Keizer. Ficava do lado esquerdo na equipa das camisolas de risca ao meio

Morreu um dos grandes jogadores do Ajax dos anos 70. Vencedor de três Taças dos Campeões Europeus, companheiro de Johan Cruijff, rebelde de uma juventude inquieta

Naquela equipa do Ajax, de equipamento de risca ao meio, que marcou a infância da minha geração, Keizer vinha em último. Isto é: a gente sabia a equipa de cor e o nome dele terminava a lengalenga. Stuy; Suurbier, Blanckenburg, Hulshoff e Krol; Neeskens, Haan e Gerrie Mühren; Swart, Cruijff e Keizer. Depois também jogava Rep e nós nunca tínhamos visto uma equipa jogar assim. Corriam como garotos na peugada do elétrico, mas numa movimentação estranha, de lugares misturados, laterais que pareciam pontas e defesas centrais que marcavam golos como pontas-de-lança. E havia o nome. E os nomes. Ajax de Homero e da Guerra de Troia, capacete em bico, face barbuda desenhada nas camisolas brancas e vermelhas que ainda víamos a preto e branco nos dias festivos em que a televisão nos trazia o futebol a casa, esse futebol distante dos grandes momentos, finais das taças europeias, final da Taça de Inglaterra. O Ajax vencedor dos italianos, do Inter (2-0) e da Juventus (1-0) nos jogos derradeiros de duas Taças dos Campeões. Nomes curiosos: Hulshoff, Krol, Cruijff, Neeskens: arranhavam na garganta. E Keizer, claro. Figuras esguias, cabelos longos, futebol perfeito.

Acho que não há ninguém que goste do jogo inventado pelos ingleses que não tenha gostado desse Ajax. Havia ali uma elegância rebelde, um vento fresco de juventude inquieta. E, entretanto, passou o tempo e Keizer morreu. Dia 10 de fevereiro. Tinha 73 anos e um cancro nos pulmões que, por dentro, o destruía há anos.

Esquerda

Keizer jogava do lado esquerdo, por isso era o último nome da lengalenga dos titulares. Cruijff, o Magrinho, génio único do futebol total, considerou–o o melhor extremo esquerdo do seu tempo. Foram anos e anos juntos, no Ajax e na seleção laranja da Holanda. Primeiro sob as ordens de Rinus Michels (1965 a 1971), o homem da primeira Taça dos Campeões, depois de Stefan Kovacs, esse treinador romeno meio esquecido, vencedor das outras duas das três seguidas. Keizer e Cruijff já tinham jogado juntos uma final dos Campeões, na época de 1968/69, no Estádio Santiago Bernabéu, em Madrid, frente ao AC Milan (1-4). Nesse jogo já havia Hulshoff, Swart e Suurbier, mas ainda lá estavam Van Duivenbode, Pronk, Nuninga, Danielsson e Vasovic. No dia 19 de fevereiro de 1969 esteve no Estádio da Luz, numa noite de pesadelo para o Benfica que, depois de ter ganho na Holanda por 3-1, parecia ter a eliminatória no bolso. Cruijff desenganou os encarnados. Marcou dois golos, o Ajax venceu em Lisboa pelo mesmo resultado. No jogo de desempate, em Paris, vitória holandesa por 3-0 após prolongamento. Keizer estava lá, do lado esquerdo, como sempre, mas no centro de uma equipa formidável. O futebol do país das tulipas começava a mostrar-se ao mundo depois de décadas e décadas de puro amadorismo – no ano seguinte seria a vez de o Feyenoord conquistar a prova, à custa do Celtic.

Quatro finais

Portanto, a dupla Cruijff e Keizer esteve presente em quatro finais da mais importante prova para clubes da Europa. Se Cruijff era o vagabundo, Keizer era a alma da ponta esquerda. Nariz adunco, como se para melhor cortar o ar nessa sua passada aerodinâmica, invadia os terrenos contrários com o à-vontade orgulhoso de um príncipe canhoto. Michels, depois da vitória em Wembley do dia 2 de junho de 1971 (2-0 ao Panathinaikos, treinado por Ferenc Puskás), foi-se embora de Amesterdão dizendo: “Atingi tudo o que queria. Melhor do que isto é impossível!” Cruijff ficou até 1973, saindo para o Barcelona, onde reencontrou Michels. Keizer, que tinha mais quatro anos do que ele, abandonou a carreira em 1974. Estava com 31. O Campeonato do Mundo da República Federal da Alemanha não lhe correra muito bem. E o novo treinador do Ajax, Johan Kraay, tirou-lhe a vontade de jogar. Foi-se embora em outubro, estava a época a começar.

Mundial – 74

Van Hanegen, enorme jogador do rival Feyenoord, elogiava assim o seu colega Petrus (Piet) Johannes Keizer: “Quando não tenho jogo vou ver o Ajax. Só por causa de Keizer, vale a pena.”

Não me lembro de Keizer no Campeonato do Mundo de 1974. Só dos cromos, esses sim, coloridos, com aquele tom laranja que mais nenhuma equipa tinha. Pela Holanda de Rinus Michels fez um jogo em Dortmund, frente à Suécia (0-0). Rensenbrink ocupava o lugar que fora seu, na esquerda. Era o último da cançãozinha de embalar: Jongbloed; Suurbier, Rijsbergen, Jansen, Krol; Neeskeens, Van Hanegen e Haan; Cruijff, Rep e Rensenbrink. A Holanda perdeu. Os que gostavam daquele futebol de vertigem ficaram tristes para sempre.

Keizer viveu no Ajax e sofreu muito com a sua saída do clube. As divergências com Kraay foram sempre imputadas ao estilo que o novo técnico queria implementar, mas a verdade é que este também não durou muito mais tempo: apenas uma época. Rinus Michels regressou a Amesterdão em 1975/76 sem sucesso. Keizer já estava demasiado longe.

Foram 13 anos consecutivos com a camisola da risca ao meio: 490 jogos, 189 golos, três Taças dos Campeões, seis títulos de campeão holandês, quatro Taças da Holanda, uma Taça Intercontinental. Trinta e quatro internacionalizações pela Holanda com 11 golos marcados. Keizer partiu. A memória fica.