Maria de Belém. “Houve uma campanha negra dirigida contra mim”

Depois da derrota nas presidenciais, remeteu-se ao silêncio. E se o quebra agora é para falar de igualdade de género. Mas não só, porque a política corre-lhe nas veias 

Foi um ano de silêncio. Lamber feridas de uma derrota duríssima nas eleições presidenciais de janeiro de 2016, em que acabou em quarto lugar. Durante este ano, Maria de Belém manteve-se atenta, mas discreta. Mais ainda do que sempre foi usual em si. Recentemente regressou à Comissão Política do PS, mas é em fazer vingar a Declaração Universal de Igualdade de Género apresentada por Portugal à UNESCO e da qual é embaixadora que está empenhada. Até porque a sua vida fez-se sempre de mulheres fortes. E é tempo que a igualdade não seja apenas palavra bonita no papel.

Saiu agora mesmo de um almoço-debate em que o orador convidado foi o Ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes. O que destacaria da sua intervenção?

O facto de haver uma estratégia é muito bom. Eu iniciei o pensamento estratégico no Ministério da Saúde, mas ele foi abandonado em alguns mandatos e é bom ver que há agora uma aposta clara numa estratégia. Isso, para mim, é premonitor de sucesso. A saúde precisa desta noção de projeto, porque depende de múltiplos fatores – até depende menos dos serviços de saúde do que as pessoas pensam. Tem que ver com as nossas escolhas, com o nosso ambiente cultural, com as determinantes sociais e económicas. E se há uma coisa que as pessoas não se apercebem é que os períodos de crise, sobretudo acompanhados por uma elevada taxa de desemprego, são muito propiciadores de má saúde para as pessoas e de muita desestruturação.

Estamos a assistir à discussão da eutanásia, que é um dos últimos temas fraturantes.

Pois é. É algo que tem a ver com o entendimento do princípio da autonomia do doente e até onde este vai. No nosso país, ao contrário de outros onde já foi tomada a decisão de avançar no sentido da disponibilização ou pelo menos não criminalização da eutanásia, ainda nos falta dar alguns passos, designadamente termos uma rede de cuidados paliativos acessível a quem queira dela beneficiar. Esse é um passo que deve estar garantido para que depois tenhamos a certeza que há realmente uma livre escolha da pessoa e não uma medida de recurso porque aquilo que deveria funcionar não funcionou.

Como cidadã, se este assunto for referendado, como votará?

Acho que isto tem de ser uma matéria muito discutida e muito bem avaliada. Mas como é evidente, aquilo que fiz na altura em que era deputada, foi avançar para o testamento vital que considerava indispensável. Isso já nos dá a possibilidade de fazer escolhas. Agora, há também aspetos que têm de ser muito discutidos na sociedade, até para as pessoas perceberem bem, como o facto de o encarniçamento terapêutico não ser uma boa prática. Mas muitas vezes são as próprias pessoas doentes ou as famílias que o exigem. Só que é uma má prática porque faz sofrer as pessoas inadequadamente sem nenhuma possibilidade de melhoria de prognóstico. E portanto há muitas questões, em algo que parece uma resposta de sim ou não, que têm de ser devidamente analisadas através de um debate amplo, participado, em que se deveria fugir de exageros ou diabolizações. É um bom momento para travar este debate, mas como é evidente não vou dar a minha opinião sobre uma coisa destas porque é uma decisão política e outra coisa são as nossas escolhas particulares.

Foi a primeira ministra para a igualdade. Agora acaba de ser nomeada embaixadora da Declaração Universal de Igualdade de Género apresentada por Portugal à UNESCO. Foi um desafio proposto pelo professor Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética e que lidera esta equipa?

E pelas professoras Isabel Oliveira, Helena Pereira de Melo, Guilhermina Rego, Carla Serrão, Francisca Rego, Ivone Duarte… Houve um conjunto de pessoas que trabalharam neste draft que me convidaram. São pessoas que, perante a inexistência de qualquer declaração universal da UNESCO, como entidade das Nações Unidas, sobre a igualdade de género, consideraram que era um bom momento para promover esta discussão.

Esta declaração não vai de encontro à já existente Declaração Universal dos Direitos Humanos?

