O adeus do presidente perpétuo

A transição está em marcha em Angola, depois de José Eduardo dos Santos ter confirmado que não será cabeça de lista do MPLA. Começou o seu  reinado apalavrado com o marxismo-leninismo, sobreviveu a uma guerra civil, conheceu anos de crescimento económico exponencial, subitamente travado pela crise do petróleo, num país ainda marcado por graves desigualdades…

Quando os angolanos forem às urnas, em agosto deste ano, para escolherem o próximo Presidente do país, o chefe de Estado cessante estará muito perto de completar um ciclo de 38 anos ao comando dos destinos de Angola. À frente de José Eduardo dos Santos, no ranking dos presidentes africanos que se encontram em funções há mais tempo, apenas se encontra Teodoro Obiang, que assumiu a presidência da Guiné-Equatorial pouco mais de um mês antes do substituto de Agostinho Neto tomar as rédeas de Angola.

No passado dia 3 de fevereiro, Santos confirmou finalmente os rumores que já circulavam há um par de anos pelos corredores do palácio presidencial e oficializou a intenção de não concorrer a um novo mandato, numa altura em que conta com 74 anos e, segundo a oposição angolana, carrega consigo alguns problemas de saúde, que o impedem de continuar ativamente no cargo. «Na reunião de 2 de dezembro de 2016, no quadro da preparação do partido para participar nestas eleições, o Comité Central aprovou o candidato João Manuel Gonçalves Lourenço como cabeça de lista e candidato à Presidência da República», confirmou o chefe de Estado, citado pela Rede Angola, dando o pontapé de saída para a transição e abrindo as portas do poder ao atual ministro da Defesa, um homem bastante consensual dentro do núcleo duro do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA).

José Eduardo dos Santos chegou à presidência de Angola no dia 20 de setembro de 1979, substituindo o histórico Agostinho Neto, falecido dez dias antes, em Moscovo. Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Neto, foi o escolhido pelo Comité Central do MPLA para liderar Angola, por ter um perfil discreto e recatado, características pessoais que ofereciam ao cargo uma certa dose de autocontrolo – a agência Reuters descrevia-o, em 2011, como um «homem sossegado» e a BBC catalogava-o, em 2014, como o «Presidente envergonhado».

Marxista até durar

Filho de imigrantes de São Tomé em Angola, ‘Zédu’ juntou-se ao MPLA e à luta pela independência da então colónia portuguesa pouco antes dos 20 anos de idade. Formou-se em Engenharia Petrolífera na União Soviética – num instituto em Baku, capital do atual Azerbaijão – onde também frequentou um curso militar de telecomunicações, antes de regressar à luta armada. O 25 de abril pôs fim à guerra colonial e abriu caminho para a independência de Angola, oficializada em novembro de 1975.

Chamado então para substituir Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos prometeu, na cerimónia de tomada de posse como segundo Presidente do país, «levar a bom termo» a obra iniciada pelo Presidente falecido, com vista à «construção da sociedade socialista em Angola, assente em princípios marxistas-leninistas» e direcionada para os «operários, camponeses e combatentes».

À semelhança de outros tantos países do chamado Terceiro Mundo, Angola já era palco de uma violenta guerra civil desde a proclamação de independência, passível de constar no guião das emblemáticas guerras por procuração, típicas do período de Guerra Fria. De um lado combatiam as forças afetas ao MPLA, apoiadas pela URSS, Cuba e seus aliados, e do outro as tropas da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), de Jonas Savimbi – aliadas com a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) – patrocinada pelos EUA e África do Sul.

Os «princípios» do marxismo-leninismo prometidos por Santos foram, assim, totalmente canalizados para legitimar um confronto sangrento e devastador, que durou até 2002, entre os dois lados da barricada, representativos de dois mundos: o das superpotências, resolutas em granjear adeptos e aliados, na infinita batalha ideológica da segunda metade do século XX, e o das forças que queriam governar Angola, ansiosas por tomar o controlo do vazio de poder deixado pela retirada portuguesa.

Abertura ao mundo

Quando o muro de Berlim cai em 1989 e a URSS implode dois anos mais tarde, José Eduardo dos Santos e o MPLA percebem que havia chegado o momento de fazer as pazes com o mundo capitalista e começam, aos poucos, a enterrar na areia os manuais do socialismo, a desmantelar a organização soviética do Estado e aderir aos princípios do multipartidarismo. Savimbi e Santos aproveitaram, então, a suspensão da guerra civil e enfrentaram-se nas primeiras eleições gerais do país, corria o ano de 1992. O MPLA conquistou a maioria dos assentos no parlamento e o seu candidato presidencial derrotou Savimbi, embora sem a maioria absoluta necessária para ser reeleito. A UNITA acusou o partido no poder de falsificar os resultados e a guerra foi retomada, impossibilitando a realização de uma segunda volta, na eleição para a presidência.

