Guterres. Incidente diplomático? Longe disso

As declarações do secretário-geral da ONU sobre o Monte do Templo em Jerusalém levaram as autoridades palestinianas a exigir um pedido de desculpas. Especialistas não consideram a situação um incidente diplomático. “António Guterres não tem nada que se retratar”, garantiu Soromenho Marques ao i

António Guterres está há um mês na liderança das Nações Unidas e já está a causar desconforto na Palestina. Em causa estão duas declarações, onde o secretário-geral da ONU considerou que o Monte do Templo, como é conhecido pelos judeus ou Haram al-Sharif (Nobre Santuário) para os muçulmanos, tem origens judaicas.

A primeira deu-se num discurso no dia 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, onde afirmou que “o Império Romano não só destruiu o templo em Jerusalém como também tornou os judeus párias em vários sentidos”. No domingo, Guterres voltou a referir-se ao assunto, em declarações à rádio pública israelita, dizendo que “é claro como água que o Templo, destruído pelos romanos, é um templo judeu”, tendo ainda afirmado que “ninguém pode negar que Jerusalém é sagrado para as três principais religiões”.

As críticas das autoridades palestinianas não tardaram. O ministro da Autoridade Nacional Palestiniana para os assuntos de Jerusalém afirmou à agência de notícias chinesa Xinhua que “ele [Guterres] negligenciou as resoluções da UNESCO, que claramente dizem que a mesquita al-Aqsa [localizada no Monte do Templo] é uma herança islâmica”. Para Adnan al-Huseini, os “comentários” do português são “uma violação de todas as regras e leis humanas, diplomáticas e legais e uma violação da sua posição enquanto secretário-geral”, acrescentando que Guterres deveria “pedir desculpa ao povo palestiniano”.

O governante refere-se a um documento de outubro passado, em que a UNESCO referia-se ao local de culto como sendo sagrado para os muçulmanos – não fazendo referência aos judeus – e recorrendo apenas à sua terminologia árabe, criticando ainda a ação de Israel em Jerusalém. Situação que levou a um corte nas relações entre Israel e a UNESCO.

Ahmed Majdalani, membro da Organização para a Libertação da Palestina, considerou ainda que as palavras do secretário-geral são “um golpe para a credibilidade da ONU enquanto organização global que devia manter-se ao lado dos povos ocupados e ser contra o poder da ocupação”.

FACTOS HISTÓRICOS

O primeiro incidente diplomático de Guterres? Os especialistas acham que não e desvalorizam a questão. “António Guterres não tem nada que se retratar, é uma questão de factualidade histórica”, disse Viriato Soromenho Marques ao i.

O professor universitário referiu que a área onde se encontra a mesquita Al-Aqsa, o terceiro local mais sagrado para os muçulmanos e onde Maomé terá ascendido ao céu, “corresponde à área do antigo templo de Salomão que foi destruído pelas tropas romanas”. “Numa área muito pequena – são três ou quatro hectares – temos o Muro das Lamentações, que é o muro do templo, e ao lado está a esplanada das mesquitas, onde se encontra a mesquita al-Aqsa, um monumento sagrado do Islão”. “Historicamente, quem chegou primeiro foram os judeus, isso é um dado histórico. Não é política, são factos”, acrescentou o especialista em política internacional.

Para Soromenho Marques, esta situação é um “teste de força” e reflete o “ambiente tenso” que se vive hoje em dia, em que os factos se confundem com a opinião. “Guterres não pode negar a história. Seria horrível que a ONU começasse a seguir o exemplo de Trump com os factos alternativos. Espero que o secretário-geral não responda a provocações e mantenha tudo aquilo que disse”.

O professor universitário criticou ainda o documento aprovado pela UNESCO, caracterizando-o de “torcido” e considerando-o “um favor aos países que apoiam a causa palestiniana de uma forma mais ardente”. “É outra tarefa que Guterres terá de enfrentar: a forma como a ONU se deixa instrumentalizar por modas ideológicas”. “Não podemos procurar a paz através da mentira e da falsificação da história. Podemos ter interpretações diferentes da história, mas não podemos dizer que a mesquita de al-Aqsa foi construída antes do Templo de Salomão”.

“atenção ao caso palestiniano”

Já Francisco Seixas da Costa considerou o episódio um “mal-entendido”, “um problema de interpretação”. “Não acredito que Guterres tenha corrido o risco de fazer um erro no plano histórico-político que pudesse ser ofensivo a qualquer das partes”, sublinhou o embaixador ao i. E vai mais longe: “Se há pessoa que, até como primeiro-ministro, sempre demonstrou uma elevada atenção ao caso palestiniano foi Guterres”.

António Martins da Cruz é da mesma opinião. “Quando Guterres era primeiro-ministro, eu era embaixador na NATO e depois em Madrid. Nunca vi o governo de Guterres com o mínimo desrespeito ao mundo árabe e à causa dos palestinianos”, disse o embaixador ao i.

O também antigo ministro dos Negócios Estrangeiros recordou ainda a ação do português enquanto Alto-Comissário para os Refugiados, tendo-se preocupado “particularmente com os campos de refugiados palestinianos na Jordânia e no Líbano”. “Guterres sabe perfeitamente o que defende a ONU: um estatuto internacional para Jerusalém. Não creio que tenha a mínima vontade de ofender o povo palestiniano. Antes pelo contrário, enquanto secretário-geral da ONU, é o primeiro responsável pela manutenção da paz no mundo e do cumprimento de indicações do Conselho de Segurança”.

“Ajustar-se às novas funções”

Lívia Franco também reconheceu que o ex-primeiro-ministro “conhece bem a realidade internacional”. Considerou também que Guterres ainda tem de se adaptar ao cargo que ocupa há apenas um mês. “Qualquer novo secretário-geral das Nações Unidas, quando entra em funções, depara-se com uma série de sensibilidades complexas que, à partida, não são imediatamente evidentes. Parece-me normal e razoável que Guterres esteja a ajustar-se às suas implicações da sua nova função, nomeadamente em termos de linguagem. É uma questão de perceber a extensão dessa sensibilidades e calibrar o seu discurso”.

“Historicamente, quem chegou primeiro foram os judeus, isso é um dado histórico. Não é política, são factos”