‘Se não tivesse sido preso, já estava morto’

Luís Espalha, natural de Pontével, no Cartaxo, faz 79 anos em março e é um dos reclusos mais velhos do país. Foi condenado a 14 anos  de prisão por matar o filho e conversou com o SOL na cadeia de Alcoentre.  

Pode contar-nos o que o levou a ser preso?

A morte do meu filho. Eu andava desorientado por causa da morte dos meus outros filhos. O vinho e as más companhias do meu filho também fizeram com que viesse aqui parar.

Como é que tudo aconteceu?

O meu filho andava com pessoas com as quais não devia andar… Sempre gostei de andar com a cara descoberta e aquilo começou a fazer-me confusão. Um dia discutimos: ele e um colega bateram-me e quando ia fugir para chamar alguém, entalaram-me o braço num portão de ferro. Consegui libertar-me e lembrei-me de que tinha uma espingarda velha no sótão – decidi ir buscá-la para meter medo. Desci a escada de chinelos, sem óculos e bêbado. Trazia a espingarda na mão, mas nem sabia que tinha cartuxos, estava guardada num armário velho. Ao descer, falhei um degrau, tombei, a espingarda caiu em cima do carro e disparou.

Só atingiu o seu filho?

Felizmente não acertou no colega que estava sentado ao lado, nem na minha neta, que estava perto.

Já tinha tido problemas com este seu filho?

Nada… Sofri tanto para o pôr bem: comprei um andar em Alhandra para ele viver com a mulher, paguei-lhe o casamento… Era uma joia de filho (chora). Mas começou a andar com pessoas que não devia e aquilo começou a fazer-me confusão. Ele tinha 34 quando isto aconteceu.

Disse-me que já tinha perdido outros filhos antes…

Morreram-me quatro filhos. Agora só tenho o mais velho, que tem 51 anos. O mais novo morreu de doença com dois anos, outro morreu com 32 em Espanha, no camião em que trabalhava – ia para a Noruega carregar bacalhau, caiu no rio e morreu. A minha filha tinha 48 anos quando, ao sair do trabalho, vieram dois espanhóis bêbados e mataram-na num acidente de carro. Isto fez com que andasse um bocado desorientado.

Como reagiu a sua mulher?

Estive um ano na cadeia da Polícia Judiciária e durante esse tempo ela não me visitou. Dou-lhe razão, era o filho dela. Depois começou a ver que eu tinha alguma razão e começou a visitar-me. Temos uma vida normal como antigamente, só que eu estou aqui e ela está em casa.

Foi condenado a quantos anos?

Catorze anos e quatro meses, vou praticamente a meio da pena.

Por homicídio qualificado?

Acho que sim. Fizeram vários testes lá em casa. Esteve lá um senhor do Ministério Público, um advogado que eu tinha na altura e juízes de Vila Franca de Xira. Viram tudo, fiz um croqui e expliquei como tinha acontecido. Acho que foi homicídio qualificado, mas já não me lembro bem…

Já passou por que prisões?

Estive um ano na Judiciária e depois fui para a [prisão da] Carregueira, onde estive três anos. Estou no Estabelecimento Prisional de Alcoentre desde agosto de 2014.

O que sentiu na primeira vez que entrou numa prisão?

Não levei muito a sério o que se estava a passar. Depois é que comecei a aperceber-me de que iria ficar ali fechado durante muito tempo. Comecei a dar razão ao meu filho [por bater no pai] e a querer castigar-me. Mas foi sem querer… Alguma vez eu tinha ideias de matar o meu filho?

Chegou a pensar que era melhor acabar com a própria vida?

Tive para o fazer mais do que uma vez. Fi-lo na Carregueira: pendurei-me no chuveiro, partiu-se. Quando vim para aqui andei com ideias de o fazer. Tive a assistência da minha mulher, do psicólogo, que me chama muitas vezes, e da minha advogada, que me diz para ter calma. Andar distraído com o trabalho também ajuda. Posso andar por aqui à vontade, sozinho. Não há ditos, não há mexericos, não há nada. Agora não penso nisso. Levanto muitas vezes as mãos e peço a morte, mas pensar em fazê-lo não. Às vezes os colegas até ralham comigo.

Mas custa-lhe encarar a realidade?

Sim. Ter a vida que tinha e ver-me aqui fechado, velho, ter netos que ficaram sem os pais. Eu é que os ajudava e agora não posso. Tenho dois netos de cada filho que morreu. Da minha filha tenho três e do meu filho que ainda está vivo tenho outros três.

São o seu apoio?

Claro. Quando vou a casa, de precária, vejo-os a todos. Aqui só podem vir três de cada vez. Todos os dias telefono para casa e pergunto se é preciso ajudar com alguma coisa. Peço à minha mulher para levantar dinheiro e fazer o que for preciso. Sempre gostei de ajudar a família e até de alguns de fora.

Teve problemas com o que diziam sobre si quando veio para a prisão?

Nunca. Moro em Alverca e tenho vizinhos bons, todos se dão comigo. Quando vou lá sou sempre bem tratado e mandam recordações através da minha família.

Alguma vez foi agredido na prisão?

Não, nunca tive problemas com outros reclusos. Adapto-me a qualquer coisa. Fui motorista uma quantidade de anos, numa firma com muitos motoristas portugueses e espanhóis – a empresa espanhola Cepsa – e nunca tive um problema com um colega. Nunca fui a uma guarda, nunca fui a uma polícia, nunca fui a um tribunal, nunca fui a nada. Esta foi a primeira vez.

É bem tratado na prisão?