Foi alicerçado nessa escassa vitória – com 49,6% dos votos, contra 40,1% – que José Eduardo dos Santos reconstruiu o aparelho de Estado e embarcou definitivamente rumo a um modelo capitalista, baseado numa retórica muito semelhante à adotada pelo líder chinês Deng Xiaoping, o impulsionador do socialismo de mercado na China. A ‘nova’ Angola dedicou-se à exploração massiva de petróleo, gás e diamantes e abriu as portas ao investimento estrangeiro, nomeadamente ao brasileiro, chinês e norte-americano. Os ganhos dessa exploração foram utilizados para apetrechar os bolsos de uma pequena elite – composta, essencialmente, por familiares do presidente e altos dirigentes do MPLA – de dinheiro, influência e poder, que através deles, investiu nas áreas da energia, das telecomunicações e no setor bancário fora de Angola e, particularmente, em Portugal. A milionária Isabel dos Santos, filha do presidente, representa o expoente máximo no que toca a essa internacionalização.

Com o fim da guerra civil, em 2002, o chefe de Estado entrou definitivamente no que se pode considerar o período de ouro, à frente do destino dos angolanos. A economia do país cresceu, durante os seis anos seguintes, a uma velocidade situada entre os 15% e os 20% ao ano, e Angola alcançou a Nigéria e África do Sul, no pódio das maiores economias de África.

Crise financeira e social

Com o choque da crise económico-financeira mundial, em 2008, o crescimento de Angola reduziu, durante os anos seguintes, para números inferiores a 5% e embora aquele tenha voltado a subir, em 2012, José Eduardo dos Santos começou a ser contestado dentro e fora de portas. Angola tornou-se num dos países mais desiguais do globo, combinando, no mesmo espaço, uma das cidades mais caras do mundo, com dados que revelam que mais de metade dos angolanos vive com menos de 2 dólares por dia, e que o país está no topo do ranking mundial da mortalidade infantil. Segundo o jornal Expansão, a economia angolana deverá ter registado, em 2016, a pior taxa de crescimento dos últimos 23 anos, em grande parte fruto da dependência excessiva da venda de petróleo e diamantes, que fez daquele Estado um refém absoluto dos humores dos mercados internacionais.

A perpetuação de Santos no poder, aliada às acusações de promoção de um clima de promiscuidade entre atividade empresarial privada e política, causaram revolta no seio das gerações mais jovens, coincidente com as revoltas populares que originaram o movimento das chamadas ‘Primaveras Árabes’, iniciado em 2011, na Tunísia. Nomes como Luaty Beirão, Rafael Marques, José Eduardo Agualusa ou Kalaf têm vindo a dar a cara pela oposição ao regime, que acusam de levar a cabo prisões políticas, silenciar meios de comunicação, reprimir liberdades individuais, proibir posições de protesto e governar com mão de ferro um país cuja economia está tão aberta ao exterior, mas cujas pessoas são obrigadas a ficar fechadas sobre si mesmas.

O abandono do poder de José Eduardo dos Santos foi bastante debatido nos últimos anos, e o próprio chegou a falar nessa possibilidade por mais do que uma vez. Em declarações à BBC, em 2014, Paula Roque, uma especialista em Estudos Africanos da Universidade de Oxford, explicava que para alguém que esteve tanto tempo no cargo mais alto de um país, e com registo de envolvimento em práticas controversas, é importante preparar uma sucessão «protetora». «O Presidente de Angola está a pensar no afastamento, mas quererá garantir, em primeiro lugar, que o seu futuro está protegido», defendeu a académica.

Durante vários anos foram apontados diversos nomes para a sucessão – incluindo os dos filhos de José Eduardo dos Santos – mas no início de 2017 foi confirmado que a pasta será passada para João Lourenço, caso vença as eleições para as quais parte como superfavorito. A oposição angolana aplaude o afastamento de ‘Zédu’, mas acredita que a decisão só aconteceu devido ao alegado estado débil de saúde do Presidente, algo que é negado categoricamente pelo MPLA.

Em agosto de 2017, Angola terá um novo chefe de Estado. Resta saber se governará na sombra do Presidente-perpétuo ou se conseguirá trilhar o seu próprio caminho de emancipação.