Zhang Yimou. “Tentei não ferir suscetibilidades, ocidentais ou orientais”

Chega hoje às salas portuguesas “A Grande Muralha”, a primeira grande coprodução entre Hollywood e a China, totalmente filmada neste país, mas falada em inglês. Um filme realizado pelo multipremiado Zhang Yimou, que procurou encontrar os pontos comuns às duas culturas. A começar pelo elenco

Por norma, os filmes de Hollywood exportados para a China recebem apenas 25 por cento das receitas obtidas com as vendas de bilhetes no país. No entanto, se um projeto cumprir com os critérios estipulados pelo governo chinês para atingir o estatuto de coprodução, o estúdio responsável pode arrecadar 43 por cento do lucro de bilheteira.

Motivado por este facto, o então CEO da Legendary Entertainment, Thomas Tull, decidiu, em 2015, aliar-se ao China Film Group e à produtora chinesa Le Vision Pictures e investir 150 milhões de dólares no filme “A Grande Muralha”, que estreia hoje em Portugal. Depois de assegurar um elenco de luxo, representativo dos dois países, o realizador chinês Zhang Yimou foi o escolhido para encabeçar esta que se tornou na primeira verdadeira coprodução entre estúdios chineses e americanos. Num momento em que as relações políticas entre os dois países vivem momentos conturbados.

A par com Kaige Chen e Jinzhan Zhnang, Yimou faz parte da quinta geração de cineastas chineses que começou a fazer filmes após a revolução cultural no país. Galardoado com vários dos prémios mais prestigiantes do cinema – como o Leão de Ouro, em Veneza, com os filmes “The Story of Qiu Ju” (1992) e “Not One Less” (1999); o Urso de Ouro, em Berlim, com “Red Sorghum” (1987); e o Grande Prémio, em Cannes, com “To Live” (1994) – o realizador é sobretudo conhecido por explorar o lado mais sofredor da vida em pequenas comunidades rurais da China, mas nos últimos anos Zhang Yimou tem mostrado interesse por projetos de grande envergadura comercial. Não só brilhou em algumas produções operáticas, nomeadamente numa colaboração com o maestro Zubin Metha, como também encabeçou a visão artística das cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim.

Depois do sucesso que teve em todos estes eventos artísticos, o envolvimento com uma mega produção como “A Grande Muralha” não aparece como grande surpresa. Apesar de o realizador não esconder o desafio que é contar uma história chinesa que agrade simultaneamente ao público ocidental: “Realizar um filme que satisfaça duas sensibilidades estéticas opostas não foi fácil. Tive que ter muitos aspetos em conta, para tentar não ferir suscetibilidades, ocidentais ou orientais. Acabei por focar-me nos pontos comuns às duas culturas. A verdade é que somos todos humanos e foi à sensibilidade mais pura do ser que tentei apelar. Os sentimentos são universais, e são a essência de qualquer cultura. Durante milhares de anos, nós, na China, fomos tradicionalmente ensinados a pensar em termos de experiência coletiva e não tanto de acordo com os desejos ou emoções pessoais, como no Ocidente. Contudo, apesar da abordagem diferente, não significa que os sentimentos em si não sejam os mesmos. Foi nisso que me inspirei”, disse ao i.

Lost in translation

Para Zhang Yimou, “A Grande Muralha” é uma dupla estreia: não apenas enquanto grande coprodução internacional, mas também porque foi a primeira fez que realizou um filme falado em inglês. Uma língua que, curiosamente, o realizador não fala, o que o obrigou a recorrer ao serviço de um tradutor que o acompanhou em contínuo durante toda a rodagem. Isto significa que, quando se refere ao trabalho com os atores americanos deste filme – Matt Damon, Pedro Pascal e William Dafoe – Yimou, de facto, não percebe o que estão a dizer. “Apesar de não entender o conteúdo, consigo sempre perceber se o desempenho artístico está a ser bom ou não. Em vez de me concentrar nas frases que dizem, concentro-me nas expressões faciais e na linguagem corporal. Nunca mentem.” Talvez por isto – e apesar da falta de entendimento verbal – Yimou considera que foi um privilégio trabalhar com atores norte-americanos como estes, de alto calibre, tendo-se sentido muito enriquecido ao participar num projeto que juntou duas culturas tão distantes. “Hollywood e a China têm gerido as suas indústrias de cinema de forma separada durante décadas, e cada uma tem os seus pontos fortes e fracos. Mas durante o trabalho em ‘A Grande Muralha’ percebi o potencial que se poderia adquirir com colaborações mais frequentes.”

Considerado por vários críticos como o génio das coreografias com a câmara, Zhang Yimou volta a não desiludir neste filme. As cenas de confronto entre monstros e humanos são dotadas de uma frescura fora do comum. “Inspiro-me no mundo das artes marciais e em lendas chinesas”, explica Yimou. “Adoro criar danças com a câmara na minha cabeça. Tinha muitas mais ideias para este filme, mas não havia espaço para todas. Ficam para um próximo projeto. Gosto de espetacularidade, de cores vivas, de criar novos movimentos. Quem não gosta de algo que nos desafie os sentidos? Cá está um ponto que nos aproxima globalmente, porque toca na simplicidade de emoções primárias”, sublinhando mais um aspeto da proximidade entre China e EUA.

Até agora o filme mais caro a ser rodado na China, “A Grande Muralha” vai servir de teste para perceber se, de facto, futuras coproduções de grande envergadura entre este país e Hollywood serão, ou não, uma boa aposta. No fim de semana de estreia, na China, o filme faturou 67.4 milhões de dólares, mas o objetivo é atingir cerca de 500 milhões de dólares em faturação global. Resta ver como irão reagir as bilheteiras mundo fora.