Edmundo Pedro. “Fui vítima de Salazar, mas as ditaduras comunistas eram muito piores”

Edmundo Pedro orgulha-se de ter tido uma “vida fantástica” e confessa que gostava de viver 150 anos

Edmundo Pedro está quase a atingir os 100 anos de vida e orgulha-se de continuar lúcido. Ao ponto de continuar a ler nas cinco línguas que domina. O seu livro de cabeceira é o “Guerra e Paz”, de Tolstoi. Em alemão. Garante que continua a acompanhar com interesse a vida política e elogia a solução encontrada por António Costa para governar o país. Numa conversa longa em sua casa, Edmundo Pedro fala do seu percurso político: desde o dia em que entrou para a Juventude Comunista, com apenas 13 anos, até à conversa que há pouco tempo teve com Marcelo Rebelo de Sousa. “Olho para a minha vida e penso que tive uma vida fantástica”, diz. 

Pensa mais no passado, no presente ou no futuro?

Penso muito no passado. Na minha vida toda. É frequente refletir sobre todo o meu percurso. O meu futuro já não é nenhum. Penso muito no passado. As asneiras que fiz, as coisas boas que fiz. A importância que tive ou não nos acontecimentos. O Manuel Alegre dizia: “Sem o esforço que o Edmundo fez no PREC, provavelmente não teria havido consolidação da democracia.” O que é absurdo, evidentemente, mas dá ideia do esforço que fiz. Eu não ia à cama, muitas vezes não dormia. Era o homem da mobilização do PS, fui eu que organizei as grandes manifestações, nomeadamente o 19 de julho [Fonte Luminosa]. Foi a maior manifestação de sempre em Portugal e contribuiu para a viragem. E, portanto, muitas vezes, quando olho para trás, julgo que fiz um percurso que valeu a pena viver.

De todo esse percurso há algum período da sua vida em que pense mais? Os dez anos em que esteve preso no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, sobrepõem-se às outras memórias?

Sim. O Tarrafal marcou-me muito. Marcou-me muito. Ir para o Tarrafal aos 17 anos e vir de lá praticamente com 27.

Deixou lá a juventude.

A juventude toda. Sofri lá muito. Vi morrer 33 pessoas, amigos, muitos deles jovens, quase da minha idade. Marcou–me muito. Tanto mais que estava lá com o meu pai também. Durante todo o tempo estive lá com o meu pai, que também sofreu lá muito.

Foi criado por uma tia. A maior parte do tempo que conviveu com o seu pai, Gabriel Pedro, que era militante comunista, foi dentro da prisão?

De longe. Ele preocupava-se muito com o meu moral. Estava sempre preocupado se eu me ia abaixo. Tive momentos de grande amargura. Fui para lá com 17 anos e depois comecei a ver passar os anos. Os 18, 19, 20 21… Sem saber quando é que saía. É muito difícil.

Pensava muitas vezes que poderia não sobreviver?

Sim, porque vi morrer muita gente e evidentemente que pensava que, se calhar, eu ia também embora. Vi morrer amigos, grandes amigos. Não é fácil.

Foi dos presos políticos que mais tempo esteve na “frigideira”. 

Eu bati o recorde da frigideira porque tentei fugir. O castigo era 70 dias. Eu e o meu pai estivemos 70 dias. Não se pode imaginar o que era aquilo. A temperatura lá dentro chegava a atingir quase 50 graus. À noite havia uma condensação e a humidade escorria pelas paredes e nós lambíamos aquilo. Tiraram-nos a água. Não se faz ideia do que era aquele sofrimento.

O que o fez aguentar durante tanto tempo aquela violência toda era a força de acreditar num ideal?

Era, mas tive momentos em que me fui abaixo. Não me vou armar em herói. Muitas vezes chorava dentro do mosquiteiro. Pensava na minha vida e pensava que não tinha futuro nenhum. Estava preso sem ser condenado. Poderia lá estar o resto da vida. Se a Alemanha tem ganho a guerra, matavam-me lá. Várias vezes dei comigo a chorar dentro do mosquiteiro. O mosquiteiro era feito de pano- -cru para evitar que fossemos mordidos pelos mosquitos. Era um refúgio onde ninguém me via. E ali, muitas vezes, chorava. Fora dali fazia de herói.

