Uma viagem à volta do gigantesco olhar de Almada Negreiros

Inaugura-se hoje uma ampla retrospectiva do grande modernista português que, contando com mais de quatro centenas de trabalhos, muitos deles inéditos, consegue captar a diferença que fez de Almada um “poliglota das artes”, alguém que ainda hoje protesta contra todas as formas de fazer dele uma figura do passado

Uma viagem à volta do gigantesco olhar de Almada Negreiros

Alguma vez o desejo será tão grande que queiramos assumir uma exigência máxima, ir além dessas dignidades vagas, desse gesto com que se abre um livro de História, se sopra o pó, lendo duas ou três linhas. Querer mais do que vai pela norma, o convencional e o morno. Pelo menos pedi, e assim pode ser que vos seja concedido. O resto do versículo já sabem: buscai, e encontrareis; batei, e a porta será aberta para vós. Começamos num tom que parece um tanto beato, mas o que queremos é aquele sentido “alado e sagrado” que Borges desejava da poesia. E, neste ponto, lembramos que para Almada Negreiros toda a arte é poesia, dando força à etimologia grega da palavra – poiesis – que significa criação. Mariana Pinto dos Santos é quem abre a porta, e é sua, em grande medida, a realização da retrospectiva que, cerca de um quarto de século depois da última grande exposição dedicada a Almada, cumpre o desejo de uma exigência máxima.

A curadora da ampla mostra que abre ao público a partir de hoje na Fundação Calouste Gulbenkian parece ter levado em conta as palavras de Vitor Silva Tavares (VST), o mítico editor da &etc, amigo íntimo do artista, que uma vez fez o seguinte aviso aos incautos: “Antes de ser um convite para visitas guiadas (cuidado com os cicerones!) toda a obra de Almada Negreiros é um apelo à Descoberta de uma sempre buscada Ilha dos Amores – símbolo aqui, desse lugar onde a épica modernista do poeta que foi de Orpheu se transubstancia em Mito lírico, geometria a capela.”

O convite da Fundação à historiadora de arte foi feito há três anos, e percebe-se que levou tempo não só a organizar, mas a pensar com a devida grandeza aquilo que hoje se apresenta. Repartidas pela galeria principal e na do piso inferior da instituição, temos uma selecção de mais de 400 obras (várias delas inéditas) daquele que, mais do que o nosso grande modernista, foi, segundo Eduardo Lourenço (EL), “o único dos nossos modernistas”. Concebendo o Modernismo essencialmente “como um mundo, literalmente falando, sem alma”, o ensaísta defende que o mundo de Almada “é o primeiro, em português, em que o sentido de alma está rasurado. Todo olhos, tudo se passa como se no universo nada mais exista que superfícies e seus reflexos, e sob elas uma fórmula.”

Organizada “em sete núcleos temáticos que reflectem a inesgotável energia criativa de um autor que experimentou uma imensidade de linguagens”, a grande proeza desta mostra é o efeito caleidoscópico que produz. Fugindo à disposição das peças de acordo com uma lógica historiográfica, há arte no próprio modo de combinar as peças, privilegiando a sensação de movimento, o fio condutor que, parece, de súbito, ele próprio animar-se, dando vida ao olhar que percorre os diferentes suportes, meios e técnicas. Deste modo, o que Mariana Pinto dos Santos consegue não é apenas demonstrar “o prodigioso virtuosismo oficinal” de Almada (VST) enquanto “poliglota das artes”, mas captar um certo entusiasmo da criação, como se a exploração construísse um espectáculo através da força das suas relações e reflexos.

Esta retrospectiva está menos preocupada em ser exaustiva do que em dar toda a extensão que pede o fulgor de um criador que, como refere VST, tinha o “dom de atrair o fascínio à primeira vista”. Somos, por isso, acometidos de, mais do que um deleite estético, de uma certa alegria ao percorrermos o espaço encantado pelas obras de Almada. Esta mostra diz-lhe respeito em todos os sentidos, desde logo por cumprir com o seu entendimento de que a arte tem por fim uma necessidade de comunicar. Pinto dos Santos refere como para o artista não havia  a esse nível qualquer indefinição. Cabia ao público vir “confirmar” a grandeza de uma visão e destino artístico. A fidelidade da curadora a esta noção está bem patente, e pode dizer-se que o lado espectacular começa por ser esta uma mostra para o grande, não, o grandíssimo público.

Pode-se estar dentro como fora daquilo que sejam os conceitos e o debate que interessa à história de arte, a figura com a qual iremos fatalmente confrontar-nos aqui é aquela em que EL reconheceu a verdadeira originalidade de Almada: “O que é original nele não são os slogans quase literalmente marinettistas, mas a maneira como os assume, sujeito sem passado, orgulhoso da sua força e juventude, única medida do mundo.  É esta aderência ao que é novo só por sê-lo, este gozo insolente de estar vivo e são, indiferente à contradição e até à infelicidade da história ou do destino que conferem a Almada essa aura que nenhum seu contemporâneo luso ostenta. Num país tão intrinsecamente histórico, Almada parece sem história. Não vem de lado nenhum, não vai para nenhum lado, está.”

De resto, o título escolhido para a exposição – “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno” – foi retirado de uma conferência (“O Desenho”) que o artista deu em Madrid no ano de 1927. Nela diz-nos: “Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira de ser. Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade”.

