Sócrates: “Livro de Cavaco é um ajuste de contas”

José Sócrates diz sentir “desprezo” pelo tipo de “literatura” a que corresponde o livro de Cavaco Silva, mas admite que não podia deixar passar uma “deturpação” da verdade como a que defende estar a ser feita pelo ex-Presidente no livro de memórias “Quinta-feira e os outros dias”. Hoje, faz publicar um artigo de opinião no…

"Por mais desprezo que sinta- e sinto- por tal estilo e por tal literatura, não posso consentir que tal deturpação da verdade fique sem resposta", diz o ex-primeiro-ministro, que começa por criticar a forma como Cavaco expõe as reuniões que ambos tiveram.

"Nunca nenhum Presidente ou Primeiro Ministro relatou as conversas tidas entre ambos enquanto exerceram funções. Há boas razões para isso, que vão da boa educação até ao necessário sentido de Estado. A avaliar pelos relatos públicos e bem vistas as coisas , o livro agora publicado é um auto-retrato perfeito das consequências que o ressentimento pode ter no caráter de um político", começa por escrever Sócrates, que explica que no seu caso e até agora optou sempre pela reserva.

"Não desejo, nem nunca me ocorreu, seguir caminho tão indigno. Já, no passado, tive que suportar a indecente campanha de um partido da oposição contra mim, atacando-me por não ter falado com o seu líder, quando, na verdade, tivera com ele numa longa reunião. Fi-lo pelo escrúpulo de não revelar conversas que estava comprometido a não a divulgar", aponta José Sócrates, que não poupa na classificação do que é escrito por Cavaco.

Para Sócrates há "mesquinhez" no livro.

"Ponho de lado as vulgares opiniões politicas expressas no livro pelo autor, que, aliás,  sempre me enfastiaram. Ponho igualmente de lado outras conversas,  na sua maioria distorcidas e falsas,  que não passam de vulgar exercício de mesquinhez disfarçado de relato histórico", critica, optando por responder em concreto a um dos episódios do livro, o que ficou descrito como o caso das escutas de Belém.

Para Sócrates, trata-se de um exemplo "paradigmático" pelo "inacreditável relato" que Cavaco Silva faz do chamado “episódio das escutas “, de uma forma que o ex-primeiro-ministro acredita não ter outro propósito "que não seja o de distorcer e falsear a verdade histórica".

"Houve, é certo, uma reunião no dia 16 de setembro de 2009, que recordo muito bem. Como poderia esquecê-la? Nessa reunião exprimi ao então Presidente o meu protesto por não ter visto desmentida uma grave acusação de escutas que o meu gabinete teria feito ao Palácio de Belém e que o Presidente sabia ser falsa. O Presidente respondeu-me , como aliás faria noutras ocasiões, que não interromperia as suas férias para responder aos deputados do meu partido que tinham criticado a participação de membros da casa civil do Presidente na elaboração do programa de governo do PSD. Retorqui, como é óbvio, que não percebia a ligação entre os dois assuntos. Lembrei também que os senhores deputados “não eram do meu partido”, mas deputados à Assembleia da República, membros de um órgão de soberania , e que só eles poderiam responder por eles, não eu. Insisti no assunto: a notícia das escutas  era pessoalmente ofensiva e, estando o País em campanha eleitoral, tinha provocado sérios prejuízos ao Partido Socialista, podendo ter sido evitados se o Sr. Presidente da República a tivesse desmentido", conta José Sócrates, recordando a forma como o então Presidente recusou fazer um desmentido.

"Agastado, o senhor Presidente entendeu lembrar-me que estava a falar com o Presidente de República . Respondi que nunca me esquecia disso, mas que estava ali a falar-lhe como Primeiro Ministro, eleito democraticamente e contra o qual se tinha lançado uma falsa e maldosa campanha para que perdesse as eleições. A conversa ficou por aí", relata, explicando ter entendido depois esta posição de Cavaco.

"Uns dias mais tarde soube-se a verdade. A publicação de um e-mail permitiu saber que tais noticias tinham sido transmitidas a um jornalista pelo principal Assessor de imprensa do Senhor Presidente da República. Estava identificado o executante. Mais tarde, quando este publica as memórias, denuncia o mandante: “ recebi uma indicação superior para o fazer” ( pag 146 do livro de Fernando Lima) ", nota Sócrates."Tudo isto é conhecido e está comprovado.

Custa acreditar na perfídia que a recente versão do livro contem: afinal, as noticias sobre as escutas teriam sido intencionalmente colocadas na imprensa pela  “tenebrosa máquina de propaganda do PS” para, claro está, afetar a credibilidade do Sr. Presidente", defende, afirmando que "pela primeira vez na história democrática do Pais ficou provado que um Presidente concebeu e executou uma conjura baseada numa história falsa, por forma a deitar abaixo um governo legítimo em funções".

"Pela sua importância, não devo também deixar de fazer um ultimo comentário. Todos os que acompanharam a vida política na altura da crise política sabem bem que a única preocupação do Sr. Presidente era aquela que revelou na noite da sua reeleição: vingança e desforra. O seu discurso de posse foi o sinal de que a direita precisava para atirar o governo abaixo e provocar eleições. Na Assembleia da República, e pela primeira vez na história democrática, chumbou-se um acordo e um compromisso com as instituições europeias que um governo legitimo tinha conseguido para que o País não fosse forçado a pedir ajuda externa", recorda Sócrates, que acha que Cavaco sempre foi "a mão por detrás dos arbustos".

"O Presidente da República de então não tem moral para dar lições de lealdade institucional. Na crise política de 2011,  ele sempre foi a mão por detrás dos arbustos", comenta, anunciando que "por agora" se vai ficar por aqui, num artigo que termina com uma crítica à forma como Cavaco Silva trata no livro o recentemente falecido Mário Soares.

"Nunca tinha visto uma transmutação de personagens tão estrambólica: “ As reuniões com Soares eram sonolentas”. O livro não é uma prestação de contas, mas um ajuste de contas", conclui.