Voltou ao Tarrafal depois do 25 de Abril. O que sentiu ao voltar em liberdade a um lugar onde esteve dez anos preso?

Voltei lá três vezes. De uma das vezes estive dentro da cela onde morreu o Bento Gonçalves, que era o secretário-geral do PCP. Chorei. O Bento Gonçalves morreu numa cama ao lado da minha. Era um grande amigo meu. No dia a seguir a essa visita, o “Diário de Notícias” dizia: “As lágrimas de Edmundo Pedro perante a cela onde morreu Bento Gonçalves.” Comovi-me.

Começou muito cedo a envolver-se em ações contra a ditadura. Entrou com que idade para o PCP?

Entrei para a Juventude Comunista com 13 anos. Quando entrei para o Arsenal da Marinha, onde estava o Bento Gonçalves e o Pavel (Francisco Paula de Oliveira) e esses grandes militantes, rapidamente me identifiquei com eles. O meu pai estava deportado na Guiné. Adquiri uma consciência política muito cedo. Há pessoas que me perguntam: “Você com 13 anos tinha consciência política?” Tinha. O meu pai estava preso na Guiné porque queria, como eu, uma sociedade melhor, e isso fazia-me refletir sobre o meu futuro. E depois encontrei na oficina de máquinas o secretário-geral do Partido Comunista, Bento Gonçalves, e aquele que veio a ser o maior crítico de arte do México, o Pavel.

Foi preso a primeira vez com apenas 15 anos. 

Fui preso com 15 anos e condenado no Tribunal Militar Especial a um ano de prisão e à perda de direitos políticos durante cinco anos. O que é um absurdo, porque antes da maioridade ninguém tinha direitos políticos. Eu ainda menos. Os juízes, que eram uns lateiros, estúpidos, tiraram-me aos 15 anos o que eu não tinha. Um absurdo.

Estava preparado para ser preso e para resistir à tortura, apesar de ter apenas 15 anos?

Encarava aquilo com naturalidade. Como uma consequência da minha luta. Estava preparado e nunca falei na PIDE.

Conheceu Álvaro Cunhal na Juventude Comunista. Tinha admiração por ele?

Fomos eleitos os dois no mesmo dia para a direção da [Federação das] Juventudes Comunistas. Naquela altura tinha uma grande admiração por ele, porque ele era um intelectual que tinha feito uma opção de classe – era assim que nós classificávamos – a favor dos operários, a favor dos trabalhadores. Tinha-se desligado dos seus interesses de classe. Eu considerava que isso era uma coisa muito positiva, muito nobre, e tinha por ele uma grande admiração.

O seu irmão João morreu ainda jovem. Foi morto à pancada a seguir a uma manifestação. Nas suas memórias escreve que foi dos momentos mais duros que viveu.

Marcou-me muito. Nem calcula. O que sofri a ver o meu irmão a morrer. Colocaram-lhe uma espécie de gaiola sobre as pernas para que ninguém lhe tocasse. Ouvi-o a gritar que não queria morrer. Era um miúdo muito inteligente e muito vivo. Teve a consciência de que o atingiram mortalmente. Tudo isso me marcou muito. O meu pai estava em Angra do Heroísmo e quase enlouqueceu quando soube que o meu irmão tinha sido agredido daquela maneira.

Sofreu todas essas consequências na luta pela liberdade e contra a ditadura, mas também por acreditar no ideal comunista. Quando começou a questionar-se sobre as virtudes do projeto comunista?

O primeiro grande choque foi a intervenção do exército soviético em Budapeste [1956]. Aí comecei a questionar como é que um exército criado para defender os trabalhadores avança sobre a Hungria, que se queria libertar daquele sistema.

Esteve para ir para a União Soviética como muitos outros comunistas, mas não chegou a ir. 

Fui preso dois ou três dias antes de ir para a União Soviética. Se calhar, foi melhor não ter seguido. Por um lado, porque não recebi a lavagem ao cérebro que lá faziam. Por outro lado, porque se tivesse ido para lá poderia ter sido enviado para Espanha, para a guerra civil, e se calhar teria morrido. Nunca se sabe o que é melhor.

Mas durante muitos anos olhou para a União Soviética com um exemplo.

Claro. A União Soviética, naquela altura, era o paraíso dos trabalhadores. Afinal, era uma ditadura terrível. Naquela altura estava completamente iludido.