Trata-se de uma capacidade de não só ser especialmente sensível àquelas alterações que significam uma mudança, mas de pressenti-las, colocar-se num ângulo vantajoso e ilustrar a transformação, captar de forma dinâmica – ou seja, artística – o próprio acontecimento. Se a mostra integra as obras mais conhecidas de Almada, tem a enorme virtude de conseguir perdê-las, porque o que assume o primeiro plano não são momentos isolados mas o efeito de narrativa gráfica que, segundo a curadora, se encontra em vários dos seus trabalhos durante a sua carreira. Também assim ganha maior expressão o diálogo com o cinema e, a coroar isto, entre as várias sequências e inúmeras experiências, temos duas lanternas mágicas expostas com luz reduzida.

É desdobrado todo o horizonte da visão que Almada serviu com a sua obra, e é importante recordar como ele fez questão de sublinhar que entendia a sua obra como um serviço ao público – “É serviço, aquilo que eu faço é serviço”, disse em 1969, numa entrevista a VST. E a exposição faz isto dando todo o alcance ao sentido metafórico que Almada atribuía a uma das suas características físicas mais notáveis: os enormes olhos. Na parede, sinalizando o núcleo dedicado aos muitos auto-retratos em que se reconheceu e inventou, podemos ler o que “o menino de olhos de gigante” (título de um seu poema) além de figurar escreveu sobre o mais radical dos seus muitos sentidos: “Em K4 O Quadrado Azul (1917), anuncia «os meus olhos são holofotes a policiar o infinito», (…) e em ‘A Invenção do Dia Claro’ (1921) escreve: ‘Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do nosso século! Os olhos que furam para detrás de tudo’”. 

Na plena diversidade da obra, esta exposição é um verdadeiro triunfo ao conseguir dar corpo ao que muitas vezes surgiu fragmentado, partido e assim, de certo modo, desentendido. Deixamos de ver um artista nas suas diversas manifestações, e começamos a ver um manifesto nas suas inúmeras tentações e impulsos.  A natureza do equívoco diz-nos muito da dificuldade de apreender aquilo que marca afinal a grande diferença desta obra. Se há um lado irreverente e até “estridente” na afirmação dessa diferença, o que ainda causa vertigem em Almada, como nota Eduardo Lourenço, é o facto de nunca ninguém, antes dele, ter comparecido “na nossa cena pública com um Eu tão maiúsculo, tão totalitário ou tão livre, aquele que vibra no d da sua famosa assinatura”. Nem antes e nem depois, diga-se. “O que em Pessoa foi dissimulação, ocultação, passadas ocas em labirintos irreais foi em Almada energia pura, manifestação, reflexo espontâneo e protesto contra todas as formas de passadismo independentemente do seu conteúdo”, conclui o ensaísta.

É fácil perdermo-nos no cruzamento de todos os caminhos que Almada explorou, e nessa componente que parece a um olhar frio um sinal de dispersão, experimentalismo. Mas Mariana Pinto dos Santos aponta para o que parecia ser afinal um modo de reflexo, toda uma cadeia de reacções espontâneas de “um artista que respondia ao momento presente, consoante o que o momento pedia: quer como artista plástico, quer também como escritor, actor, performer, cenógrafo ou ainda através da dança, ou também quando respondeu a encomendas de vitrais, pintura a fresco ou revestimento cerâmico.”

Se Almada é um ser especialmente intrigante é por surgir como um espécime raro, talvez único, que nos “permite repensar de um modo abrangente os modernismos e a sua hibridez”. Há, de resto, um episódio bastante ilustrativo e que nos diz muito daquilo que ele entendia como o seu verdadeiro desafio artístico. Quem nos relatou a história foi Vitor Silva Tavares no texto que abre o volume que a Colóquio Letras dedicou a Almada Negreiros e a Mário de Andrade, em Julho de 1998: “Segue a história fiel e verdadeira: certo dia, em ameno de conversa com o amigo Fernando Amado (que a transmitiu ao subscritor), Almada vai traçando no chão de jardim, com um pauzinho, as linhas de um arlequim. Fá-lo como quem nem dá por isso e o amigo, sobressaltado de admiração por aquela mestria sequer vigiada, não cala dizer-lhe: ‘José, que maravilhosa habilidade a tua! Aqui à conversa comigo e, distraidamente, que lindo desenho fizeste!’ Resposta imediata: ‘Vou confessar-te uma coisa: hei-de contrariar isto até ao fim da minha vida!’”

Por aqui percebemos como essa habilidade, ou ‘duende’, foi talvez o que obrigou Almada a contrariar-se, a não se ficar pela beleza, mas a ultrapassar as fórmulas, buscando nas várias linguagens algo mais que o virtuosismo. Ser o ilustrador e o camaleão que com um movimento quase invisível caça com a língua o instante que passa. Esta exposição coloca lado a lado obras que já todos vimos e tantas que passaram despercebidas, grandes pinturas a par de desenhos e esquissos dados, perdidos pelos cafés. Conta-nos uma história através de um labirinto de cortar fôlegos, como se estivéssemos no jardim a vê-lo fazer com um pauzinho no chão, ele que tem aquela capacidade de apanhar a beleza no seu aspecto mais lapidar, reduzir uma figura às linhas que lhe dão carácter, aquelas que imediatamente a distinguem. Ele mesmo um ser algo disforme, talvez por excesso de carácter, alguém que criou a sua elegância, uma que perpassa pelos auto-retratos como nas fotografias. Mal começa a visita entra-nos uma coisa atrás de outra no olho, torna-se um desfile, uma feira de linhas fortes, cores, um carnaval de soberbos contornos. O artista que faz amar uma coisa, lhe capta o âmago, a tal raiz afectuosa. Uma obra contente de se ver reunida uma vez mais depois num corpo, uma obra que se ri, que tem sempre um rasgo animador, e se torna um imenso desenho animado, um filme projectado segundo o ritmo dos nossos passos. Talvez fosse isto, no fim, o que Almada buscava: exigência máxima.