Discreet. “Não é tempo de as pessoas ficarem em silêncio”

O realizador de “Interior.Leather Bar” levou o universo queer que carateriza o seu cinema até ao Texas rural e branco para um filme tão político quanto 2017 pede

Um homem que regressa a casa, no Texas rural, para um confronto com um misterioso homem do passado, é o ponto de partida de “Discreet”, filme que o realizador de “Interior.Leather Bar”,Travis Mathews, estreou na secção Panorama da Berlinale e é a mais política das suas obras, para um tempo em que não dá para ficar de braços cruzados. Em Berlim encontrámo-nos com ele e com o protagonista, Jonny Mars.

A decisão deste filme neste lugar foi uma resposta política a estes tempos que vivemos?

TM – Estive durante três anos a trabalhar num outro projeto que se desmoronou no último minuto. Estava no Texas, onde era suposto ter sido filmado, e depois desse filme ter sido suspendido, mesmo por uma questão pessoal precisava de fazer um filme e senti uma urgência nisso. Como pessoa política que sou e que presta atenção ao mundo, e estando ali no Texas central, houve também uma urgência de fazer uma espécie de comentário ao que se estava a passar à minha volta. Foram duas coisas diferentes que colidiram: uma delas foram as aplicações de encontros gay e o grau de racismo e homofobia internalizada, o medo e a vergonha de se ser visto, e a outra foi prestar atenção à política e à emergência de uma extrema direita conservadora e um movimento de supremacia branca que começavam a ganhar poder e já não eram apenas elementos das franjas e como é que estes dois mundos interagiam. Foi muito interessante para mim perceber como é que estes homens gay, no armário ou não, interagiam com as ideias do que é que se aceita como homem, como masculinidade.

E como chegou a esta personagem do Alex?

TM – Acho que não é interessante e que rapidamente ficará datado um filme demasiado centrado na política de um momento, portanto decidi apanhar o espírito desta época e canalizá-lo para esta personagem do Alex. Mostrei a ideia a alguns amigos produtores no Texas e todos eles me diziam que tinha que conhecer o Jonny Mars, que tínhamos que falar. O Jonny poderá falar sobre isto, mas nós falámos imenso ao telefone sobre política e houve uma confiança que se construiu muito rapidamente. Acho que os dois gostamos de estar envolvidos em projetos arrojados, que correm riscos.

JM – Sim, uma das coisas que adoro no trabalho do Travis e no cinema queer em geral é que nos dá uma oportunidade de ser arrojado, de nos expressarmos e de atacar assuntos que o cinema heteronormativo, digamos, tipicamente tem medo de tratar – ou que, honestamente, não são para ele. O cinema queer precisou de décadas para conseguir ter uma voz e ser aceite. Juntar a energia desse passado e dessa história com as questões políticas que o Travis queria explorar sobre o mundo em que vamos viver e aquilo que está a acontecer na América…

Que está mesmo a acontecer agora, muito mais do que quando começaram a fazer o filme, em 2015.

JM – Sim! Achávamos que aquilo ia acabar, não estávamos à espera que isto proliferasse e viesse a ganhar. Interessou-me participar em algo que dissesse: “Fuck off, fuck off and die!” O filme é mais ou menos isto. O Travis e eu aproximámo-nos não só pela nossa paixão por expressarmos os nossos pontos de vista em relação ao que se passa no mundo, mas também porque foi uma espécie de terapia para nós perceber quem são estas pessoas, de onde é que elas vêm e porque nos odeiam sem saber quem somos?

Isso está assim tão presente no Texas?

TV – O Jonny cresceu no Texas, eu cresci no Ohio rural e há 20 anos que vivo em São Francisco, mas ao chegar ao Texas e instalar-me naquela comunidade houve tantas coisas que me foram familiares mas que pareciam muito mais intensas. Acho que parte da minha urgência [para este filme] tem a ver não tanto com as questões da pedofilia ou dos abusos sexuais, mas mais com este género de arrogância do homem branco. Imagino estes homens brancos hetero aterrorizados com as alterações demográficas em curso, a sentir que o poder como o conheciam está ameaçado e que fizeram isto que é quase um pacto com o diabo, em que para manter o poder estão dispostos a fazer coisas que vão contra a sua moral. Fazer o que for preciso para manter o poder.

Como foi colocar-se na pele desta personagem, Alex?

JM – Difícil. É preciso lidar com muita falta de esperança, muita vergonha, é uma viagem difícil até se conseguir estar nessa pele e foi duro. Tenho relações e experiências com pessoas que lidaram com abusos sexuais, várias mulheres que conheci já passaram por isso. É muito real e duro para elas e isso foi algo que tinha que estar sempre a vir ao de cima no Alex para tentar dar algum sentido às decisões que ele estava a tomar aquelas decisões, mas também para que o público possa fazer essa viagem e sentir empatia por ele. Acho que o meu trabalho foi tornar uma personagem desagradável compreensível, pelo menos. O que espero que aconteça quando as pessoas saem do filme é que sejam capazes de sentir empatia e perceber por que é que ele procura esconder-se. Acho que uma das razões pelas quais o tribalismo resulta é porque cala a necessidade das pessoas de sentirem. Foi cansativo, não tivemos muito tempo para gravar e foi difícil lidar com todas estas emoções.

Como tem sido a experiência de estar este filme no coração da Europa tão pouco depois da tomada de posse de Trump?

TM – É maravilhoso por várias razões. Porque estamos na Berlinale, obviamente, mas porque isso nos dá um pequeno megafone para como americanos e como realizadores americanos falarmos de política e do tempo em que estamos. É importante que o resto do mundo veja que estamos a lutar contra isto, tanto quanto pudermos, porque as ramificações disto vão afetar todo o mundo.

JM – Uma das coisas de que mais estou a gostar de estar aqui em Berlim é perceber que não estamos sozinhos. É fácil esquecermo-nos disso na América e pensar que se calhar não chegamos, e é fantástico conhecer pessoas de todo o mundo que têm as mesmas questões que nós sobre o que está a acontecer e como é que isto é possível. Faz-me sentir mesmo bem como ser humano que há muita gente como nós. E vamos ganhar.

TM – Estou sempre a dizer que nem toda a gente pode fazer um filme, obviamente, mas toda a gente pode fazer qualquer coisa neste momento. Não é tempo de as pessoas ficarem em silêncio ou de se isolarem. Se este filme passar essa mensagem já foi bem sucedido.

Cláudia Sobral, em Berlim