Saiu do Partido Comunista quando voltou do Tarrafal.

Saí antes. A disciplina partidária impunha que quem queria fugir tinha de ter o agrément do partido mas, como eu sabia que eles não consentiriam, resolvi quebrar com a disciplina e fui castigado. Fui castigado e não aceitei aquilo. Quando saí, o Álvaro Cunhal quis falar comigo para eu regressar ao partido.

Nessa altura saiu definitivamente do PCP?

Sim, mas isso não foi um corte com a luta. Mais tarde participei no assalto ao quartel de Beja. Não é brincadeira nenhuma. 

Teve pena de não ter participado no 25 de Abril?

Tive muita pena. Lutei a vida inteira desde os 13 anos, participei em várias tentativas (para derrubar a ditadura) e, afinal, não participei naquela que teve sucesso.

Já tinha entrado para o PS?

Sim. Entrei antes do 25 de Abril, em setembro de 73. Encontrei o Mário Soares no aeroporto no dia 3 de setembro e ele convidou-me a entrar para o partido.

Qual é a imagem que guarda de Mário Soares?

O Mário Soares teve um papel histórico fundamental. Ele foi fundamental, no chamado PREC, para evitar que os militares de esquerda e o PCP tomassem o poder. Esse foi o seu papel histórico e o país deve-lhe isso. Deve-lhe a circunstância de não ter sucedido a uma ditadura fascista uma ditadura comunista. 

Como era encarado no tempo do PREC pelos comunistas?

Como continuam a olhar. Ainda há pouco tempo encontrei alguns dirigentes do PC e vi a hesitação que eles tiveram em apertar-me a mão. Mas apertaram. Vi perfeitamente que o fizeram contrafeitos e com reservas. Eles sabem o papel que desempenhei no PREC. O grande mérito do Mário Soares foi ter sido capaz de encabeçar esse movimento que impediu que em Portugal se estabelecesse uma ditadura pior que a antiga. Fui vítima do Salazar, mas as ditaduras comunistas eram muito piores. Não há comparação. A repressão do Salazar nem de longe se aproximou à repressão que existia nos países comunistas. 

Era esse o objetivo do PCP? 

Eles falavam de um governo de democracia popular. 

Julga que com o tempo se tornou quase anticomunista?

Não. Até porque há lá gente que acredita naquilo. Eu sabia que uma nova ditadura era prejudicial ao meu povo, mas nunca tive ódio aos comunistas. E até tinha consideração por aqueles que eram comunistas sinceros. Mas eu queria uma democracia. 

Qual foi exatamente o papel que teve, como operacional da estrutura de segurança do PS, durante o período do PREC?

Eu era o operacional. Por isso é que as armas me foram entregues a mim na noite do 25 de Novembro. O Eanes, aqui nesta mesa (aponta para uma mesa na sala de sua casa), pediu o apoio do PS para a resistência e comprometeu-se a entregar 150 armas ao PS para que colaborasse com eles. 

Esses 150 homens acabaram por não ter nenhuma intervenção? 

A maior parte das armas não foram distribuídas porque o assunto resolveu-se. O Jaime Neves resolveu aquilo e, felizmente, não foi necessária a nossa intervenção. Eu, depois, fui preso na altura em que recolhia um dos lotes das armas. Foi uma denúncia com fins políticos. Esperaram que eu fosse lá buscar as armas.

Está a referir-se ao episódio em que foi detido por ter na sua posse as armas que foram entregues ao PS para intervir no 25 de Novembro. O Mário Soares escreveu, uns anos mais tarde, que caiu numa armadilha.

Foi uma armadilha. Não tenho dúvidas.

Vinda de quem?

Não sei se da extrema-direita ou do PC. Tanto pode ter vindo de um lado como do outro. 

Nessa altura era presidente da RTP…

O Mário Soares quis sempre compensar–me pelos dez anos de Tarrafal. Fez-me uma proposta para que eu fosse governador civil de Lisboa e eu não aceitei.

E também não aceitou ser deputado na Assembleia à Constituinte. Porquê?

Não quis, mas depois fiquei arrependido. Não fui porque, estupidamente, não queria que pensassem que eu tinha vindo para a vida política para ter cargos. Se alguém tinha direito a participar na Constituinte era eu. 