É certo que a igualdade entre homens e mulheres ficou completamente estabelecida logo no artigo 1º desse documento, quando se diz que todos são livres e iguais em direitos e dignidades. Essa questão da igual dignidade de todos os seres humanos é o patamar que dá substrato a tudo aquilo que depois foi a consagração de vários direitos, como o direito à igualdade salarial, o direito à participação política, a igualdade ao nível do direito da família ou do direito sucessório. De facto, poderíamos até dizer que, de uma maneira geral, os direitos iguais estão consagrados. Mas uma coisa é a consagração dos direitos, outra coisa é a prática, o dia-a-dia. E isso depende da cultura das sociedades, da cultura das famílias, do ambiente em que somos criados. Ora bem, quem é que tem competências nesse domínio? A UNESCO, que é a entidade das Nações Unidas que se debruça e promove a aprovação de instrumentos de direito internacional público virados para a defesa da educação universal. Ora, se a igualdade de género tem uma das suas marcas mais pesadas nas questões culturais, então tínhamos de ir para o organismo que, a nível global, tem competências específicas nessa matéria. E portanto este é um projeto de declaração que corresponde a um pontapé de saída para instrumentos que comecem a mudar a cabeça das pessoas. Há muitas e muitas desigualdades, práticas e reais, que têm que se combater através de instrumentos que vão ao nosso órgão mais nobre: o cérebro.

Em países ditos do primeiro mundo, como Portugal, há a ideia, para algumas camadas, pelo menos, de que a questão da igualdade de género está ultrapassada.

Não está nada ultrapassada. Esse discurso é muito perigoso. Uma coisa é termos a Constituição a estabelecer determinados princípios, outra coisa é a realidade vivida. Se o problema estivesse resolvido não tínhamos um tão grande número de assassinatos de mulheres como temos. E se tivéssemos o problema resolvido nas gerações mais jovens não víamos a violência no namoro, mesmo no público universitário, que é uma coisa que me transcende.

Entre 1990 e 1994 fez parte da Comissão Instaladora da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Tantos anos depois, saber que há esse tal aumento da violência no namoro, que mesmo assim muitas vezes termina em casamento, faz com que pense que afinal não avançámos assim tanto? Até porque, o estigma que existia no passado, de que a mulher alvo de violência pertencia a camadas menos cultas e mais dependentes financeiramente, está hoje provado como não sendo real.

Tivemos durante muitos e muitos anos uma regulação jurídica da sociedade em que o homem era o chefe de família, a mulher era dependente do homem, ele é que tomava as decisões mais importantes, o homem de certa forma era o proprietário da mulher e depois era o proprietário dos filhos. E, para muitas pessoas, a mulher ainda é vista como propriedade do marido!

Em Portugal, há não tanto tempo assim, a mulher não podia comprar um carro ou sair do país sem uma autorização escrita do marido.

Eu sou desse tempo. Estudei Direito, acabei o curso em 1972, e só com o 25 de abril se alteraram regras ao nível do direito civil que realmente trouxeram para o mesmo patamar jurídico a mulher em sociedade e na família. Mas foi para o patamar jurídico, não foi para o patamar cultural.

Ao nível desse patamar cultural continuamos a ser uma sociedade patriarcal e portanto machista?

Pois. Tem-se feito um grande trabalho ao nível dos manuais escolares e ao nível da mentalização em geral, mas este é um trabalho muito difícil. Costumo contar algo que se passou comigo, enquanto pessoa com atividade política. Era muito vulgar, durante debates públicos em algumas zonas do país, ter mulheres na assistência que diziam: “Eu não devia atrever-me a falar, mas gostava de colocar uma pergunta”. O modelo que era transmitido era que o que as mulheres dizem é um disparate, que não tem de se ligar ao que elas dizem, que são pouco inteligentes. Apesar de se saber que isto é absolutamente falso era este o modelo. Estamos, todos os dias, a provar a nossa igual capacidade nos mais variados domínios. Mas apesar disto ser verdade, se formos ver o número de reitoras que temos é uma de vez em quando, o número de professoras universitárias que chegam a lugares de direção idem, tal como o número de médicas que são diretoras de serviço ou que estão nos conselhos de administração… Por isto mesmo é que apareceram legislações, promovidas pela própria União Europeia, no sentido de vencermos os patamares temporais de evolução. Sob pena de estarmos ainda mais séculos à espera que pudéssemos atingir o propalado patamar da igualdade de direitos.

Apesar dessas legislações, sabemos que o que acontece frequentemente é, havendo um homem e uma mulher, candidatos ao mesmo cargo e com currículos semelhantes, a escolha continua a recair mais vezes no homem com o argumento que a mulher pode engravidar.

