Agustina Bessa-Luís. Uma brincadeira chamada vida

É com enorme satisfação que devemos celebrar a recente publicação das quase 3000 páginas que Agustina Bessa-Luís (n. 1922, em Vila Meã, Amarante) dedicou, ao longo de mais de uma década, às colunas da imprensa portuguesa. 

Os Ensaios e Artigos (1951-2007) foram incansavelmente recolhidos e organizados por Lourença Baldaque (neta da romancista), contam com o prefácio de José António Saraiva (ex-director dos semanários Sol e Expresso) e revelar-se-ão, a meu ver, um dos principais marcos editorias de 2017. Agustina Bessa-Luís, que dirigiu o Primeiro de Janeiro na década de 80 e assinou mais de 200 crónicas no Diário Popular (entre 1965 e 1971), mantendo uma colaboração regular com importantes jornais e revistas nacionais, relembra-nos um aspecto que, porventura, julgáramos esquecido: a impossibilidade de separar a literatura do jornalismo, a realidade da ficção, a política da cultura. A liberdade é tudo isso. E Agustina escrevia livremente de uma forma sem fórmula.    

No documentário Nasci Adulta e Morrerei Criança (2005), conta João Bénard da Costa que, enquanto director da Cinemateca, e com o objectivo de assinalar os 100 anos da invenção do cinema, desafiou Agustina Bessa-Luís a apresentar um filme à sua escolha no contexto das famosas «terças-feiras clássicas», ocorridas na Lisboa dos anos 40.

A escritora optou pela adaptação da peça As you like it (escrita em 1623), de Shakespeare, ao grande ecrã, rodada no Reino Unido em 1936 pelo realizador Paul Czinner. Impressionado com o gosto peculiar de Agustina e tratando-se de uma película raríssima, João Bénard da Costa quis saber por que razão a autora tinha escolhido uma obra de tão difícil acesso. A resposta de Agustina revela a essência do seu carácter: porque nunca o tinha visto antes.

O motivo é tão cândido quanto óbvio e elementar. De facto, não pode haver melhor justificação para se ver um filme do que o assistir pela primeira vez. Assemelha-se ao olhar sempre renovado da criança diante do espanto do mundo, que Pessoa tão bem descreveu. E há uma profunda criança que vive no interior da alma de Agustina, uma mulher pronta a esboçar o maior e o mais enternecedor dos sorrisos como, ao mesmo tempo, a ser ironica e asperamente brilhante nas análises que faz ao género humano.

Agustina sorri com um génio infantil. Mas sabe também que, por exemplo, o homem, como afirma, precisa de crueldade para assumir a sua própria culpa e, assim, tornar-se um verdadeiro criador, equivalente ao estro de Deus. O difícil é ser criança. Os adultos acabam sempre por voltar ao passado. Agustina está para além do tempo.