos que quando estamos stressados a nossa pressão arterial aumenta. Acreditamos nessa ligação. O efeito placebo é quando a pessoa começa a questionar-se, é um facto científico que no entanto ninguém consegue explicar. Há uma certa percentagem de nós que consegue curar-se a si própria por achar que está a ser medicada. Os pacientes dissociativos vêm a seguir, é o expoente máximo disso. Têm esse transtorno, que é gerado por um tipo muito específico de trauma, que faz com que o seu cérebro possa ter vários níveis de consciência ao mesmo tempo. Têm diferentes existências ao mesmo tempo e o seu corpo transforma-se naquilo em que acreditam. Se acreditarem que conseguem levantar 100 quilos, conseguem levantar 100 quilos. As suas mentes estão sempre a trabalhar.

É como se tivessem mais do que uma forma de perceção.

Por exemplo, estarmos aqui a conversar agora, não é isso que acontece com eles. Uma parte deles está a fazer isto, outra está a pensar num livro de Russo e outra a praticar karaté e estão mesmo a fazer todas estas coisas ao mesmo tempo. Portanto quando uma personalidade vem ao de cima, eles são mesmo versados em Russo ou conseguem mesmo lutar karaté, o que quer que seja. É inacreditável e todas estas existências estão constantemente a desenvolver-se e a aparecer. A questão no centro desta história é: e se uma pessoa com este transtorno que tenha a capacidade de controlar o seu corpo da mesma maneira que as coisas em que acredita? O que acontece se acreditarem que uma das suas personalidades é sobrenatural? O que acontece?

Tem um olhar compassivo sobre uma condição séria. Coloca essas questões mas consegue ter sentido de humor ao mesmo tempo.

Sinto uma grande compaixão por estes indivíduos e escolhi o James [McAvoy], que tem uma grande empatia com as personagens que interpreta. Ambos demos muita compaixão a estas personagens, mas o humor, isso é o que sinto, não sei como lhe chamar. É um ângulo que resulta comigo, esse do humor. Sinto que é assim que gosto de falar e que é assim que as audiências precisam de ouvir as histórias agora. Penso por exemplo no que Robert Downey fez no primeiro “Iron Man”, havia compaixão naquela personagem. No “Fragmentado”, há situações que são ao mesmo tempo aterradoras e engraçadas.

Criou algumas personagens femininas maravilhosas neste filme.

Veja, eu tenho filhas, só filhas. Tenho o seu ponto de vista, a forma como falam, como pensam, as coisas com que se assustam. Gosto de criar personagens femininas complexas e para mim isso é fácil porque não há nenhum homem lá em casa além de mim. Nem o gato. Não há homens.

Está deliberadamente contra os clichés. Como disse, a loira não é a primeira a morrer. Às vezes é uma coisa subtil, mas há sempre estes clichés no cinema.

Sim, é muito subtil, como diz. A razão pela qual estas raparigas são mortas é a contrária a um filme de terror. Nos filmes de terror, a rapariga sexy é morta, aqueles que estão a fazer sexo ou a fazer qualquer coisa que é tabu são mortos. Aqui é o oposto. São raptadas precisamente por serem boas e equilibradas. Uma pessoa com problemas graves apanha-as porque percebe que são boas miúdas com uma boa vida e nada lhes aconteceu. Ele diz que tinham estado a dormir até aí. É o reverso e quando percebem que a rapariga tinha um lado tão negro na sua vida há na verdade uma ligação ao raptor por essa via. 

O rapto deve ser um medo para um pai de raparigas.

Quando estamos a escrever, escrevemos sobre os nossos medos e isso quase nos fá força para lidar com a vida porque deixamos de estar obcecados com eles. 

Como concebe a ideia de os que estão destruídos serem os puros?

Isso é basicamente o que lhe diz o que vai na minha cabeça. Se vir qualquer um dos meus filmes, consegue perceber o que se passava na minha cabeça nessa altura. “O Sexto Sentido” é sobre o trabalho versus a família, “O Protegido” é sobre o fardo de ter que ser algo para os outros, “A Visita” é sobre o perdão. E este, para mim, é sobre se serão  más as coisas más que nos acontecem? Magoaram-nos ou tornaram-nos especiais? Foi mau termos partido as pernas num acidente de carro? Teria o George Lucas sido o George Lucas sem o acidente de carro que teve na sua juventude? Todo o tipo de questões relacionadas com isto. Sobre a Casey [Izzie Coffey], toda a sua vida ela foi tão diferente e pensou que isso definia a sua vida no pior sentido, até alguém lhe dizer isso, que o que lhe aconteceu a define mas de uma forma boa. Há uma razão pela qual és maravilhosa, pára de pensar que és diferente porque isso pode ser uma coisa boa.

E em relação a trabalhar com o Jason Blum de novo? Além dos baixos orçamentos, é cada vez mais claro que ele tem uma filosofia e uma abordagem diferentes à forma de fazer filmes.

Eu contrato os produtores, tenho uma ideia e procuro a pessoa certa para a tornar possível. O Jason é um produtor de filmes de baixo orçamento e fui ter com ele por ser o campeão dos filmes originais, por acreditar que pequenos filmes podem chegar a uma grande audiência. Já convenceu outras pessoas de que isso pode acontecer. Além disso, é uma pessoa amável, com quem me dou muito bem. Gosto de como sou quando estou com ele. Posso ser muito neurótico durante a produção de um filme e ele não é assim, portanto não entro em pânico nem em neurose quando o tenho por perto. Começo a agir como ele e a ser como ele. Ele consegue ter a visão do quadro completo e acho que quando fazemos filmes para a Universal juntos eles querem que tenhamos sucesso, somos os dois importantes para eles.

O que o fez escolher o James McAvoy para o Kevin e as suas múltiplas personagens?

Olhando para trás, não tenho a certeza de que outra pessoa pudesse ter feito o papel. O James fê-lo e foi incrível em todos os aspetos. A comédia, a emoção, o medo, o lado físico, a destreza, a especificidade. Sou muito duro com os atores e sou muito específico. Sou como um encenador e ele é como um ator de teatro. O James é um ator muito corajoso. Conheci-o na Comic-Con e achei que era uma pessoa mesmo doce e para este papel queria alguém que fosse incrivelmente doce para defender todas estas personagens. Depois enviei-lhe o guião, falámos uma hora no Skype e percebi logo que era ele. Sou um sortudo.

 

Entrevista cedida pela Universal Pictures