E há aí um paradoxo desgraçado: por um lado precisamos do trabalho das mulheres porque talentos que a sociedade não aproveita é desperdício, mas também precisamos que as mulheres tenham filhos porque é importantíssimo do ponto de vista demográfico. Mas depois a organização do trabalho não está de acordo com isto: quando há que escolher quem tem o trabalho a mais, já se sabe que são as mulheres. Por isso é que elas trabalham mais horas por dia que os homens em trabalho não remunerado.

Não remunerado e não reconhecido?

Falo muito nessa questão da falta de reconhecimento. As pessoas até podem, com toda a sua generosidade, fazer um trabalho não remunerado com gosto. Mas ele tem de ser reconhecido. Porque ninguém trabalha sem um estímulo, sem um carinho, sem um mimo, sem o tal reconhecimento. E realmente o trabalho doméstico é muito repetitivo, e como só se dá conta dele quando não está feito, existem as críticas mas nunca o reconhecimento. Mas depois, se formos ver o que se passa nas famílias, é que as mães tendem a reproduzir o modelo: o menino é dispensado das tarefas domésticas e a menina obrigatoriamente tem de as fazer.

As mulheres são muito boas a boicotarem-se e a perpetuarem o ciclo?

Somos ótimas. Fazemo-lo sem percebermos que estamos a transmitir um modelo errado porque é um modelo injusto. Acho que tem de se continuar a analisar e a abordar estes temas, porque as pessoas, às vezes sem terem a noção disso, são mesmo as perpetuadoras de um modelo que é altamente desgastante e criador de muitas tensões, seja na família seja no trabalho. E que tem maus resultados.

Diz sempre que vem de uma família de mulheres muito fortes. Quem são essas mulheres que a ensinaram a ser mulher?

Não conheci a minha bisavó, mas a história da família conta que foi uma mulher fortíssima, empresária tipo dona Antónia Ferreira, do Vinho do Porto, viúva muito cedo. Depois a minha avó também foi uma mulher fortíssima. Tal como a minha mãe que, além de muito forte, sempre incutiu nas filhas a indispensabilidade de termos um trabalho remunerado e a nossa autonomia financeira. Porque esse é o segredo de não sermos dependentes das ordens de ninguém: termos capacidade de tomar as nossas decisões. Sinto uma grande admiração pelas mulheres da minha família. A minha avó materna, por exemplo, escolheu de sair do Porto – de onde eu sou – e ir viver sozinha para a quinta que tinha ao pé de Vila Real. Dormia sozinha em casa, com uma criada, como se dizia na altura. Dormia todos os dias com um revólver debaixo do travesseiro. Era gente de garra, não era gente de cacaracá. Acho que, nessa época, ter atitudes desta natureza, ter esta força, este autodomínio, esta escolha pela sua vida é uma lição muito grande para mim. Era uma pessoa extraordinária.

A sua mãe foi a única das irmãs que não tirou um curso superior. Não o fez porque o seu avô não a deixou tirar o curso que ela queria e ela entendeu que assim sendo não tiraria nenhum curso?

Sim. É um sinal da força da minha mãe. A minha avó só teve filhas e todas elas foram independentes e com o seu curso, numa época em que isto não era vulgar. Uma delas morreu muito cedo, mas já era bióloga e também tinha o curso superior do Conservatório. Era gente muito preparada e do ponto de vista cultural muito afirmativa. Foram todas mulheres muito determinadas e muito fortes.

Apesar desses exemplos, quando chegou a sua altura de escolher um curso, acabou por não ir para medicina, influenciada pelo facto de, na altura, se dizer que era um curso particularmente duro para as mulheres.

Começaram a contar-me algumas histórias que me influenciaram… Diziam-me que, em medicina, se entretinham muito a assustar as mulheres, metiam-lhes dedos de cadáveres nas batas e coisas do género. A verdade é que, na altura, tinha várias opções. Sou muito marcada pelo ambiente em que vivi a adolescência e que era o ambiente a seguir à Segunda Guerra Mundial, com uma grande marca das atrocidades do Holocausto. Toda a literatura era muito à volta disso e nós líamos imenso, sou uma privilegiada porque os meus pais educaram-nos para a responsabilidade, nunca andaram em cima de nós a proibir-nos isto ou aquilo e portanto líamos muito e sem restrições. E nessa altura havia muito o peso de uma literatura estrangeira, que transmitia a importância da justiça como o pilar civilizacional do estado de direito. E portanto eu tinha queda para as duas coisas: o direito ou a medicina, que tinha a ver com uma vocação, porque acho fantástico conseguirmos trabalhar para controlar aquilo que é um percurso normal da nossa vida mas que deve ser o mais possível contrariado e que é o fator de risco da doença.

