Avenida Q. Politicamente para lá de incorreto

“Avenida Q”, um dos grandes sucessos da Broadway, estreia-se hoje no Teatro da Trindade, numa versão adaptada para a realidade portuguesa. Um palco partilhado por atores e bonecos onde, entre gargalhadas, não há medo das palavras

Há um momento em que a vida nos prega uma valente chapada na cara. Assim, sem pedir licença nem aviso prévio. Crescemos a pensar que tudo será cor de rosa e que todos os nossos sonhos se concretizarão. Mas depois vem essa madrasta da vida, carregada de confiança, dizer-nos que não é como nós sonhámos, é como ela quer. É essa “transição da idade da irresponsabilidade total para a idade da responsabilidade obrigatória” que serve de cenário a “Avenida Q”, a comédia em jeito de musical que se estreia hoje no Teatro da Trindade, em Lisboa. “Tem a ver com aquele momento de consciencialização de que a vida não é o que imaginámos, aquele momento em que levamos todos com uma chapada de realidade. No fundo, achamos que o mundo nos vai sorrir sempre… até chegar a primeira conta para pagar”, explica Rui Melo, encenador e um dos responsáveis pela adaptação desta peça para português.

“Para que serve este mestrado em línguas? De que serviu ser marrão? Muita competência para pouca experiência.” O desabafo, sintomático de uma geração, soma-se a outros desabafos, Do jovem a quem a empresa de tuk tuks não renovou o contrato, da jovem muçulmana que estudou psicologia mas agora não tem “um cliente com medo que os rebente”, do pequeno Saul, “o das rimas geniais, já fui rico mas fui roubado pelos meus pais”. Vivem todos na “Avenida Q”, uma típica rua de um bairro lisboeta. E estão todos “na merda, como se a vida fosse um monte de cocó”, mas é ainda com a inocência de quem ainda agora levou a tal chapada que encaram a desilusão.

De resto, este é o tom transversal a “Avenida Q”: este grupo de amigos debate-se com problemas como a falta de trabalho, o amor e desamor, a sexualidade, e, acima de tudo, procura um propósito para as suas vidas. Mas esta procura está carregada de humor. Como se dissessem: já que estou na merda pelo menos vou-me rir.

E tudo isto é feito com atores – Ana Cloe, Diogo Valsassina, Gabriela Barros, Inês Aires Pereira, Manuel Moreira, Rodrigo Saraiva, Rui Maria Pêgo e Samuel Alves, “os possíveis com o nosso argumento”, como se lê na folha de espetáculo – a partilharem o palco com bonecos, daqueles que parecem ter sido roubados à “Rua Sésamo” ou aos “Marretas”. Mas que, tal como o ursinho de peluche do filme “Ted”, de Seth MacFarlane, também não possuem o filtro do politicamente correto.

É neste diálogo permanente entre atores e bonecos (manuseados pelos mesmos atores) que se constrói este espetáculo, que definiu como objetivo “traumatizar a criança” que há em todos nós. Mas que definitivamente não é para crianças. E que tem um quê de “Parva que Sou”, dos Deolinda, em versão teatro musical.

Fenómeno de culto

Foi Rui Melo que viu esta peça, há oito anos, em Nova Iorque, e desde então nunca mais lhe saiu da cabeça o desejo de a trazer a Portugal. Mas achava “impossível montá-la cá”. “É um espetáculo cujos direitos são muito caros. Depois, é necessário, em pouco tempo, ter um grupo de atores a cantar e manipularem bonecos em simultâneo. E isto tudo sem qualquer investimento público.”

Criado por Robert Lopez, Jeff Marx a partir de um livro de Jeff Whitty, e pensado originalmente como série televisiva, em 2002 foi levado ao palco em Connecticut, durante a National Music Theatre Conference. Um ano depois estreou-se nos palcos da Broadway nova-iorquina e ganhou três Tony, inclusive o de Melhor Musical. Ainda em cena na Broadway (atualmente no New World Stages), desde então “Q Avenue” já correu mundo, nas suas mais variadas adaptações. “Foi um sucesso em todos os países por onde passou e tornou-se uma espécie de fenómeno de culto. Acredito que cá acontecerá algo semelhante”, confessa Rui Melo. Em cena no Teatro da Trindade até dia 2 de abril, está já a ser estudada a hipótese de uma digressão nacional.

O processo de adaptação – da responsabilidade de Henrique Dias e Rui Melo – exigiu vários meses. “Por um lado tentámos passar a peça para o nosso contexto, o contexto português, porque no original a peça acontece em Nova Iorque. Depois tentámos atualizá-la porque o original nos parecia algo datado. Só que adaptar canções é muito difícil porque além do tema há que respeitar a métrica”, explica Rui Melo.

E nem na véspera da estreia este era um processo encerrado. “Há sempre pequenas alterações. Foi um processo coletivo e muito interventivo, não apenas ao nível da equipa de argumentistas, mas também dos próprios atores.” É este lado de organismo vivo que permite, por exemplo, que até já Donald Trump tenha direito a referências na peça.

Mas não é o único. Nesta “Avenida Q” até o “Preço Certo” de Fernando Mendes tem lugar. Tudo para concluir – mas sem otimismos excessivos – que não vale a pena stressar muito porque o que não tem remédio, remediado está. É que, “tirando a crise e o Preço Certo tudo nesta vida é só para já”.