Encontrar o sol. A luz impiedosa de Edward Albee sobre as convenções sociais

Estreia hoje no São Luiz uma peça menor do dramaturgo desaparecido em Setembro passado. Albee sempre teve contas a ajustar com o sonho americano e uma vez mais revela a sua fixação com a crueldade da vida em casal

Para o efeito, um acto é o bastante. “Os homens, afinal, são todos iguais e nenhum pode fazer bem a outro”, escreveu Hermann Broch, e esta é uma dessas importações selvagens que não deixam de compor a verdade do ponto de vista de um homem. Edward Albee tinha as maiores reservas quanto às insistências de que 1 + 1 dá 1. Às vezes acontece, mas é raro. Nas suas peças, o dramaturgo norte-americano expõe as varizes daquilo que permanece de pé nas posições mais incómodas, denuncia os castigos da auto-ilusão, e as intimidades sujas que se tornam como monumentos da resistência de um casal, a perversa cumplicidade entre dois seres que se destroem mutuamente, e não deixam de revelar nisso uma dedicação amorosa.

Escrita em 1983, “Encontrar o sol” não está no rol das mais célebres peças de Albee e não é também das mais representativas, ainda que toque várias das suas obsessões. Numa carreira que se estende por quase seis décadas, apareceu no período de oclusão em que o dramaturgo não contava com o favor do público nem da crítica. Passa-se numa praia em New England, e consiste na justaposição de conversas entre quatro casais, ligados por laços familiares, e o que há nela de matéria para o drama vem do facto de dois dos homens casados, Daniel e Benjamin, serem ex-namorados, separados por motivos que não ficam claros, mas sendo óbvio como o desejo persiste, e o segundo não se consola.

As mulheres de um e outro não estão no escuro em relação a isto, mas reagem de forma bem diferente. Apaixonadas por duas “bichonas”, se uma finge dar a volta por cima, vem à boca de cena atirar pão aos peixes e explicar porque está melhor servida assim, mas despreza a outra, talvez porque se tivesse pena dela acabasse por sentir pena de si. Por sua vez, esta está à beira de arriscar servir de comida aos peixes, com a peça a terminar pouco depois da sua tentiva falhada de suicídio. Benjamin conquistou-a à pressa, e pôs-lhe o anel esperando uma reacção de Daniel quando este anunciou que ia casar. Agora não aguenta o cerco da mulher, trata-a como a peste, mas reage depois como um imbecil quando lhe dizem que se tentou suicidar, questionando-se o que a terá levado a um acto tão desesperado. Esta mulher sozinha e que tinha ilusões de achar consolo no casamento, tem um dos raros momentos comoventes da peça, quando confidencia que perdeu os pais num desastre ridículo, iam eles numa viagem de balão e um puto inocentemente acendeu um foguete sem imaginar que os alvejava acima das nuvens.

Se algo do génio de Albee perpassa nesta peça é a malícia na forma como cria um mapa de afectos sufocante, como os personagens acabam por revelar uma crueldade quase inocente, enquanto os desejos os cegam e, de algum modo, só resta a frustração. Sem nunca adoptar um tom didáctico, nestas peças de um acto, como nota o encenador Ricardo Neves-Neves, as coisas de relevo para a trama passam-se fora de cena. Não vemos as causas, nem propriamente os desastres, mas apanhamos a entrada na curva. “É esse futuro, como incógnita, que nos leva a sentir que há qualquer coisa de forte que se irá passar mas que nós só podemos intuir”, diz Neves-Neves, adiantando: “90% da peça é sobre o passado daqueles personagens e no final há uma projecção sobre o futuro”.

São 21 cenas, e nelas pouco acontece. Albee tem os personagens num aquário, expostos em todos os 360 graus, mas o seu confronto é com o público, e se nunca se desembaraça do realismo também não parece importar-se muito com os dispositivos que fazem avançar a história. Com Tennessee Williams e Arthur Miller, uma década mais novo, Albee completa a tríade responsável pela renovação da arquitectura do teatro norte-americano no pós-guerra, mas as suas influências são sobretudo europeias.

Foi a Ionesco e a Beckett que foi buscar a linguagem como verdadeiro enredo, são insistentes as frases provocadoras e outras tantas de recorte literário que, infelizmente, nesta peça parecem ter sobrevivido mal à tradução. Mas como Beckett, Albee também parece convencido de que os personagens são criados com o único propósito de fazer teatro. Sem abandonar uma estratégia de elementos plausíveis, Albee claramente não está interessado num teatro que conte histórias, nem lhe parece que seja esse o fio a que nos agarramos em busca de um efeito qualquer de catarse. Se Williams e Miller nutriam uma relação apaixonada com as figuras que procuravam insuflar de vida – e tantas vezes a componente biográfica impunha-se ao ponto de se tornarem fantasmas pessoais, com poderosos exorcismos a ocorrerem em palco -, Albee mostra-se céptico, por vezes frio e desconfiado em relação aos dramas dos seus personagens.

Há alguma dose de vulgaridade como seria de esperar nas conversas que se têm na praia, mas há sobretudo ecos afiados à volta das dificuldades de segurar uma relação, o amor, a amizade, tudo o que se sacrifica. E há sobretudo muitas coisas pressentidas, silêncios cuidadosos e tácticos e uma amargura não dissimulada. É apenas um dia de praia, mas há algumas meditações sobre o sentido das coisas, sobre juventude e velhice. O pai de Daniel especula sobre o tempo que lhe resta. Tem 70 anos e admite que a morte já tenha começado a tirar-lhe as medidas, mas engana-se pensando que ainda terá uns anos pela frente.

Ricardo Neves-Neves não dispensa a componente musical tão marcante no seu percurso. As canções compensam-nos numa peça que em uma hora denuncia tantos subterfúgios hipócritas, e devolve alguma dignidade emocional ao drama destes personagens. O matrimónio é triste, e de modo nenhum é resposta para a solidão. Esta peça, longe de ser um dos momentos mais inspirados de Albee, é um flagrante exercício do seu sarcasmo contra aquilo que a sociedade prescreve como uma família ideal, é um cerco letal às convenções. Só que, 34 anos depois, isto já foi feito tantas e tantas vezes, que nos leva a perguntar para quê ainda pontapear o ceguinho?