Foi para Direito, mas acabou por, de alguma forma, e anos mais tarde, juntar as duas áreas.

Aconteceu. Não tenho nenhuma formação médica, mas tenho muito contacto com a medicina. A formação jurídica deu-me a importância do respeito pelos direitos das pessoas no domínio da saúde. Mas pertenci também à geração das grandes transformações, muitas das quais tinha a ver com o irrisório número de pessoas que, na altura, chegavam ao ensino superior…

Sobretudo do sexo feminino. Quantas mulheres havia na sua turma?

Meia dúzia delas para centenas de colegas rapazes. Aliás, ainda havia professores que achavam que as mulheres ali estavam completamente deslocadas.

Algum professor lhe disse diretamente que o seu lugar não era ali?

A mim nunca me disseram isso. Mas houve colegas a quem disseram. A mim não, mas se me tivessem dito levariam uma resposta adequada porque uma das coisas que aprendi em casa foi que, com educação, poderia sempre retorquir relativamente àquilo com que não concordava. É muito importante que a educação nos capacite para termos a possibilidade de ter opinião própria. Mas, dizia eu, essa geração sentia sobre os seus ombros uma grande responsabilidade que era fazer deste país um país melhor. Havia o ensino técnico e o liceu – eu andei no liceu – mas conhecíamos todos colegas cheios de qualidades que tinham tido de ir para o ensino técnico porque não tinham capacidade financeira para ir para o ensino superior. Era uma injustiça terrível. Já para não dizer que, nessa altura, nas famílias com muitos filhos, se por uma questão de orçamento se tivesse que escolher quem é que ia estudar, era sempre o rapaz, nunca a rapariga.

No pós 25 de abril foi adjunta no gabinete da Secretária de Estado da Segurança Social, Maria de Lurdes Pintassilgo. Foi ela a responsável por lhe ensinar que os homens e as mulheres não são iguais?

Sim. E acho mesmo, tal como a Maria de Lurdes Pintassilgo, que homens e mulheres não são iguais. E é por serem diferentes que são ambos necessários. São diferentes, mas a diferença não pode ser vista como algo para ser calcado. Maria de Lurdes Pintassilgo dizia muitas vezes que, se as mulheres vão para a política para fazerem o mesmo que os homens fazem, não vale a pensa. As mulheres são diferentes e têm que afirmar a sua diferença. Isso aprendi com ela. E considero que nunca fui uma mulher igual aos homens na política. Embora tenha sido muito criticada por isso. Mas não me incomoda. Sou como sou e quero ser como sou porque gosto de ser assim.

Qual foi a crítica que mais a marcou relacionada com o facto de preservar essa tal postura feminina na política?

As pessoas acham que tem de se ser muito violento. E eu detesto a violência pela violência. Acho que a violência fomenta os desentendimentos e as fraturas e coisas ainda mais graves. Sempre fui habituada que é sempre melhor a paz do que a guerra. Respeito as opiniões dos outros, e mesmo quando discordo delas não sou violenta nas minhas discordâncias e não ultrapasso nunca determinados patamares. As pessoas acham que isso é sinal de fraqueza, mas eu acho que é sinal de diferença de postura.

Portanto sentiu na pele o machismo?

Só senti o machismo na política, nunca o senti na família ou na vida profissional, senti-o na vida política. Isso senti.

Mas continuou.

Porque acho que podemos não levar a nossa avante mas não é por isso que não devemos lutar por aquilo em que acreditamos.

Durante anos foi uma espécie de obreira de bastidores, o que a fez passar para a primeira linha, assumindo, em 1995, o cargo de ministra da saúde?

Nunca gostei muito da primeira linha, gosto mais dos bastidores. Mas se for preciso estar na primeira linha também estou. Não me incomoda nada e estou preparada para isso.

O grande culpado dessa mudança foi António Guterres, à data primeiro-ministro?

