Catalunha. Artur Mas vira mártir e pólvora

Começou o julgamento do homem por detrás do referendo para a independência de 2014 e, com ele, o movimento recebe lufada de ar 

A caminhada matinal de Artur Mas em direção ao tribunal que ontem começou a julgá-lo e pode proibi-lo de ter cargos públicos nos próximos dez anos não teve nada de trágico. Percorreu as ruas de Barcelona com uma multidão de apoiantes independentistas que a todo o momento sinalizavam que ontem foi o inaugurar de um ano que se pode revelar explosivo para as relações com Madrid e terminar mesmo com uma declaração unilateral de independência catalã. “Não estais sós”, “nem um passo atrás”, “independência”, gritaram as centenas de pessoas que seguiram o antigo presidente da Generalitat, o atual, Carles Puigdemont, e as conselheiras Joana Ortega e Irene Rigau que, como Artur Mas, são esta semana julgadas pelo crime de desobediência graças ao papel que a procuradoria-geral espanhola os acusa de terem desempenhado nos cinco dias que decorreram entre 4 e 9 de novembro de 2014. Isto é: o período que decorreu entre o dia em que o Tribunal Constitucional de Espanha proibiu o então governo regional de Artur Mas de realizar um referendo pela independência da Catalunha e o dia em que o referendo foi realizado na mesma, reconhecidamente à margem da lei, mas mesmo assim com todas as regras de uma votação legítima. 

Nesse dia votaram qualquer coisa como 2,3 milhões de pessoas, ou um terço da população da Catalunha, vencendo uma maioria imensa de pouco mais de 80% dos votos e iniciando, passados quatro anos de batalha sobre os estatutos autonómicos da região mais rica de Espanha, um movimento independentista que hoje é defendido pela grande maioria das localidades catalãs e por maioria absoluta no parlamento regional. Artur Mas, como o seu sucessor, sabe que o julgamento desta semana é uma lufada de ar fresco na batalha política e legal contra Madrid e ontem agiu como tal. A caminhada para o tribunal durou cerca de 75 minutos, cantou-se várias vezes o “Els Segadors”, uma vez no Arco do Triunfo e outra no Fossar de les Moreres, por exemplo, onde estão enterrados os combatentes catalães da Guerra da Sucessão. Por seu lado, a multidão independentista respondia à chamada lançada pelos partidos, que pediram solidariedade com os réus. “Fora, fora, fora a justiça espanhola” e “queremos votar”, ouviu-se ontem de manhã nas ruas de Barcelona.

Equilibrismos

O dia de ontem não pertenceu apenas às ruas catalãs, que por várias vezes se encheram de multidões com centenas de milhares de pessoas defendendo a causa independentista. No tribunal de Barcelona e em Madrid, o dia foi de frágeis equilibrismos políticos. O primeiro e mais visível foi o de Artur Mas, que ao longo da sua audiência teve de jogar no campo do político inocente que não se quer ver afastado de cargos públicos por dez anos e, ao mesmo tempo, no do líder independentista que quer reivindicar os louros pelo referendo do 9 de Novembro. “Ninguém tentou cometer nenhum delito ou desobedecer a ninguém”, lançou aos juízes do Alto Tribunal, perante quem defendeu dois argumentos aparentemente contraditórios: o primeiro, de que o referendo foi sobretudo responsabilidade de um grupo de voluntários; o segundo, de que foi ele e o seu governo que o convocaram, mas que o fizeram sem terem uma ideia clara da seriedade das consequências. “Se era tão evidente o delito, como é que o Constitucional não fez nada para fazer cumprir a sua ordem?”, questionou, quase sempre fugindo ao inquérito dos juízes. 

Segundo escrevia ontem o “El País” – como grande parte da imprensa espanhola, avesso à independência catalã -, Artur Mas e as suas ex-conselheiras tentam que o tribunal considere que, havendo indícios de desobediência, não existem requisitos suficientes para a castigar com a proibição de exercer mandatos públicos. A jurisprudência, escreve o diário espanhol, não é unívoca e o caso pode tornar-se bastante técnico. A procuradoria-geral, por seu lado, argumenta com vários documentos e testemunhos de que tanto Mas como as duas rés receberam ordens inequívocas da parte do Constitucional. 

Fraturas

O segundo ato de equilibrismo ocorria ontem em Madrid, de onde o governo de Mariano Rajoy tentava ontem fechar portas ao processo independentista, ao mesmo tempo que mostrava não estar a condenar o povo catalão com o julgamento de Mas – argumento difícil de vender tendo em conta que existe um segundo referendo em cima da mesa e que já se fala do uso da força pelo governo (ver texto ao lado). “Em Espanha não se julga ninguém pelas suas ideias políticas”, dizia ontem o vice-secretário para a Comunicação do Partido Popular, Pablo Casado, juntando-se às críticas do ministro da Justiça, segundo quem a manifestação da manhã de ontem foi um mecanismo destinado a pressionar os juízes que vão decidir sobre Mas.