No PS e durante o PREC teve também a missão de explicar aos artistas o projeto do partido. 

É verdade. Foi interessantíssimo, porque fui encarregado de falar com artistas e intelectuais para explicar as intenções do Partido Socialista. Para nós, os intelectuais não tinham de estar ao serviço da revolução. Tinham de ser livres. Fui explicar que não tínhamos nada que ver com o movimento soviético, que colocava a arte ao serviço da revolução. A arte é a arte. 

A partir dessa altura esteve sempre ligado ao PS.

Sim. Ainda hoje. Só não sou mais ativo por já estar um pouco inutilizado. Pertenci sempre à ala esquerda do PS. O PS tinha necessidade de ter uma ala esquerda e uma pessoa que esteve dez anos no Tarrafal era uma grande bandeira, estou convencido disso. 

O PS tem passado por alguns momentos difíceis. Como viu o envolvimento de José Sócrates neste caso em que é suspeito de corrupção?

Não faço ideia nenhuma até que ponto ele é culpado, mas penso que, para além daquilo que ele tenha feito, está a ser vítima de um grande ataque.

Um ataque da justiça?

Sim. É a ideia que tenho e nem me atrevo a fazer um julgamento definitivo. Em grande parte, está a ser vítima de um ataque. Ele pensa que não, mas a carreira política, para ele, acabou. Ele quer voltar, mas não tem condições. A política é implacável. 

Agrada-lhe esta solução encontrada por António Costa para governar o país?

É uma boa solução. Era tempo de o PCP não estar só a jogar fora. Assim como o BE. É uma boa solução e até agora está a resultar. Melhor do que muita gente pensava.

Julga que é governo para durar quatro anos, mesmo sendo minoritário?

Essa é que é a grande dúvida. 

Tem dúvidas?

Tenho. Por todo o passado do PCP. Posso enganar-me, mas tenho receio que, se forem tomadas algumas medidas, eles aproveitem para sair. 

Gosta do António Costa?

Desde o início que o apoio. Conheço-o desde rapazinho. Fui sempre muito amigo da Maria Antónia Palla e gostava muito do miúdo. Ele apoiou o chamado ex–secretariado e uma vez, na sede do PS, o António Campos, que escolhia os deputados, disse-lhe: “Tu não vais ser deputado porque apoias o ex-secretariado.” Achei aquilo absurdo. Aqui há tempos contei-lhe essa cena e perguntei-lhe se ele se lembrava. Ele disse-me: “Eu lembro-me perfeitamente, mas como é que tu te lembras disso?”

O António Costa tem contado com a ajuda de Marcelo. O que acha deste Presidente da República?

Tenho uma opinião muito favorável. Surpreendeu-me. Uns meses antes das eleições, ele disse ao irmão que queria falar comigo, e o irmão António levou-me à Faculdade de Direito. Queria saber a minha opinião sobre a candidatura à Presidência da República. E eu disse-lhe: “Ó Marcelo, você é o melhor candidato possível do centro-direita.” Mas, afinal, tem sido o Presidente do centro-esquerda. Tem sido uma atuação que excedeu as minhas expetativas. É um tipo muito mais do centro-esquerda do que da direita. Não há comparação possível com o Cavaco Silva. Eu acho que ele me chamou lá porque queria ter uma ideia, através de mim, de como é que os militantes do PS votariam. 

Está quase a fazer 100 anos. Gostava de viver mais quantos?

Até aos 150 anos. Se é uma questão de gostar, temos de ser exigentes. Talvez um dia seja possível. Até eu me espanto como é que, com esta idade, ainda sou capaz de ler em cinco línguas. Não é normal, porque as pessoas começam a perder capacidades.

O que anda a ler?

O meu livro de cabeceira é o “Guerra e Paz” do Tolstoi. 

Tem quase 100 anos. Pensa na morte?

Penso algumas vezes. Como uma coisa natural. Estou preparado para a morte. Olho para a minha vida e penso que tive uma vida fantástica. Com altos e baixos. Fiz muitas coisas. Comecei do nada, como aprendiz de serralheiro. É caso para me sentir realizado, completamente. Lutei pelas minhas convicções. Agora já não do ponto de vista da ação, mas continuo a interessar–me pelos problemas do país. Não perdi o interesse pelas coisas.