Sim. Um homem que está hoje num cargo talhado para as características dele, intelectuais e afetivas. A sua eleição foi muito boa para ele, para nós e espero que seja muito boa para o mundo, embora o Donald Trump esteja a suscitar receios gravíssimos em todo o lado.

Diz que o responsável por essa mudança na sua vida foi António Guterres, mas numa entrevista antiga disse que, na verdade, quem a convenceu a aceitar não foi ele, mas a sua mulher à data, Luísa Amélia Guimarães e Melo.

Na verdade foi ela e a minha filha.

O que lhe disseram para aceitar deixar de ser a tal obreira de bastidores?

A Luísa achava que o facto de eu conhecer profundamente o setor da saúde porque tinha lá trabalhado muitos anos, traria uma componente humana à saúde que era indispensável. Porque a saúde pode evoluir muito do ponto de vista técnico e cientifico, mas se não for acompanhado por esta vertente não faz tudo aquilo que deveria fazer.

E a sua filha, o que lhe disse?

Eu disse à minha filha: “Já percebeste que, se eu aceitar, deixas de ter mãe?” E ela disse: “Já percebi que é mau para mim. Mas é bom para o país.” Ela tinha dez anos.

Assumiu a pasta da saúde até 1999. Consigo parecia que toda a gente sabia quem era a Ministra da Saúde. Sentiu-se uma espécie de ministra pop star?

(risos) Ainda hoje vou na rua e acham que sou a Ministra da Saúde, e já passaram vinte anos. É engraçado.

Há pouco falámos da discussão da eutanásia. Para a semana cumprem-se dez anos da despenalização do aborto em Portugal, outro dos grandes assuntos fraturantes da nossa sociedade. O balanço é positivo para a mulher?

Era algo de indispensável por razões de saúde pública em primeiro lugar. Para as mulheres é a possibilidade de serem atendidas, do ponto de vista humano, numa das decisões mais trágicas da sua vida. Cá está, o serviço de saúde não é nem polícia nem justiça. Portanto, a despenalização era indispensável. Não podemos fomentar a interrupção voluntária da gravidez, não é um método de planeamento familiar, mas num momento trágico da vida de uma mulher, a saúde tem de estar lá como saúde. Não está lá nem como julgadora ou como polícia perseguidora dos costumes.

O facto de ser profundamente católica não a colocou numa posição difícil face a este assunto?

Uma coisa são as nossas opções individuais, outra coisa é o regular a vida coletiva das pessoas e há que ter aí uma perspetiva muito clara do que se passa. Acho que precisamos cada vez mais de pessoas que tenham vivências, que conheçam o país e o mundo e que não falem apenas de coisas teóricas. E nós sabemos que, numa sociedade profundamente machista, sobretudo para as pessoas que têm menos recursos, em que a assimetria de poder é enorme, o Estado não pode aparecer a julgar que governa só para as pessoas evoluídas e informadas. O Estado tem de olhar sobretudo para os mais desprotegidos. Tenho de dizer que, neste campo, o país deve muito a um homem que já morreu, o Dr. Albino Aroso, que sendo uma pessoa de direita foi absolutamente fabuloso na perspetiva humana que emprestou a esta questão. Ele viveu esse problema em casa, com a mãe, e aprendeu com a vida. Aquilo que mais me custa é que há imensa gente a tomar decisões e a intervir no espaço público que não aprendeu nada com a vida. A vida para todos tem coisas boas e más e sempre considerei que aprendemos mais com as más do que com as boas. O que me espanta é que haja tanta gente que não aprendeu nada e depois quer impor aos outros o que deviam ter aprendido e não aprenderam. Para ficarem bem na fotografia, porque é bem visto e não têm coragem de se assumir na decisão pública, no sentido de proteger os mais frágeis.

Já falou de Donald Trump. Uma das primeiras decisões que o novo presidente dos EUA tomou foi o corte dos apoios na área do planeamento familiar e também o começo do desmantelamento do Obamacare.

É um escândalo. Ele disse que ia substituir o Obamacare por uma coisa melhor. O próprio Obama disse: “Se tiverem uma coisa melhor serei o primeiro a reconhecer.” O problema é que não há melhor! O pior que há é o que os EUA têm: eram o país que mais gasta, em percentagem do PIB, com a saúde, e ainda assim tinham 50 milhões de pessoas sem cobertura. Pessoas que chegam a um hospital, cheias de dores, e o hospital diz-lhes: “Não tens dinheiro, morre aí na rua.” Já viu o que seria isto em São José? Não tem a ver com a nossa cultura, mas os americanos aceitam e vivem bem com isto. Eles acham que isto é comunismo e como há uma diabolização do comunismo nos EUA, convivem melhor com o facto de deixarem morrer as pessoas por falta de recursos económicos para um seguro.