Ainda nesta última visita disse à minha mulher e ao meu filho: «se não tivesse vindo preso, já estava morto». Andava há uns anos a tratar-me de um cancro que tenho na próstata. O médico de família passava-me comprimidos, mandava-me aqui e ali, e não havia solução. Quando fui para a PJ, mandaram-me logo ir fazer exames ao hospital Amadora-Sintra. Fui a uma clínica na Reboleira fazer um TAC e comecei a fazer tratamentos e quimioterapia. O médico acabou por dizer que o cancro está estabilizado. Entretanto, ganhei também um quisto no maxilar, estive no Egas Moniz e fui operado. Sempre fui bem tratado.

Como é a relação com os guardas?

No geral, tem sido uma vida boa. Tenho tido o que tenho querido: peço para fazer algo e deixam-me, peço para ir para um trabalho e vou. Quando não me senti bem num trabalho, mudaram-me para outro. Sempre me trataram bem, em todas as cadeias. Eu também não trato mal ninguém, nem faço coisas que não devo fazer.

As cadeias têm boas condições?

A PJ era uma prisão de passagem, tinha um pátio pequeno mas era boa. Gostei de lá estar… Ou melhor, não gostei, mas tendo em conta o que se passava, gostei de estar naquele local. Na Carregueira, ao fim de quatro dias, fui trabalhar para a secção de componentes. Nos três anos que lá estive, sempre trabalhei. Para além disso, os medicamentos vinham a tempo e a horas, correu sempre tudo bem. Pedi para vir para aqui porque da minha terra à Carregueira ainda são 84 quilómetros e para aqui são seis ou sete. A família tem poucas posses e custava fazer este percurso. Primeiro não podia vir porque tinha uma pena grande, mas, depois de vários pedidos, lá consegui a autorização para mudar de prisão. Fui trabalhar para a vacaria e estive lá até à semana passada. O trabalho começou a ser um bocado violento, por isso pedi para me mudar para o local onde estou agora. Cuido de um pequeno jardim. Estou descansado, ando o dia todo sozinho, tranquilo.

As prisões têm condições para as pessoas mais velhas?

É difícil responder. Se as prisões fossem feitas só a pensar nas pessoas mais velhas, era preciso muitas instalações e equipamentos. Temos de nos sujeitar ao que existe e estamos bem assim. Os guardas tentam colocar-nos ao pé de pessoas que entendemos melhor. Não vão pôr um velho junto de rapazes novos, que estão toda a noite a ouvir a rádio. Põem os idosos uns perto dos outros.

Está em regime aberto. Com quem partilha o seu espaço?

Agora estou com um que tem 40 e muitos anos e outro com 30 e tal. Sou franco: preferia estar sozinho numa cela, como estive antes. Uma pessoa sozinha está à sua vontade: deita-se quando quer, levanta-se quando quer, tens as coisas arrumadas. Mas no regime aberto temos de ser mais do que um e não tenho razões de queixa, estou ao pé de pessoas boas.

Além do trabalho, como são os dias aqui dentro?

No verão jogamos cartas. No inverno está frio e passo o dia na cama, a conversar um bocadinho. O fim de semana custa muito a passar, não temos o que fazer e aborrece-me estar sem fazer nada. É verdade que podemos vir à rua e tudo, mas não temos um trabalho que nos ocupe o tempo.

Sentiu falta da bebida?

Não sei o que é que me deram, mas desde que entrei na cadeia, nunca mais me lembrei do álcool.

Ser condenado por homicídio influenciou a forma como os outros o encaram na prisão?

Não, há aqui muitas pessoas condenadas por isso e por coisas parecidas. Não podemos andar a apontar o dedo uns aos outros e a comentar as situações. Se estamos aqui dentro, alguma coisa fizemos. E aqui vamos continuar.

Vê aspetos negativos?

Isto é uma prisão e que quem as ‘faz’ são os próprios presos. Existem coisas aqui que certos reclusos não merecem. Existem regalias que alguns presos acabam por estragar, por mau comportamento. De resto, nada a apontar.

Que o momento mais o marcou?

Na Carregueira existia um gabinete por onde tínhamos de passar ao ir para o pátio. Se quiséssemos alguma coisa, tínhamos de pedir ao guardar que lá estava. Um dia quis pedir um gelado para comer no pátio. Sem maldade nenhuma, abri a porta do gabinete sem bater. O guarda, que estava sentado com os pés apoiados na mesa, disse-me: «isso é uma falta de educação». Respondi: «falta de educação é estar com os pés onde comemos e escrevemos». Foi a única discussão que tive até hoje e o melhor é que este guarda acabou por ser muito bom para mim: conversava comigo e ajudava-me sempre que precisava.

Disse-me há pouco que já saiu em precária. Quantas licenças já teve?

A última foram cinco dias no Natal. Já tive umas três ou quatro.

E ainda tem esperança de não ter de cumprir os 14 anos na cadeia?

A advogada disse-me que ia pedir um relatório da doença para ver se me deixavam ir para casa com pulseira. Falou comigo há três ou quatro meses, vamos ver…

O que vai fazer quando sair?

Não pensei em grandes coisas, mas se ainda tiver a carta, vou dar uns passeios com a minha mulher, vou ajudar os meus netos e o filho que tenho. Penso principalmente em ajudá-los.

Por que aceitou esta entrevista?

Estou disposto a tudo, não tenho mal a dizer e para estarmos aqui é porque alguma coisa fizemos. Não vou contestar aquilo de que me acusam, fui eu que fiz isto. Mas foi sem querer.