Vazante. O Brasil a olhar para trás

Daniela Thomas abriu a secção Panorama do Festival  de Cinema de Berlim com uma história a preto-e-branco  de um passado de escravos e casamentos forçados.

Minas Gerais, 1821, lama e pés descalços, paisagens de cortar a respiração a preto-e-branco. E escravos, morte, pobreza, casamentos forçados, a vontade sem lugar e o amor interrompido. António, senhor de escravos, regressa do garimpo a casa para descobrir que a mulher morreu ao dar à luz, com a filha. Desolado e sozinho numa enorme fazenda com a sogra demente e os seus escravos, António (o português Adriano Carvalho) decide casar-se com uma das sobrinhas da mulher que morreu, Beatriz (Luana Nastas), de 12 anos.

A partir do casamento é como se o filme começasse de novo. “Vazante” já não é apenas regresso ao passado da escravatura, é, em paralelo e em histórias que às vezes não se distinguem, um filme sobre desigualdade de género e o problema dos casamentos forçados. “Vou dizer-lhe uma coisa que até me custa mas que tenho que dizer”, começa o pai de Beatriz na festa de casamento. “A minha filha ainda não tem as regras”, com o desconforto que é assistir a isto tudo sem a violência fácil, como costume entranhado na sociedade brasileira do século XIX.

“Vazante”, primeiro filme para o qual a brasileira Daniela Thomas, conhecida pelo trabalho em conjunto com Walter Salles em filmes como “Terra Estrangeira” (1995) ou “Linha de Passe” (1998), avança sozinha, numa coprodução com Portugal, abriu no sábado a competição Panorama do Festival de Cinema de Berlim, que este ano tem como um dos temas centrais o “Black World”. Nota Wieland Speck, curador da secção desde 1992, que o filme de Thomas conta a história da escravidão mas nem sempre da perspetiva negra, também com o foco nos personagens brancos, lembrando “Joaquim”, de Marcelo Gomes, outra coprodução com Portugal, em competição pelo Urso de Ouro e que se estreia no final da semana. “O Brasil foi o último país a abolir a escravatura, já em 1888 e ‘Vazante’ torna acutilantemente tangível o que significa a escravidão e a forma como ela aconteceu”, escreve ainda Speck. E será difícil esquecer a imagem do escravo que come lama até morrer, libertação pela morte, como o fim que tem a relação que Beatriz, sozinha na fazenda enquanto o marido está fora, vai construindo com o filho adolescente da escrava que António toma como sua sempre que quer.

Na estreia de “Vazante”, segunda noite do festival no Zoo Palast, uma das salas que acolhem a Berlinale, ouviram-se cinco minutos de aplausos para esta história a preto-e-branco sobre escravos e sobre a mulher no Brasil do século xix que é apenas um dos dez filmes brasileiros selecionados pelo festival. Apenas a Alemanha, sem surpresa, os Estados Unidos, a França e o Canadá ultrapassam em número de produções o Brasil que, lembra a “Variety” num artigo dedicado ao cinema brasileiro, até há poucos anos levava à Berlinale apenas quatro ou cinco filmes por ano, curtas-metragens incluídas. Destas dez obras, além de “Vazante”, também “Joaquim”, de Marcelo Gomes, que se estreia quinta-feira na competição pelo Urso de Ouro, teve coprodução portuguesa.