Em alguns países a população tem apelado para que Trump não seja recebido em futuras visitas de Estado. Que postura acha que deve ter a comunidade internacional?

O senhor está ali com uma agenda e é obstinado e obsessivo, e ainda por cima é um homem espetáculo: quanto mais atrocidades fizer, mas contente fica com ele próprio. Ele padece de um narcisismo perigosíssimo, para a América e para o resto do mundo. Termos à frente da maior economia do mundo e do país mais militarizado do mundo um homem destes é muito assustador. E olhamos para quem está à volta dele, e assustamo-nos. Parece gente transtornada, que é capaz de negar a evidência. É cada um pior que o outro. É gente completamente desumanizada, não são pessoas, parecem alienígenas transtornados. Peço desculpa pela expressão mas agora posso dizer estas coisas porque já não estou no exercício de funções públicas. E isto é, de facto, uma preocupação enorme. Já para não falar que ele tem das mulheres a ideia de que são mero instrumento de prazer sexual e nada mais.

Curiosamente, nos estudos feitos no rescaldo das eleições, percebe-se que há uma percentagem elevada de mulheres que votou em Trump.

Vamos ao princípio da nossa conversa: é uma questão cultural. Há muitas mulheres que, pelos vistos, ainda não perceberam que não têm de ser dominadas. Nem têm de dominar ninguém! Têm apenas de se comportar como pessoas que pensam pela própria cabeça. As pessoas são desconsideradas e, em vez de terem uma postura crítica em relação a isso, são elas as agentes do aprofundamento dessa dimensão.

Como acontece muitas vezes entre mulheres?

É verdade. Muitas vezes são as próprias mulheres a apontar o dedo a outras mulheres e a desvirtuarem o que elas dizem para as menorizarem. Tenho uma grande experiência disso.

Sentiu-se sempre mais escrutinada por mulheres do que por homens? Por exemplo, eram as mulheres que mais lhe apontavam o dedo à roupa que usava ou ao seu cabelo armado.

Sim, senti-me sempre mais escrutinada pelas mulheres. Mas isso faz parte da vida. Fui vacinada cedo contra o ridículo. Sempre achei que, neste país, só quem é medíocre é que passa incólume. E portanto sempre entendi certos comentários pela positiva. Tenho uma maneira muito positiva de ver as coisas. 

Consegue imaginar o que passa pela cabeça de uma mulher como Hillary Clinton por ter perdido para um homem como Donald Trump?

Acho que deve ser uma frustração horrorosa até porque ela teve muitos mais votos do que ele, mas é perversão de um sistema que se pretende de checks and balances mas que depois tem estas perversidades estranhas. Acho que ela deve ter ficado profundamente infeliz. Julguei que a sociedade americana estivesse mais evoluída. Aliás, se calhar está, mas as pessoas não foram votar.

Acha que foi isso ou, na hora do voto, os norte-americanos preferiram um candidato, ainda que populista, medíocre e sem provas dadas na política, do que uma mulher?

Sim, o facto de ser mulher pode ter prejudicado Hillary Clinton. Mas acho que o que mais a prejudicou foi a abstenção. Aliás, depois viram-se várias manifestações de gente que não votou, sobretudo jovens. Os jovens acham que tudo o que têm é garantido. E não é assim. Em democracia nada é um dado adquirido.

Em Portugal, em quase 42 anos em democracia, o historial de mulheres eleitas para altos cargos…

… é baixíssimo. Tem a ver com questões variadas. Muitas vezes as próprias mulheres não se querem expor…

Porquê?

Porque é difícil ser objeto de todas as críticas. Os homens podem ter feito as maiores das aleivosias, mas é raríssimo serem criticados por isso. Mas se uma mulher aparecer num determinado sítio já anda tudo a espiolhar a sua vida para ver se apanham alguma coisa. Estar no espaço público com alguma visibilidade é muito mais duro para as mulheres do que para os homens. Se alguma mulher se destaca há uma grande vontade de a abater. Muitas vezes as próprias mulheres trabalham nesse sentido.

Nas campanhas, quando há uma candidata feminina, espera-se que conduzam campanhas mais afetuosas.

Pois. Mas hoje os homens também fazem muito isso. Há muita gente que anda aos beijinhos e aos abraços nas campanhas eleitorais e depois, quando as pessoas chegam ao pé deles, se entretanto já estiverem eleitos, nem as conhecem. São desvios daquilo que, a meu entender, dever ser a verdade na política.

Sente que, tal como com Hillary Clinton, também poderá ter sido prejudicada nas eleições presidenciais de há cerca de um ano por ser mulher? Isto é, acha que houve quem não votasse em si porque é mulher?

Pode ter acontecido isso. Não sei. Sei que houve uma elevadíssima abstenção, o que é complicado. Qualquer dia temos as pessoas eleitas abaixo dos 50%, que é o que é imposto a um referendo para ele ter efeito vinculativo. Há um enfraquecimento da legitimidade dos políticos, porque as pessoas não participam. Estão-se a verificar fenómenos muito perigosos de falta de adesão das pessoas à participação no espaço democrático. De resto, acho que, nas últimas eleições presidenciais, houve de tudo. Houve mulheres que não votaram por ser mulher; houve outras que, como apresentei a minha candidatura muito tarde, já estavam comprometidas; outras não votaram porque os homens a quem devem obediência disseram para não votarem. E houve uma campanha negra dirigida contra mim que foi muito visível.

E em relação à qual já sarou as feridas?

Sim. Sabia que, se me candidatasse, estava sujeita a isso. A única coisa que quero é não fazer nada de que me arrependa por causa de pressões. Porque são momentos e eu tenho o resto da vida para viver. E tenho de a viver bem comigo e com as pessoas por quem tenho consideração. O resto não interessa, o resto é passageiro. Temos pouca noção do quão efémera é a nossa vida e do quão efémeros são esses momentos. O tempo tudo apaga e temos é que estar bem connosco próprios. Disso eu não abdico.

É com essa noção de que a vida são esses momentos, e que o momento das presidenciais já é passado para si, que aceitou o convite de Marcelo Rebelo de Sousa para ir almoçar a Belém e para assinalar um ano de mandato? Aceitar o convite foi uma forma de aplaudir o que fez neste ano de presidência?

Sou da geração do professor Marcelo Rebelo de Sousa. Ele andou em Direito em Lisboa, eu andei em Coimbra. Mas depois a vida fez-nos reencontrar várias vezes e designadamente, quando eu estava no governo, ele era presidente do PSD. Tenho estima por ele. Nunca foi meu inimigo, foi meu adversário. Candidatei-me porque considerava que havia espaço para uma candidatura nas áreas de pensamento político que eu cubro. Achei que me devia candidatar. Até pelo facto de ser mulher. Porque uma das coisas que normalmente acontece, é que, os homens que têm o poder, quando confrontados sobre a dificuldade que têm em recrutar mulheres para determinadas coisas, dizem que são elas que não querem. Chegou uma altura em que as mulheres até querem e podem estar disponíveis e são eles que não querem. É preciso dar o corpo às balas.

Regressou recentemente à Comissão Política do PS, partido de que é militante desde 1976 e do qual foi presidente cerca de três anos. Foi um sinal de que as pazes com o partido estavam feitas, depois do que se passou nas presidenciais

Não. Eu estou nos órgãos dirigentes do PS; como é natural, porque estou no PS há mais de 40 anos. Não deixei de ter opinião política ou intervenção política. E não tenho de fazer as pazes com ninguém porque não estava zangada com ninguém. E acho que ninguém estava zangado comigo. Acho até que, no período que se viveu no PS de transição de liderança, em que eu a assumi – fui secretária-geral em substituição quando o António José Seguro saiu e até à entrada em funções do atual secretário-geral, António Costa – penso que assegurei uma transição exemplar, de uma maneira impoluta. E portanto ninguém tem de estar zangado comigo nem eu com ninguém. O meu percurso no PS foi aquele que achei que devia ser, não há zangas nem problemas.

Como vê o estado da geringonça?

(risos) A geringonça, como todas as geringonças, tem de ter um bom condutor de geringonça. E acho que temos um bom condutor de geringonça.

Se soubesse o que sabe hoje ter-se-ia candidatado na mesma às presidenciais?

Sim. Já sabia os riscos do que poderia acontecer se me candidatasse.